quinta-feira, 24 de junho de 2010

Antroposofia / Uma Constituição Antroposófica à Constituição Humana



Parte 1/3

Introdução

Este texto foi elaborado para servir de referência às primeiras palestras de um curso de introdução à Antroposofia que temos dado há muitos anos com nossa esposa Sonia A. Lanz Setzer. Contrariamente à maneira usual de se começar um tal curso com a constituição quadrimembrada do ser humano, temo-lo iniciado com a organização trimembrada.

A primeira é a maneira usada por Rudolf Steiner, o fundador da Antroposofia, em seu livro fundamental A Ciência Oculta (São Paulo: Editora Antroposófica, 1998) – cujo nome colocaríamos como mais adequado na forma 'A Ciência do Oculto'. Esse livro, cuja primeira edição data de dezembro de 1909, foi precedido em 1904 por outro, também fundamental, Teosofia (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1994). Neste último, Steiner inicia com o ser humano 'trimembrado'.

Cremos que essa maneira tem algumas vantagens em um curso introdutório, pois pode-se partir de expressões já conhecidas (corpo, alma e espírito), podendo-se motivar a sua introdução por meio de uma observação prática, como fazemos no texto. Assim, logo de início mostra-se como a Antroposofia conceitua, de maneira original, expressões que se tornaram nebulosas no decorrer da história, e como esses conceitos ajudam a compreender o ser humano. Inovamos neste texto também na tentativa de motivar o uso dos conceitos emitidos, mostrando como se pode aplicá-los na compreensão de fenômenos simples, vivenciados no dia-a-dia. Para isso, entremeamos os conceitos com citações de algumas aplicações.

Um texto introdutório recomendado é o de Rudolf Lanz, Noções Básicas de Antroposofia (S.Paulo: Antroposófica, 1983), que cobre muito mais assuntos do que este texto – mas quem sabe conseguiremos completá-lo a fim de se tornar um novo livro introdutório.

Gostaríamos de chamar a atenção para os que se interessarem por Antroposofia de que o seu estudo passa necessariamente pela leitura e releitura atenta dos dois livros fundamentais de Steiner citados acima. Não são textos fáceis e, segundo o próprio Steiner, seu estudo aprofundado produz no leitor uma transformação interior. Eles devem ser complementados com o estudo do livro de Steiner Filosofia da Liberdade (S.Paulo: Antroposófica, 1988). Esses três aprofundam muitos dos conceitos que exporemos aqui. Agradecemos à Dra. Sonia Setzer por frutíferas discussões e sugestões.



1. Corpo, Alma e Espírito

Rudolf Steiner relata que, no ano de 869, o Concílio de Constantinopla estabeleceu o dogma de que o ser humano é formado apenas de 'corpo' e 'alma', tendo-se eliminado o 'espírito' de sua constituição. Estabeleceu-se ainda que a alma tinha algumas 'características espirituais'. Segundo ele, esse foi um dos motivos da cisão da Igreja Ortodoxa, que continuou a encarar o ser humano como trimembrado.

Estando ausente do vocabulário oficial da Igreja Católica, que até há alguns séculos ditava no ocidente os costumes e conceitos ligados à espiritualidade, a palavra 'espírito' passou a ter múltiplas conotações. Vamos aqui estabelecer, dentro da conceituação introduzida por R. Steiner, como se pode caracterizar essa trimembração completa do ser humano. No entanto, nosso modelo difere um pouco do de Steiner; não caracterizaremos essa diferença, afirmando apenas, para os que o conhecem, que fazemos esse desvio no intuito de simplificar o nosso modelo. Cremos ter conseguido, apesar disso, preservar as noções mais fundamentais por ele introduzidas.

1.1 Corpo

Suponhamos que nos defrontemos com um vaso no qual há uma planta em flor. O que vemos?

É muito importante notar que não vemos nem um vaso, nem uma planta e nem uma flor. O que vemos, isto é, o que nos dá a nossa percepção sensorial da visão, são diferentes tonalidades de cores. Mas, atenção, também não vemos o 'vermelho' do vaso, o 'verde' das folhas, etc., como ficará claro mais adiante. O que ocorre é a simples percepção dos impulsos luminosos dessas cores.

No processo de vermos o vaso e a planta, nosso corpo entra em atividade, por meio de nossos olhos. Se tocarmos o vaso, nosso corpo estará participando de um processo por meio de nossos dedos. Se pegarmos o vaso com os braços estendidos, teremos que fazer um esforço para segurá-lo, feito pelo corpo através dos braços.

Todos esses processos são físicos. Com nosso corpo físico entramos em contato fisicamente com o mundo físico ao nosso redor, participando dele. Num primeiro momento, vamos restringir a noção de 'corpo' somente ao nosso corpo físico, isto é, aquele que é material, tem uma forma física, uma composição química e no qual se passam processos químicos e físicos. Posteriormente, ampliaremos a noção de 'corpo' para abranger outros aspectos.

1.2 Alma

Voltemos ao vaso. Ao vermos a flor do vaso, com suas cores e formas, ocorre um processo dentro de nós: elas fazem-nos reagir interiormente, causando-nos inicialmente sensações. O verde das folhas nos dá uma certa sensação, o vermelho das pétalas, sua forma, o peso do vaso, também nos produzem sensações. Junto com essas sensações temos outro tipo de reação interior imediata, que são os sentimentos como, por exemplo, o de que a flor é bela e nos produz um prazer. Cheirando a flor, temos a sensação do odor, mas imediatamente reagimos com nossos sentimentos, achando que o cheiro é agradável ou não. Um outro exemplo pode ajudar a caracterizar melhor a diferença entre sensações e sentimentos: suponha que uma pessoa chupe um limão. As sensações envolvidas são o gosto particular daquele tipo de limão and sua acidez. Em seguida vêm os sentimentos: aquela pessoa gosta ou não do gosto daquele limão (ou de limões em geral).

É interessante refletir sobre quais são os sentimentos mais básicos. Certamente simpatia e antipatia são sentimentos bem básicos. Mas há outros ainda mais básicos: atração e repulsa. Se há atração por alguma coisa, há simpatia para com ela; se há repulsa, há antipatia.

Vamos formular a hipótese de que as sensações e sentimentos não provêm de nosso corpo, e sim de algo de nossa constituição não-física que denominaremos de alma. Os impulsos sensoriais são físicos, mas consideraremos que as sensações e sentimentos provocados por esses impulsos não o sejam.

Poder-se-ia objetar que, ao se ter sensações e sentimentos, ocorrem alterações nas atividades neuronais de nosso cérebro e portanto são físicos. Mas essas atividades não contradizem nossa hipótese de que as sensações e sentimentos não são físicos. Segundo ela, eles produzem fenômenos físicos no cérebro, que constituem assim fenômenos secundários, isto é, conseqüências de atividades anímicas não físicas. Isso de modo algum contradiz o conhecimento científico materialista que se tem atualmente do cérebro. De fato, o que se sabe é que, ao se ter certas sensações, sentimentos, impulsos de vontade, pensamentos ou lembranças, algumas regiões do cérebro ficam mais ativas do que outras. O que se passa com os neurônios, e se eles são a causa dessas atividades interiores ainda encontra-se em aberto do ponto de vista científico materialista. Sabe-se também que pessoas com lesões cerebrais não conseguem ter certos tipos dessas atividades interiores. Isso não significa que elas normalmente se originam nas áreas com lesão. Objetivamente, dever-se-ia no máximo afirmar que essas áreas participam do processo de se ter essas atividades interiores. Dentro de nossa hipótese de existência de processos não-físicos, estes podem existir mas, sem a parte cerebral, não serem conscientizados pela pessoa. R.Steiner dá uma interessante analogia nesse sentido. Ao nos vermos num espelho, conscientizamo-nos de nosso rosto. Se o espelho quebrar, continuamos a existir, mas não nos conscientizamos mais de nosso rosto.

A alma tem a capacidade de agir até no nosso corpo físico. Vejamos como se pode compreender, mesmo que seja vagamente, essa interação, usando duas possíveis explicações para esse fato. É interessante notar que 'partículas' atômicas parecem comportar-se em certas situações como 'pacotes de energia'. De fato, é impossível associar-se ao elétron uma 'bolinha' material, como se costuma fazer popular e erradamente desde o modelo de Bohr. Essa bolinha faria circunvoluções em torno do núcleo do átomo, como num modelo planetário. No entanto, essas circunvoluções implicariam necessariamente em mudança de direção da bolinha (por meio de aceleração centrífuga). Como ela é carregada eletricamente, essa mudança implicaria em irradiação eletromagnética, como em todas as antenas irradiantes, nas quais são produzidos movimentos de vai-e-vem dos elétrons. Pode-se imaginar que em nosso cérebro muitas dessas partículas que se comportam como pacotes de energia, estão em equilíbrio instável (como um lápis equilibrado em sua ponta) e, portanto, um infinitésimo de energia pode mudar seu estado. Talvez com isso se possa resolver o problema da atuação da 'mente' não-física (parte da alma, em nosso caso), sobre a matéria física, detectando-se a atividade neuronal citada. Um outro possível enfoque para essa atuação emprega termos computacionais abstratos: suponha-se que os neurônios são sistemas não-deterministas (o seu funcionamento aparentemente aleatório é indicado pelo fato de que, sob os mesmos estímulos, um neurônio às vezes dispara, outras vezes não dispara). Suponha-se ainda que o seu comportamento não é em geral aleatório, mas regulado (isto é, algumas transições não-deterministas são escolhidas) por elementos não-físicos da constituição humana – afinal, não temos a sensação de que nossos sentimentos, pensamentos e vontade são aleatórios! A decisão de seguir uma de várias possíveis transições não requer energia, dando portanto também margem à atuação do não-físico sobre o físico.

É também interessante notar que os modelos matemáticos quânticos de átomos contêm elementos que não têm limite clássico, como o 'spin', isto é, não são redutíveis a tipos de energia que fazem sentido sensorial (como se fossem provenientes de uma força de atração conhecida, uma rotação, etc.). É como se esses modelos mentais indicassem a não materialidade dessas partículas (incluindo o elétron!). Se a matéria em sua forma elementar deixa de ser material, também desaparece o problema de interação do não-físico com a matéria. Além disso, é necessário reconhecer que os modelos matemáticos existentes há muito tempo, em especial os da Mecânica Quântica, refletem de maneira razoável apenas o comportamento mensurável dos átomos mais simples – a propósito, em situações que não têm nada a ver com as partículas em estado normal da matéria, pois são resultados de colisões artificiais de altíssima energia. Podemos, portanto, afirmar que há um profundo desconhecimento da natureza das partículas elementares, e portanto do que vem a ser a matéria. De fato, parece-nos óbvio que do ponto de vista material a matéria não faz sentido (pois uma partícula indivisível não faria sentido).

Assim, sentimo-nos à vontade, do ponto de vista do conhecimento científico atual, para admitir processos não-físicos no universo e, em particular, no ser humano. Por falar nisso, há um argumento irrefutável para a consideração de processos não-físicos no universo: a origem de sua matéria e energia, bem como suas fronteiras não fazem sentido físico.

O importante para nosso modelo do ser humano é que a parte de nossa constituição que chamamos de 'alma' não é física, e não pode ser reduzida a processos físico e químicos, apesar de poder influenciar nosso corpo físico, e ser influenciada por meio deste. Segundo o modelo aqui formulado, temos sensações e sentimentos devido à existência de nossa alma. Além delas, há ainda outras manifestações da alma. Assim, voltando ao exemplo do vaso com a flor, dado no início deste item, o simples olhar a flor pode despertar uma outra manifestação de nossa alma: o impulso de vontade de cheirar ou tocar a flor. Se, para isso, tivermos pego em seu ramo e sido picados por um espinho, teríamos o instinto de imediatamente largar o ramo. Impulsos de vontade e instintos (que são um tipo de vontade), são também manifestações da alma, e ainda há outras.

Vamos fazer aqui mais uma hipótese de trabalho: plantas não têm sensações, nem sentimentos, nem instintos ou vontade. Por exemplo, as reações de uma planta à luz, crescendo em direção a esta, não devem ser confundidas com as reações interiores provenientes de sensações e nem de instintos. Sensações são reações interiores que devem poder ser percebidas interiormente pelo ser. A planta reage a um impulso físico da luz, crescendo em direção a esta, mas sem experimentar uma sensação como se passa, com outras excitações externas, em animais e nos seres humanos. Assim, dizemos que as plantas não têm alma, mas tanto os seres humanos como os animais as têm. Atenção: ao se estabelecer esses conceitos devem-se examinar sempre as plantas e animais típicos, descartando os casos de transição. Estes deveriam ser examinados à luz dos casos mais gerais, em um enfoque científico goethiano. No caso dos seres humanos, a alma tem capacidades inexistentes nas almas dos animais que, como veremos, devem-se a constituintes diferenciados presentes na primeira.

O que os seres humanos têm, mas que falta aos animais, virá no próximo item. No momento, é importante ainda reconhecer que cada ser humano tem sensações e sentimentos absolutamente individuais. É impossível para uma pessoa sentir uma sensação ou um sentimento que outra pessoa está sentindo. Esta última pode até expressar a sua sensação, dizendo: "Esta flor dá-me tanto prazer!" Mas o prazer propriamente dito que ela sente só ela pode sentir. Da mesma maneira, cada qual tem seu instinto, não se podendo ter o instinto do outro. Assim, características e atividades anímicas são estritamente individuais e subjetivas. Por meio do corpo físico recebemos estímulos sensoriais, eventualmente de objetos externos a nós. Por meio da alma, interiorizamos esses objetos de maneira estritamente pessoal, subjetiva, com alguma reação puramente interior.

1.3 Espírito

Voltemos ao exemplo do vaso. Com o corpo, recebemos impressões sensoriais como as luminosas e táteis, e sofremos a ação do peso do vaso e da planta se o erguemos. Com a alma reagimos interiormente a essas percepções, sentindo sensações ou sentimentos, tendo com isso manifestações de vontade. Mas logo que percebemos algo com nossos sentidos corporais, logo que temos sensações e sentimentos ligados às percepções, formulamos algo com nosso pensamento: estamos 'vendo' um vaso, uma planta, uma flor, a flor é uma rosa, 'vemos' as cores vermelha, verde, etc. 'Vaso', 'planta', 'rosa', 'vermelho', etc. são conceitos. É fundamental, do ponto de vista de cognição, compreendermos que não vemos um 'vaso'. Insistimos – o que vemos são diferenças de impulsos luminosos: as impressões luminosas do vaso e da planta em contraste com as impressões do fundo, etc. Por meio do pensamento, associamos uma representação mental ('Vorstellung') do vaso e da planta que se segue à percepção dos impulsos luminosos, aos conceitos de 'vaso', 'planta', 'flor', 'rosa', etc. Infelizmente tivemos que introduzir a noção de 'representação mental' em contraposição à de 'percepção', mas vamos deixá-los de lado, e tomá-los de maneira ingênua, caso contrário teríamos que discorrer longamente sobre cognição.

Fazemos agora a hipótese de trabalho de que a associação de uma representação mental interior a um conceito não é feita pelo corpo ou pela alma, mas por um terceiro membro de nossa constituição: o espírito, que para isso emprega o pensar.

O espírito também não é físico, mas é de natureza diferente da alma. Como há substâncias físicas de várias naturezas – a sólida, a líqüida, a gasosa, cada qual mais sutil que a anterior –, podemos supor que exista uma hierarquia de 'substâncias' não-físicas. A 'substância' espiritual é mais sutil do que a anímica e, portanto, 'superior' e esta.

É por meio do espírito presente em cada ser humano que este entra em contato com os conceitos. Ora, conceitos claramente não são físicos. Isso é absolutamente claro na Matemática, em particular na Geometria. Por exemplo, o conceito de circunferência como lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto, o centro, é um conceito imaterial, isto é, não-físico. Aliás, o próprio conceito de 'ponto' é imaterial; nunca alguém viu um ponto geométrico, assim como nunca alguém viu uma circunferência perfeita. O que se vê são aproximações, seja em desenhos, seja em objetos mais ou menos circulares.

Além de não serem físicos, conceitos são também universais, pois não dependem do sujeito que entra em contato com eles – o conceito de circunferência é o mesmo para todas as pessoas. Mais ainda, ele não é temporal ou, melhor dizendo, é eterno, pois não muda com o tempo. Segundo B. Spinoza, em sua Ética, prop. 3, "De coisas que não têm nada em comum, uma não pode ser a causa da outra." ("Quae res nihil commune inter se habent, earum una alterius causa esse non potest"). Isso nos leva a uma caracterização de 'espírito'. Suponhamos que um conceito eterno, como o de circunferência, que obviamente não depende da existência de alguém que o formule, exista num mundo espiritual, o mundo das idéias platônicas (que supomos ser real, mas não físico). Se é com nosso espírito que entramos em contato com um conceito eterno, aquele também deve ser eterno. Aristóteles já havia usado um raciocínio puramente lógico como esse, em seu Sobre a Alma: se podemos entrar em contato com conceitos eternos como os matemáticos, temos que ter em nós algo de eterno. A partir daí ele formulou que nossa alma deve ter duas componentes, uma que contém nossos gostos, instintos, etc., que desaparece quando morremos, e outra que deve ser eterna e permanece após a morte. Na nossa formulação, denominamos a primeira simplesmente de 'alma' e a segunda de 'espírito'.

Por meio do corpo somos seres objetivos, pois entramos em contato com algo que não está em nós. Por meio da alma somos seres subjetivos, pois com ela temos reações interiores absolutamente individuais. Por meio do espírito temos atividades voltadas tanto para o que é subjetivo, quanto para o que é objetivo: podemos com ele reconhecer as nossas sensações, sentimentos ou instintos subjetivos ("esta rosa torna-me alegre", "estou com fome", "estou triste", etc.). Mas também podemos reconhecer nos objetos que percebemos conceitos como 'rosa', que não dependem de nossa particular situação momentânea, da maneira como a percebemos visualmente, do fato de gostarmos ou não dela, etc. (obviamente estamos supondo percepções sensoriais relativamente nítidas e sadias, e uma capacidade de conceituação também sadia). Com nosso espírito temos a percepção objetiva da essência superior daquilo que percebemos sensorialmente, ou mesmo de entes que não têm manifestação física, como por exemplo os matemáticos.

Deve-se a Steiner (veja-se seu livro Filosofia da Liberdade, já citado) a contribuição de ter formulado a cognição como sendo uma percepção do espírito. Por meio de nosso espírito podemos completar a subjetividade de nossa percepção e da representação mental, associando-as com algo que está fora de nós como o está o objeto percebido, mas que está ligado a este, sendo porém imperceptível aos nossos sentidos e ao nosso corpo: o conceito do próprio objeto. Nossas percepções sempre são parciais, como por exemplo olhar a rosa de um certo ângulo. O espírito completa essas percepções colocando o sujeito em contato com a essência do objeto percebido, essência esta que está no mundo platônico das idéias, subjacente ao mundo físico. Assim, conhecimento só pode ser obtido pela atuação de nosso espírito.

É uma lástima que a ciência materialista moderna tenha um profundo preconceito contra qualquer manifestação ou conceito que envolva algo não-físico. Se este modelo que apresentamos estiver correto, é inútil procurar a origem do pensamento nos neurônios. Pelo contrário, admitindo-se que o funcionamento dos neurônios talvez seja uma conseqüência de processos não-físicos, abrir-se-ia um imenso campo de pesquisas. Essa situação lembra bem a história do bêbado que estava procurando, em baixo do poste de luz, as que chaves havia perdido, e não mais adiante, onde realmente as tinha perdido, mas onde estava escuro. Com a luz do materialismo, e o método científico nele baseado, está se procurando as chaves onde não se as perdeu, simplesmente por preconceito de usar outros meios (na metáfora, tatear em vez de enxergar). Assim nunca se irá encontrá-las e, conjeturamos, nunca se obterá conhecimento satisfatório sobre nossas representações mentais, o pensamento, os sentimentos, o sono, a vida, etc. Infelizmente há, além do citado preconceito, um profundo medo de se ampliar o método materialista pois tem-se a fé de que essa ampliação levaria ao misticismo e à crendice. Esperamos que os leitores não reconheçam em nós qualquer um dos dois. Foi R. Steiner quem mostrou que é possível conceituar objetivamente e compreender o mundo não-físico (de fato, é mais importante compreender esse mundo do que observá-lo), o que leva a um profundo entendimento do mundo físico, pois este é uma manifestação daquele. Por exemplo, a forma típica de uma espécie de seres vivos sempre segue um determinado padrão, comum a todos os indivíduos da espécie. Esse padrão é a expressão física do conceito daquela espécie, que existe no mundo espiritual (veja-se meu ensaio "Desmistificação da onda do DNA" em meu site).

Uma outra característica fundamental do espírito é a de conferir ao ser humano a capacidade de consultar a memória. Podemos lembrar de algo, por um esforço interior, sem nenhum impulso ou necessidade que nos obrigue a isso. Por exemplo, podemos estar completamente sem fome e decidir lembrar de uma agradável refeição que fizemos no dia anterior. É justamente essa capacidade de nosso espírito consultar nossa memória, por meio do pensamento, que nos faz poder deduzir relações de causa e efeito. É ela que nos fornece a continuidade para nossa vida, que seria totalmente fragmentada se dependesse exclusivamente dos nossos sentidos e das representações mentais baseadas somente no que eles percebem. É devido à memória que o espírito tem a capacidade de associar a percepção de um objeto com o conceito correto de sua essência, baseado em experiências anteriores.

Assim, por meio de nosso corpo temos percepções instantâneas do mundo ao nosso redor. É nosso espírito que liga essas percepções, fazendo delas um todo coerente e recompondo a verdade da permanência e das causas e efeitos. É ele que nos faz reconhecer a rosa meio murcha de hoje como sendo a mesma rosa viçosa que vimos ontem, apesar da forma um pouco diferente.

Os animais não têm memória. Em seu livro já citado A Ciência Oculta, no cap. "A essência do ser humano", R. Steiner formula que um animal pode ter, em ocasiões diferentes, as mesmas sensações a determinados impulsos interiores ou exteriores já experimentados anteriormente. Ele dá o exemplo de um cão que se alegra ao rever o dono. Não se trata de, como no ser humano, uma associação da representação mental da pessoa sendo vista, com a memória de representações semelhantes passadas. O cão simplesmente sente o mesmo prazer cada vez que vê o dono e, por isso, alegra-se. O condicionamento de um animal seria justamente fazê-lo ter sempre a mesma sensação a um determinado impulso exterior e, com isso, ter o mesmo sentimento ou a mesma reação de vontade. Se um certo gato fica com fome, tem o impulso de se dirigir em busca do recipiente com ração, sempre deixada no mesmo local pelo seu dono. O que o gato não pode fazer é, sem sentir fome, lembrar-se da gostosa ração que está naquele recipiente. Um cachorro pode sentir a falta do dono, se sentir fome ou seu cheiro em um sapato e, talvez, até se sentir falta de carinho. Mas sem um impulso interior, como um instinto ou uma sensação, ele não sentirá falta do dono. E em nenhum caso um animal pode recompor interiormente uma imagem, na forma de representação mental, como fazemos ao consultar nossa memória. Uma cuidadosa observação dos animais pode levar à conclusão de que essas considerações são verdadeiras.

Já a falta de memória mostra que os animais não possuem o elemento que conceituamos como 'espírito' pois, se este existisse e atuasse sadiamente, ela também existiria. E pela falta dele eles não podem entrar em contato com os conceitos, que são da mesma natureza. Uma abelha faz favos hexagonais, mas ela não tem consciência desse fato; seus instintos fazem-na construir hexágonos aproximadamente regulares, sem que ela reconheça o conceito que há em comum entre todos esses polígonos. Por isso a abelha não pode subitamente decidir fazer favos pentagonais ou heptagonais (existe aí envolvido um fator de economia, mas que obviamente é totalmente ignorado pela abelha; um instinto sábio 'programa' as abelhas a fazerem sua colméia sempre dessa melhor forma).

O ser humano poderia decidir fazer um 'favo' de uma outra forma geométrica, talvez por motivos estéticos. É só observar o mundo e notar-se-á que são os seres humanos que introduzem novidades nele. Os animais seguem externamente seus 'programas' internos, vinculados inclusive ao seu próprio corpo. O ambiente externo pode, obviamente, condicionar o animal a agir diferentemente, alterando aqueles 'programas'. Os seres humanos podem ir contra seus instintos, como alguém que faz um regime dietético apesar de gostar imensamente de comer. Aliás, supondo que essa pessoa não esteja sofrendo com um pouco de excesso de peso, o motivo da dieta pode ser ligado a um conceito de saúde ou a um conceito de estética, isto é, pode ser independente de alguma necessidade física percebida pelo corpo.

Assim, é o espírito que faz um ser humano realmente humano, e o distingue dos animais. Nós temos auto-consciência, individualidade, liberdade e moralidade, justamente devido à presença do espírito dentro de nós. Os animais não têm nenhuma dessas capacidades. Eles têm consciência – como se pode notar quando se ferem e reagem a isso – mas não têm auto-consciência, isto é, consciência de, por exemplo, saber que tipo de dor estão sentindo, pois esse tipo é um conceito.

A presença do espírito é que dá real individualidade ao ser humano. Referimo-nos aqui a uma manifestação superior, que vai além da óbvia presença de uma individualidade única devida à hereditariedade e às influências do meio ambiente. Essa individualidade inferior envolve por exemplo uma face única, uma impressão digital única, gostos únicos, interesses únicos, mas não é a isso que estamos chamando de 'individualidade superior', aquilo do qual temos uma leve percepção quando, referindo-nos a nós mesmos, chamamo-nos de "Eu". Steiner chamou a atenção para o significado muito especial que essa palavra tem: alguém pode usar outras denominações ao referir-se a vários objetos ou pessoas que estão fora dele próprio, como "esta é uma mesa", "este é o Tonico", etc. Mas a denominação "Eu" só pode ser usada quando ele está se referindo a si próprio – e de uma maneira bem ampla, envolvendo muito mais do que seu aspecto, seus gostos, etc.

A ciência materialista de hoje não pode, com suas terríveis limitações de visão de mundo, admitir a existência dessa individualidade superior. Ela postula que o ser humano é exclusivamente fruto da hereditariedade e da influência do meio ambiente. A hipótese da existência do elemento 'espírito' leva a esse terceiro elemento em cada indivíduo. E é devido a ele que se pode compreender como gêmeos univitelinos que viveram juntos acabem tendo ideais e profissões diferentes. Uma conseqüência dessa concepção é que é impossível prever o comportamento de uma pessoa baseando-se exclusivamente em sua herança genética e na influência do meio ambiente. Em particular, conjeturamos que a partir do levantamento do genoma humano não se poderá controlar sua vida como se pretende, por exemplo evitando doenças de maneira determinista. A manifestação de uma predisposição genética depende, neste modelo, da necessidade do espírito da pessoa. Este também atua no inconsciente, por exemplo levando a pessoa a uma situação onde pode se desenvolver – o que poderia ser denominado de 'destino'. Note-se que em qualquer situação em que se encontre, a pessoa pode, a partir de seu espírito, agora em ato consciente, decidir-se a tomar este ou aquele caminho, de modo que o destino não coíbe a liberdade, simplesmente cria as situações favoráveis para o desenvolvimento pessoal – inclusive 'pegando-se' doenças. Observe-se a profunda sabedoria da língua, que provém de uma época em que se sabia intuitivamente muita coisa que se perdeu: não se diz 'a doença me pegou', mas o contrário. Note-se também que estamos imersos em um mundo de vírus, bactérias e micróbios, mas uma pessoa sadia raramente 'pega' uma doença. Isso se dá quando ela tiver a predisposição para isso, e no momento adequado ao seu desenvolvimento – em um sentido muito amplo. Em geral a medicina estuda e trata da patogênese; ela deveria também estudar e tratar (no caso, dar diretivas para manter) a 'salutogênese', termo introduzido por Aaron Antonovsky. Ele desenvolveu esse ramo a partir de observações de pessoas que tinham passado pelos horrores de campos de concentração e extermínio nazistas mas que, no entanto, tinham uma saúde física e mental excelente.

Já que falamos em doença, seria interessante colocar aqui o seguinte. Observando-se a natureza, notamos nela uma imensa sabedoria. E o que há de mais sábio na natureza é o corpo humano. (De um certo ponto de vista espiritualista, essa sabedoria desse corpo não é fruto de mutações casuais e seleção natural, mas de uma atuação gradual de seres espirituais e de nosso próprio espírito.) Pois bem, como conciliar uma tal sabedoria com a aparente falha desse corpo, adquirindo doenças? Esse paradoxo pode ser resolvido supondo-se que as doenças são necessárias para o desenvolvimento pessoal. O papel do médico torna-se, nessa concepção, um ajudante para que o doente possa superar a doença aprendendo com ela o que ela está tentando ensinar. Obviamente, um médico nunca pode ter o conhecimento suficiente para dizer que uma doença deveria ser fatal, de modo que a primeira obrigação dele é salvar a vida e impedir um sofrimento atroz. Dentro desse princípio é que ele deve tentar fazer com que a doença se manifeste da melhor maneira possível. É por isso que a medicina ampliada pela Antroposofia não é sintomática, isto é, não procura em primeiro lugar eliminar os sintomas, como faz em geral a medicina clássica. Os sintomas são apenas uma manifestação exterior de um processo que em geral deve cumprir-se adequadamente e não ser simplesmente interrompido.

Sem o elemento 'espírito', não se pode associar liberdade ao ser humano. A matéria, sem ser comandada por algo não-físico (essa possibilidade foi abordada no item anterior), segue leis físicas, que são inexoráveis. Portanto, da matéria não pode advir liberdade, no máximo aleatoriedade. Mas o ser humano não é um ser caótico, em estados de boa saúde – física, anímica e espiritual.

A partir da alma também não se chega à liberdade. Por exemplo, não podemos controlar se sentimos antipatia ou simpatia por outra pessoa à primeira vista. O que podemos controlar – pela atuação de nosso espírito! – é nossa atitude baseada nesses sentimentos. Por exemplo, conscientizando-nos de uma antipatia por uma pessoa, podemos forçar-nos a conversar ou ter contato com ela. Com isso, podemos descobrir nela qualidades que fazem nossa antipatia aos poucos transformar-se em simpatia. Assim, nosso espírito dirigiu, em liberdade, um ato que teria sido o contrário se tivéssemos seguido o impulso da alma.

Essa ligação da liberdade com a auto-consciência vai mais longe: não se pode falar em uma decisão livre (e, por conseqüência, em um ato livre), se ela não for tomada em plena auto-consciência. Usando um exemplo de Steiner no citado livro A Fiolosofia da Liberdade, não se pode afirmar que um bêbado age em liberdade.

Finalmente, a liberdade nos leva à moralidade. Um ato é moral se ele é feito conscientemente, em liberdade, e está de acordo com as verdades cósmicas, isto é, as físicas e as não-físicas. Por exemplo, reconhecendo-se que cada ser humano tem um espírito individual dentro de si, que se manifesta através de sua auto-consciência, individualidade e liberdade, qualquer ação sobre uma pessoa sã que prejudique essas suas 3 características deveria, em princípio, ser considerada imoral. Note-se que usamos a palavra 'sã': não consideramos uma pessoa dominada, por exemplo, por instintos suicidas ou homicidas como sendo 'sã'.

É devido à presença do espírito dentro de cada um de nós que podemos praticar o amor altruísta. Um ato de amor altruísta não pode advir nem do corpo, nem da alma. Ações que provêm de um deles ou de ambos só podem ser egoístas. De certa maneira, Richard Dawkins (O Gene Egoísta. Lisboa: Gradiva Publicações, 1989) está correto: os genes são egoístas – mas a partir deles nunca se pode chegar a uma ação verdadeiramente altruísta. Como materialista, Dawkins não pode admitir a hipótese da existência de algo não físico dentro do ser humano, e daí qualquer consideração sua que leve a um altruísmo é, segundo o nosso modelo, falaciosa (inclusive, seguindo o que Darwin já havia especulado, a de que pessoas altruístas tiveram mais aceitação na comunidade e sobreviveram melhor, isto é, o altruísmo é, pasmem, conseqüência do egoísmo!). Aliás, a aplicação de conceitos evolucionistas a seres humanos é absolutamente indevida. Isso já foi constatado por A. Russel Wallace, o descobridor da Seleção Natural em paralelo com Darwin, mas independentemente deste (ambos apresentaram sua teoria na mesma sessão da Academia Real em Londres). Só que Wallace, ao contrário de Darwin e dos darwinistas típicos até hoje, era espiritualista – o que obviamente não o impediu de ser um grande biólogo! Infelizmente, Wallace e seus contemporâneos não tinham a conceituação do espírito como formulada e vivenciada por Steiner, e não puderam trabalhar com esse conceito. Com essa conceituação, fica claro o ridículo de aplicar aos seres humanos conceitos evolucionistas, voltados exclusivamente à nossa corporalidade física, e nem mesmo à nossa constituição anímica.

Para se fazer uma ação altruísta, beneficiando a outrem sem que nossa ação redunde em benefício próprio, é necessário haver um elemento dentro de nós que está acima das necessidades impostas por nosso corpo e pelos sentimentos advindos de nossa alma, como antipatias e simpatias. Um exemplo simples de uma ação dessas é uma doação completamente sem amarras, em que o receptor tem a total liberdade de usar o objeto ou quantia doada como bem lhe aprouver. Em seu livro Economia Viva (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1995) R. Steiner discorre sobre o que ele denominou de 'dinheiro de doação'.

Vê-se por tudo isso como a noção da existência do elemento 'espírito', como caracterizado, completando a trimembração do ser humano, é absolutamente essencial para se chegar ao ser humano global e compreender as suas manifestações que se pode observar com nossos sentidos. Conjeturamos que a ciência, limitada pela visão materialista – e que nem reconhece uma 'alma' –, ou uma psicologia estendida que se baseia exclusivamente no corpo e na alma, jamais serão capazes de levar a uma compreensão profunda do ser humano. Sem essa visão jamais teremos, por exemplo, uma educação adequada ao desenvolvimento amplo e harmonioso de cada ser humano, bem como uma sociologia e uma economia que permitam uma organização social mais sadia do que a que estamos vivendo, e que claramente está destruindo a sociedade em lugar de elevá-la.




Parte 2/3

2. Os 3 membros da alma

Em geral, quando existem 3 membros de algo formando uma totalidade, pode-se reconhecer 2 deles como sendo polares, com características opostas, e o terceiro contém características dos dois pólos. Assim, dos 3 membros da entidade humana, corpo, alma e espírito, o primeiro é polar ao último, e o do meio, contendo aspectos dos outros dois, faz a ligação entre eles, harmonizando o conjunto. De fato, a corporalidade é caracterizada, por exemplo, pela sua forma relativamente rígida. Em particular, o corpo físico é adaptado às condições do mundo físico em que vivemos e tem necessidadesadvindas disso. Já o espírito tem a característica de estar voltado não para o mundo material, mas para o espiritual, sendo versátil como as ideias que nele residem. Não é devido ao corpo que temos liberdade, que vai contra a rigidez, pois aquilo que se adapta totalmente às necessidades físicas não pode ser totalmente livre. Por exemplo, ninguém tem a liberdade de dar um pulo de 20 m de extensão, ou tem a liberdade de parar de beber ou de comer (até pode fazê-lo, mas aí destruirá seu corpo). Mas temos total liberdade no que se refere às atividades puramente espirituais, como concentrar o pensamento em um determinado motivo escolhido livremente entre vários. Essa liberdade pode refletir-se em ações físicas, como por exemplo nosso espírito decidir que vamos realizar uma tarefa física possível, como ler o capítulo de um livro sem interrupção; se o telefone tocar, podemos cumprir nossa decisão e não atendê-lo.

A alma encontra-se entre a corporalidade e o espírito, tendo características voltadas tanto a um como a outro. R.Steiner, com sua percepção clarividente, observou que a alma tem 3 membros ou constituintes, que ele denominou de Alma das Sensações, Alma Racional e da Índole, e Alma da Consciência, correspondentes aos originais em alemão Empfindungseele, Verstandes- und Gemütseele e Bewusstseinseele.

2.1 A Alma das Sensações

Esse membro de nossa alma é mais voltado para a corporalidade. Por meio dele podemos ter sensações interiores provocadas, por exemplo, por percepções sensoriais, como expusemos no item 1. É com essa parte da alma que começamos a ter uma vida realmente interior, não-física, porém dependente dos impulsos que nos chegam através do corpo físico. Neste, o sistema neuro-sensorial é o que está mais ligado à alma das sensações, transmitindo a ela tanto as impressões sensoriais como as interiores detectadas pelo sistema nervoso.

Os animais também possuem a alma das sensações. No entanto, a nossa tem aspectos diferentes, pois é influenciada pelas outras duas e pelo espírito. Por exemplo, podemos nos conscientizar das sensações que estamos sentindo, o que os animais não podem, pois não tem auto-consciência, provinda de outro membro da alma a ser visto em seguida.

Os sentimentos que temos em comum com os animais, como o medo, a dor, a simpatia ou antipatia, são manifestações da alma das sensações, podendo ser chamados de 'sentimentos inferiores'.

2.2 A Alma da Consciência

Passemos ao pólo oposto. Esta constituinte é voltada mais para o espírito. É ela que nos dá a possibilidade de termos auto-consciência, por exemplo de uma sensação que estamos sentindo. É com ela que podemos nos independizar totalmente da corporalidade, e viver numa introspecção no mundo de nossos pensamentos. É com ela que podemos observar o mundo espiritual, o que fazemos quando temos uma 'intuição', essa atividade interior anti-científica (no sentido da ciência clássica) pois é uma ideia que aparentemente vem 'do nada'. Em nosso modelo, na verdade a intuição é uma percepção do mundo espiritual das ideias. É com essa percepção, proporcionada pela alma da consciência, que temos uma 'nova ideia'.

Quando nos concentramos em nós próprios, em um processo meditativo, e depois de bastante treino, nossa alma da consciência pode começar a ter percepções conscientes e controladas de nossa alma, ou do mundo espiritual. Em contraposição, uma intuição é uma percepção não controlada. Para os leitores que já conhecem Antroposofia, é importante salientar que o que estamos chamando aqui de 'intuição' refere-se ao entendimento comum dessa palavra, e não um particular estado de consciência.

É também por meio de nossa alma da consciência que nossa individualidade superior se manifesta. Obviamente, os animais não possuem esse membro da alma, pois não tem nem liberdade, nem auto-consciência e nem individualidade superior no sentido humano. De fato, como veremos mais tarde, nesse sentido os animais não tem nem mesmo uma biografia.

2.3 A Alma Racional e da Índole

Steiner denominou esta parte da alma, em alemão, de 'Verstandes und Gemütsseele'. 'Seele' é 'alma', 'Verstand' é 'razão', mas 'Gemüt' não tem tradução direta, englobando aquilo a que se costumou traduzir por 'índole'. Justamente por ser uma parte intermediária, ela contém aspectos dos outros dois componentes da constituição humana global. A índole, mais voltada para a corporalidade, e a razão, mais voltada para o espírito.

É devido a ela que temos uma razão, a capacidade de raciocinar logicamente. Essa capacidade é que faz com que os seres humanos comecem a se distinguir essencialmente dos animais, que não possuem essa constituinte anímica, e é por meio dela que o espírito começa a se manifestar. A propósito, assumindo que o modelo de constituição humana apresentado aqui esteja correto, é indevido chamar o ser humano de 'animal racional'. Essa expressão tende a diminuir o ser humano, reduzindo-o a um animal, simplesmente com algumas características distintas. O fato de termos características comuns com os animais não justifica o uso daquela expressão. Mesmo fisicamente (por exemplo, na postura ereta e na forma da coluna vertebral) somos essencialmente diferentes dos animais, isto é, temos características que não ocorrem neles. Animais tem vários aspectos comuns com as plantas, como tecidos orgânicos, os princípios de crescimento, reprodução e regeneração, etc. No entanto, não denominamos os animais de 'plantas móveis', por que deveríamos denominar os seres humanos de 'animais racionais'?

O aspecto da índole dessa parte da alma está ligado aos hábitos e sentimentos, parte deles providos por nossa corporalidade. Por exemplo, a simpatia que sentimos por alguém que encontramos pela primeira vez provém de uma reação da alma à percepção do contato sensório, principalmente pela visão e, eventualmente, uma percepção inconsciente de sua alma. O sentimento de medo que sentimos ao nos depararmos com um perigo também depende de nossa percepção corpórea do objeto ou situação perigosos. Tanto as simpatias quanto o medo também são sentidos por animais. Mas um animal jamais pode sentir, com essa parte da alma como nós o fazemos, uma compaixão por alguém que está sofrendo. Até é possível que um animal tente ajudar um outro de mesma espécie que esteja sofrendo, mas não se pode dizer que se trata de uma ação movida pela compaixão. Antes, é uma ação automática, própria da espécie.

Quando lemos um romance ou uma biografia e nos emocionamos, estamos tendo sentimentos despertados por algo que o animal não pode produzir: uma imagem interior, por exemplo do personagem descrito. Essa imagem é formada em nossa alma e não é despertada por um impulso corpóreo exterior. Afinal, não se vê o personagem nas letras impressas, que são na verdade tinta sobre o papel, a 'letra morta'. O sentimento estético, assim como a compaixão, manifestações da Alma Racional ou da Índole, podem ser considerados como 'sentimentos superiores', que os animais não tem.

O nosso sistema rítmico, isto é, respiratório-circulatório, está intimamente associado a este constituinte da alma. De fato, ao termos uma emoção forte tanto a respiração como a circulação mudam de ritmo. Não é à toa que se associa o coração aos sentimentos e à coragem (como em 'Ricardo Coração de Leão'). Uma outra indicação é o fato de que, quando enfrentamos um perigo e sentimos um medo muito grande, o sangue deixa nossa periferia e tende a concentrar-se no nosso interior, em que o coração é o centro. Uma concepção materialista do ser humano poderia afirmar que nosso coração bate mais rápido por que a glândula adrenal soltou adrenalina no sangue. Mas o que fez com que essa glândula fosse ativada? Poder-se-ia dizer que foi um impulso do cérebro. Mas o que fez com que esse impulso aparecesse? Não pode ser simplesmente a percepção sensorial do objeto, pois ela é neutra e em si não nos faz sentir medo. Tentando seguir todos esses processos físicos, chegar-se-á sempre a um beco sem saída. O mesmo se passa com a visão: segundo a concepção de hoje, chegam à retina pacotes de ondas eletromagnéticas. O nervo óptico transmite sinais elétricos a alguma região do cérebro; neurônios do cérebro interagem também por meio de impulsos elétricos. Onde afinal está nossa percepção do objeto visto, a representação mental e as sensações que ele nos suscita? Parece-nos evidente que somente a hipótese da existência de processos não-físicos interagindo com esses processos físicos poderia esclarecer as nossas vivências sensoriais. Lembremos que o conhecimento que se tem do funcionamento neuronal é mínimo, não permitindo o estabelecimento de causas e efeitos mecanicistas entre uma percepção sensorial e uma reação fisiológica devido a um sentimento como o medo. A necessidade da hipótese da existência da alma não-física ainda é mais patente quando uma pessoa fica vermelha de vergonha ou mesmo 'roxa' de raiva. Por que sentimos vergonha? É a nossa Alma da Consciência, ao atuar com a Alma Racional (ao pensarmos nas conseqüências de nossos atos ou percebemos a falsidade de nossos argumentos) que nos faz reconhecer que cometemos um ato imoral. Isso faz com que Alma Racional e da Índole sinta o sentimento de vergonha e daí ative os vasos sangüíneos periféricos, que se dilatam dando a aparência de ficarmos vermelhos.

3. Desenvolvimento histórico

A história da humanidade é, como tudo dentro de uma visão realmente espiritualista, a manifestação do espírito. Steiner formulou interessantíssimas explicações para eventos históricos baseadas em suas percepções espirituais conscientes, usando os conceitos da constituição humana que ele introduziu. Por exemplo, ele mostrou quais os impulsos espirituais que envolveram o fenômeno Jeanne d'Arc, incompreensível para uma concepção materialista da história. Como uma simples pastora analfabeta e ignorante pôde comandar os exércitos franceses em sucessivas vitórias, traçando estratégias de batalhas contra os ingleses? No caso, houve uma inspiração divina que a orientava.

Mas o que nos interessa aqui é a explicação que Steiner dá de algumas mudanças históricas, verdadeiras descontinuidades, que ele constatou serem devidas ao início da plena manifestação de cada um dos 3 membros da alma que acabamos de examinar. Segundo ele, esses membros passaram a manifestar-se sucessivamente a partir de épocas razoavelmente precisas, e sua repentina manifestação é que ocasionou as mudanças históricas que passaremos a localizar. Vamos começar pela manifestação do constituinte da alma que foi desenvolvido em último lugar, e retrocederemos paulatinamente passando pelos outros dois.

3.1 O advento da alma da consciência

Esse advento deu-se no início do século XV. É por isso que aconteceu uma verdadeira descontinuidade na evolução cultural humana, representada pelo súbito aparecimento de um interesse científico pela natureza, por exemplo com Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1564-1642), os descobrimentos geográficos, a arte renascentista, em particular, a perspectiva geométrica – que oficialmente começa com Brunelleschi (1377-1446; veja-se o magnífico livro de Arthur Zajonc Catching the Light - The Entwined History of Light and Mind. New York: Bantam, 1995) e o súbito interesse em se registrar a autoria de obras de arte (como, por exemplo o conhecido monograma que Albrecht Dürer gravava em seus quadros e gravuras), etc.

Antes do século XV, o ser humano não tinha um afastamento suficiente em relação ao seu exterior, a ponto de investigá-lo cientificamente. Por exemplo, olhando-se para o céu ensolarado, claramente vê-se o Sol movendo-se durante o dia. É preciso muito isolamento pessoal em relação a essa impressão tão forte, é preciso ter muita capacidade de abstração em relação à realidade, para imaginar que, durante um dia, a Terra está girando em torno de seu eixo, e que o Sol está fixo em relação às estrelas.

É interessante notar que Copérnico formulou seu sistema heliocêntrico simplesmente para facilitar o cálculo de eclipses (isto é, uma atividade abstrata). Colocando o Sol no centro do sistema planetário, em lugar da Terra, ele simplesmente diminuiu o número de epiciclos, que eram círculos imaginários traçados pelos planetas durante sua suposta trajetória circular – seja em torno da Terra ou em torno do Sol –, círculos esses cujos centros não continham nada. Kepler (1571-1630), por seu lado, relutou muito em abandonar a tradicional ideia de que todos os movimentos planetários deveriam ser circulares, e adotar as órbitas elípticas que acabaram com os epiciclos, e só explicadas mais tarde, em 1687, pela teoria da gravitação de Newton. E ainda muito mais tarde, em 1851, Foucault introduziu com seu pêndulo a primeira prova experimental de que a Terra girava diuturnamente ao redor de seu eixo. Mas naquela época a teoria de Newton já era largamente admitida, e a maioria da humanidade estava satisfeita com uma explicação puramente abstrata levando ao modelo heliocêntrico, mostrando o quanto a separação em relação à realidade sensorial já tinha sido atingida.

Steiner afirmou que essa súbita mudança nos seres humanos foi devida ao início da manifestação da Alma da Consciência. Ela estará plenamente desenvolvida em cerca de mais 15 séculos. Assim, ele denominou esta nossa época de 'Época da Alma da Consciência'. Ela caracteriza-se justamente pela maior consciência de si próprio, maior liberdade, maior afastamento em relação à natureza e maior individualidade. Infelizmente, todas essas características podem ser exageradas, como por exemplo o individualismo levar a um egoísmo desenfreado. Na economia, temos essa situação desde o século XVIII, com as ideias de Adam Smith, que propugnou uma satisfação das ambições e egoísmos pessoais como meio de se atingir o bem-estar social geral, por meio de uma indefinida 'mão invisível', que acabaria por regular tudo. No entanto, seu enfoque, manifestado plenamente na 'selva capitalista', está claramente levando a um aumento da miséria e desigualdade sociais, bem como à destruição do mundo físico.

Devido ao desenvolvimento dessa parte da alma, o ser humano também se afastou dos mundo espirituais, os quais não mais percebe nem intuitivamente. Isso levou a um materialismo que nega totalmente qualquer origem ou característica espiritual do ser humano. A frase de Nietzsche (1844-1900), 'Deus está morto', seria inimaginável antes da Época da Alma da Consciência. Com isso o ser humano encontra-se só, abandonado pelos seres espirituais elevados que criaram sua essência espiritual 'semelhante a Deus' (e não o seu corpo físico semelhante aos de seres divinos, pois estes não tem corpo físico!). Esse abandono foi necessário, pois caso contrário o ser humano não poderia ter adquirido liberdade. Pode-se traçar um caminho progressivo, em que no início o ser humano era somente um ser espiritual, em contato direto com a divindade. No entanto, naquela época ele era inconsciente, sua individualidade não havia se desenvolvido e era totalmente dirigido – o que é magnificamente representado pela imagem bíblica do Paraíso. Aos poucos o ser humano vai se condensando (e toda a Terra e os outros seres físicos também), adquirindo sua corporalidade, tornando-se cada vez mais terreno. Ele é o último a se condensar a ponto de deixar fósseis, sendo precedido por uma materialização a esse ponto pelos animais – cujos fósseis aparecem, assim, anteriormente, dando a impressão errada de que os seres humanos foram os últimos a aparecer. Isso é correto quanto ao um corpo físico suficientemente materializado para deixar fósseis, mas não quando à essência espiritual: no começo havia o ser humano (espiritual).

Esse afastamento dos mundos espirituais, que se iniciou com aquilo que a Gênese coloca, sob forma de imagem, como a Tentação, já atingiu um ponto em que o ser humano deve começar a retornar àqueles mundos. A queda na matéria não foi iniciativa do ser humano. De fato, se ele era inconsciente de si próprio e não tinha liberdade, como retratado na imagem do Paraíso, ele não pôde ter sido responsável pelo que erradamente denominou-se o Pecado Original (em alemão, usa-se o mais adequado 'Erbsünde', 'pecado herdado' – os descendentes daqueles seres humanos primitivos herdaram sua queda na matéria). A 'culpa' de sua queda foi dos Deuses! Agora o ser humano deve voltar a ter contato com os mundos divinos, mas por livre decisão própria consciente. Ele pode contar com a ajuda de seres divinos, mas para isso ele deve, em liberdade e plena consciência, procurá-los. Estamos falando aqui em seres divinos que estão prontos a ajudar o ser humano, de acordo com um caminho de evolução cósmica global, e que, por não interferirem na liberdade adquirida, não podem forçá-lo a seguir esse caminho. Há, porém, outros seres divinos (isto é, sem corpo físico, com elementos constituintes 'superiores' aos do ser humano), que são contrários a esse desenvolvimento. Eles podem ser coletivamente classificados como o Mal, ao passo que os seres divinos que estão de acordo com uma evolução cósmica positiva podem ser coletivamente chamados de Bem. A existência de Bem e de Mal é absolutamente essencial para que o ser humano desenvolva sua liberdade: esta não tem sentido sem a possibilidade de escolha entre eles. Se não houvesse essa possibilidade de escolha, ainda seríamos inconscientes e estaríamos no Paraíso, entre "anjinhos de bata cor-de-rosa tocando lira, que chatice", como ironizava o Dr. Rudolf Lanz em suas palestras. Assim, o Mal foi uma necessidade! Como Mefistófeles diz a Fausto, perguntado quem era: "Sou parte daquela força que sempre quer o mal mas sempre acaba criando o bem" ("Ich bin ein Teil diejen'gen Kraft, die stets das Böse will, und stets das Gute schafft").

Não nos alongaremos muito mais sobre o Mal; vale a pena citar que ele tem vários aspectos.
Os mais visíveis nos dias de hoje são:

1. A tendência, mais comum hoje em dia, de separar totalmente o ser humano dos mundos espirituais, voltando-o totalmente para a matéria, por exemplo fazendo-o considerar-se como um animal (como é o caso da evolução darwinista) ou, pior ainda, como uma máquina (caso do campo da Inteligência Artificial, ver nosso artigo a respeito). Segundo Steiner, nesse caso "o ser humano perde-se no mundo".

2. A tendência de separar o ser humano totalmente da matéria, tornando-o um ser espiritual sem consciência e liberdade. Ela se manifesta, em parte, em tudo o que tem a ver com a diminuição da consciência, como entusiasmos ou fundamentalismos irracionais, drogas, propaganda, etc. Nesse caso, conforme Steiner, "o mundo perde o ser humano". Essas duas influências querem conquistar o ser humano para si, e em geral trabalham em conjunto, apesar de representarem pólos opostos.

3. A simples destruição do ser humano, como se pode ver em genocídios, guerras, a facilidade com que as pessoas se matam umas às outras, a destruição do corpo físico devido a várias formas de poluição, etc.

Somente uma concepção espiritualista como a que estamos expondo, voltada para a compreensão e não para o misticismo, pode reconhecer as primeiras duas influências, chegando ao necessário equilíbrio entre elas, isto é, entre o espírito e a matéria, e evitar a terceira. De fato, caindo-se sob a influência da primeira, pode-se considerar que o ser humano é uma máquina, mas aí acabam a moral e a ética, pois máquinas não as tem. A matéria é absolutamente essencial: é em nossa atuação no físico, por meio de nosso corpo físico, que temos a possibilidade de escolher entre vários caminhos; sem ele não poderíamos exercer o amor altruísta que, segundo Steiner, é a grande missão do desenvolvimento humano nesta época. Além disso, como vimos, o corpo físico é que possibilita o espelhamento e a conscientização de nossas sensações, sentimentos e pensamentos. Por outro lado, sem o espírito iríamos nos petrificar na matéria, virando autômatos-máquinas, e não haveria mais chance de desenvolvimento. A alma é necessária para estabelecer o necessário equilíbrio entre os dois; como envolve os sentimentos, é imprescindível, por exemplo, para que não se caia em ideias secas, sem vida. Em termos de ações, não devemos ser levados pelo coração (isto é, pelos sentimentos, pela alma), sem estarmos conscientes por meio do pensar (isto é, pelo espírito) do que estamos decidindo ou fazendo e suas conseqüências. Por outro lado, também não devemos decidir racionalmente, pelo pensar, sem que essa decisão seja frutificada pelo sentimento. Vamos dar um exemplo desta última situação, com o seguinte raciocínio sem alma: já que existe excesso de população no mundo, vamos acabar com a lei que proíbe uma pessoa de matar outra. É interessante notar que as leis sociais nunca são puramente racionais; sempre entra nelas um fator estranho ao puro pensamento, proveniente de como sentimos que as coisas devem ser.

3.2 O advento da Alma Racional e da Índole

Segundo Steiner, esse componente da alma começou a se desenvolver e atuar no ser humano ao redor do século VII a.C. De fato, aí também vemos uma descontinuidade histórica: começam a aparecer grandes personalidades em várias partes do mundo, mudando de maneiras especiais o rumo da cultura e da espiritualidade. No Oriente, onde salienta-se mais o aspecto da índole, através de um misticismo dirigido primordialmente aos sentimentos, temos o grande Buddha (nascido ao redor de 563 a.C.), cujo ideal era evitar os sofrimentos humanos, e também Lao Tse (~604 a.C.) e Confúcio (551). No Oriente Médio, os profetas bíblicos como Amos (~750), Jeremias (~626), Nahum (~612), Habacuc (~605), etc. Na Grécia, onde se salienta o aspecto racional, os filósofos com Feróquides de Siros (~550), Platão (438), Aristóteles (384) e os matemáticos como Tales de Mileto (~640), Pitágoras (séc. VI), mas o aspecto da índole também está presente, na fantástica arte grega, como com Ésquilo (~525), Sófocles (~496), Eurípides (~480) e Aristófanes (~448). É aí que aparece o conceito de Polis e cidadania, em lugar de se pertencer a uma tribo ligada por consangüinidade (como era o caso, por exemplo entre os antigos hebreus). É interessante observar-se como os diálogos de Platão parecem provir de um gozo da nova capacidade de raciocinar, em elucubrações mentais que se desenrolam continuamente, e Aristóteles estabelece uma 'lógica terrena', baseada no raciocínio formal. Já no Império Romano, aparece o conceito de cidadão do império. Em ambos os casos, o direito já não é mais dado pela divindade, como anteriormente (por exemplo, nas leis sociais de Moisés, ou as ditadas pelos antigos Mistérios), mas é produzido pelos seres humanos.

Nessa época, principalmente no seu início, o ser humano ainda se sentia ligado à divindade, mas já não a vivenciava diretamente, daí por exemplo os mitos gregos, que faziam uma imagem errônea dos seres divinos com os mesmos problemas e fraquezas que o ser humano. Este ainda ouvia a voz divina, mas em estado de transe, como no caso dos profetas hebreus e das pitonisas gregas. Note-se que nenhum deles diz "em verdade, eu vos digo"; eles sentem-se como meros transmissores da voz divina. Homero inicia a Ilíada e a Odisséia agradecendo a inspiração dada pelas Musas, isto é, pela divindade.

É impressionante ver a evolução do teatro grego, de Ésquilo a Eurípides: no primeiro, o ser humano ainda se sente envolvido pela divindade, representada pelo coro, e no último já se nota sua separação da mesma. Mas mesmo em Eurípides, o ser humano não se sente dono de seu destino – por exemplo, Édipo não consegue evitá-lo. Os personagens tem problemas padrões, não individuais; daí a psicologia moderna tê-los adotado também como padrões. Já em Shakespeare, com o advento da Alma da Consciência, temos indivíduos com seus problemas únicos, como Hamlet ou Lear. No teatro grego existe uma revolta contra a divindade, por não mais se vivenciá-la e ainda não se conseguir compreendê-la, o que só começa por ação da Alma da Consciência, principalmente desde o fim do século passado (donde o aparecimento de alguém como Steiner, que consegue pesquisar conscientemente e conceituar o mundo espiritual).

3.3 O advento da Alma das Sensações

Steiner coloca esse advento ao redor do século XXX a.C. A Alma das Sensações leva a uma vivência interna do mundo. Ainda não há nada racional. Por exemplo, os blocos da pirâmides foram esculpidos a fim de se encaixarem perfeitamente, a partir de uma sensação do que a pedra é, e não de cálculos.

A cultura dessa época situa-se essencialmente no Médio Oriente, onde temos as culturas caldéia, babilônica, hebraica e egípcia. Também aparecem grande personalidades, como Hamurabi, Abraão, Moisés e vários faraós-sacerdotes no Egito. Os hebreus tornam a divindade uma abstração do ponto de vista exterior, pois devia ser procurada no íntimo de cada um, o que foi essencial para que ocorresse um real afastamento do mundo espiritual. Além disso, pela primeira vez introduzem uma conceituação do que vem a ser uma pessoa boa e uma má: se os mandamentos e os preceitos de comportamento social são seguidos, a pessoa é boa. É também interessante ver pelos relatos bíblicos como a divindade vai progressivamente se afastando.

Seria muito interessante e importante alongarmo-nos na descrição dessas 3 épocas, mas isso ultrapassaria a simples ilustração de como os conceitos de organização supra-sensível do ser humano podem levar a uma fascinante compreensão da história, como introduzido por Steiner. É também reconfortante encontrar conceituações mais substanciais e profundas, que partem de um ser humano diferente do atual. Ao contrário, uma explicação marxista, por exemplo, reduz todos os acontecimentos históricos a um conceito que pode nos parecer natural com nossa constituição atual, como o de luta de classes. Mas ele simplesmente torna a história extremamente inverossímil e cacete quando aplicada aos homens das cavernas, à antiga Índia, aos antigos gregos, à Idade Média, etc. como se os problemas fossem sempre os mesmos.

Para um aprofundamento nas concepções de Steiner sobre o desenvolvimento histórico, veja-se o excelente livro de Rudolf Lanz, Passeios Através da História à Luz da Antroposofia (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1995).

4. Relacionamento social

Neste item vamos expor algumas ideias desenvolvidas por nós através de reflexão, observações e vários cursos e palestras que demos sobre assuntos correlatos.

Os 3 membros da alma humana correspondem àquilo que denominamos de 3 capacidades sociais.

4.1 Alma das Sensações

Com a Alma das Sensações podemos exercitar o que denominamos de Interesse e Sensibilidade Sociais.

Ter Interesse Social significa abrirmo-nos para o outro, interessando-nos pela sua vida, sua biografia, seus problemas. Da mesma maneira como o advento da Alma das Sensações fez o ser humano interessar-se pelo mundo, por meio dela podemos nos interessar pelas outras pessoas. Alguns tem esse interesse inato, mas ele está desaparecendo devido ao isolamento produzido pela Alma da Consciência. Nota-se isso principalmente na Europa Central. É preciso cada vez mais exercitá-lo, a partir de uma decisão consciente de nosso espírito.

O interesse social corresponde a uma orientação do nosso interior para o exterior. A orientação oposta, o de absorvermos algo, corresponde ao que denominamos de Sensibilidade Social. Por meio dela detectamos as necessidades e habilidades do outro. Elas podem ser corporais (alguém precisa de nossa ajuda fisicamente, ou devemos criar o espaço para que ele exercite suas habilidades físicas que não estão conseguindo se manifestar), anímicas (alguém necessita de uma palavra nossa de conforto, precisa sentir que alguém compreende seus problemas, ou tem a habilidades de atuar dessa maneira), ou espirituais (por exemplo, a necessidade do outro de que lhe demos uma explicação ou de um conselho mostrando vários caminhos a seguir, a habilidade que ele tem em fazer essas ações, ou a habilidade de criar em alguma área social, artística ou científica).

Quantas vezes entramos com nosso carro em um posto de gasolina, o frentista enche nosso tanque e vamos embora sem ao menos ter olhado para seu rosto? Isso mostra falta de interesse social, e falta de sensibilidade por não percebermos que ele precisa de nosso pagamento, talvez de uma gorjeta, talvez de um sorriso, de um cumprimento, de um elogio ou de um desejo de bom dia. Se o ignorarmos, estaremos tratando-o como uma extensão da bomba de gasolina, como uma máquina. Quem sabe com isso estaremos tornando sua vida miserável? Ignorar o outro, principalmente quando temos um contato com ele, é uma manifestação de atrofia da Alma das Sensações. Mas a atenção que damos ao outro só é uma manifestação dela se não for devida a uma obrigação social ou um ato automático, mas um genuíno interesse e uma sensibilidade pelo outro.

O interesse pelo outro e a percepção de suas necessidades está obviamente ligada à nossa capacidade corpórea de nos abrirmos sensorialmente para a outra pessoa. Lembremos que o aspecto anímico da Alma das Sensações está mais relacionado com nossa parte corpórea.

4.2 Alma Racional e da Índole

Socialmente, o uso desse membro da alma leva à compaixão e à 'com-alegria' (palavra inventada pela Dra. Sonia Setzer). Ambas correspondem à capacidade de se perceber e sentir (até certo ponto) o sentimento do outro. Se este está sofrendo, sentindo compaixão sofremos com ele. Se está alegre, sentindo com-alegria alegramo-nos com ele. Aqui também temos gestos de interiorização (sofrer) e de exteriorização (alegrar-se).

Essa capacidade de sentir com o outro não advém de uma pura percepção sensorial, mas de uma capacidade de estabelecer um contato anímico com a outra pessoa. Lembremos que a Alma Racional e da Índole é um elemento intermediário na constituição anímica, estando assim mais relacionada com a alma como um todo.

Acompanhando os sentimentos e alegrias do outro aumentamos a nossa possibilidade de compreender os seus problemas e criar soluções para eles.

4.3 Alma da Consciência

Como vimos, nosso espírito manifesta-se diretamente através da Alma da Consciência. Do ponto de vista social, isso significa exercitar o que denominamos de Responsabilidade e Ação Sociais. É com nosso espírito, por meio da Alma da Consciência, que sentimos a responsabilidade moral de agirmos socialmente. Mas não adianta somente sentirmos essa responsabilidade: é necessário transformá-la em ação. Toda ação consciente, resultante de uma decisão consciente, é manifestação de nosso espírito, por meio da Alma da Consciência que, justamente como vimos, está mais voltada para ele.

Aqui também temos o gesto interior, de sentir a responsabilidade, e o exterior, de executar uma ação.

4.4 Síntese

Temos, assim, 3 aspectos da atividade social. Inicialmente temos que nos interessar pelo próximo, e ter a capacidade de detectar quais são suas necessidades e habilidades. Em seguida (ou em paralelo) devemos sentir seus sofrimentos e alegrias. Finalmente, não basta ficarmos apenas nesses aspectos: devemos sentir a responsabilidade de ajudar o outro satisfazendo suas necessidades e possibilitando que exercite suas habilidades, colocando nossas habilidades a serviço dele, executando assim alguma ação social.

A posse de apenas um dos 3 aspectos pode levar a aberrações. Hitler certamente tinha uma enorme sensibilidade social, pois sabia levar o seu povo e atender suas necessidades tanto físicas quanto emocionais – mas de maneira nenhuma suas necessidades espirituais. Tinha até ação social, pois soube executar obras que levaram a uma melhora de vida de seu povo, massacrado pelas estúpidas conseqüências do tratado de Versailles. Mas certamente ele não tinha compaixão – nem para com seu próprio povo, pois ao ver que a guerra estava perdida, considerou que o povo alemão não merecia mais existir e deu ordens para sua aniquilação, no que não foi obedecido por seus generais (S.Haffner, Anmerkungen zu Hitler. Frankfurt: Fischer, 1990). O seu exemplo nos mostra o que significa não ter uma visão correta do que é o ser humano: ele tratou dezenas de milhões de pessoas como animais (por exemplo, transportando-os em vagões de gado e literalmente enjaulando-os em campos de concentração). Ele não reconheceu a existência do espírito dentro do ser humano. As influências místicas no governo nazista foram bastante estudadas; é um bom exemplo de que o misticismo não é mais adequado aos dias de hoje. Ele dirige-se tipicamente à alma, em geral através de emoções e um bem-estar interior, mas não reconhece o espírito, que busca a compreensão da verdade, como aqui caracterizado.

Essa falta desse reconhecimento é uma das características trágicas de nossos dias. Não há nem o reconhecimento de nossa constituição anímica como componente não-física real. Para a psicologia moderna, a alma, quando muito, é uma abstração, uma ferramenta conceitual – caso contrário ela não usaria tanto os animais para tirar conclusões sobre o ser humano. O que há é uma visão totalmente materialista do ser humano, negando qualquer componente de nossa constituição que não seja resultado de processos físico-químicos. Isso leva a uma concepção muito pior do que a de Hitler, de achar que somos animais. Animais tem alma, como vimos, e pode-se ter uma atitude moral em relação a eles: não matá-los inutilmente ou por prazer (esporte de caçar), não maltratá-los, etc. A própria tendência de preservação de espécies como as baleias, sem uma justificativa científica (elas estão no fim da cadeia alimentar), mostra o desenvolvimento positivo de uma sensibilidade anímica para com a natureza, origem profunda, em nosso entender, de todo o movimento ecológico.

A concepção materialista do ser humano e do universo só pode levar a uma visão de que eles são máquinas. No entanto, não pode haver ética ou moral em relação às máquinas. Pode-se amar animais, mas amar uma máquina é uma aberração.

Conjeturamos que a concepção do ser humano como máquina levará a desastres sociais muito maiores que os causados pelo nazismo e pelo comunismo, marcas registradas do século que passou. A solução é desenvolver-se uma visão não materialista do universo, e em particular do ser humano. Mas essa visão tem que ser consciente, baseada em compreensão, e não mística, baseada em fé ou dogmas religiosos. Esperamos estar contribuindo para mostrar que existe a possibilidade de se desenvolver uma visão de mundo ('Weltanschauung') desse tipo, e como isso traria benefícios sociais.

5. Os 3 membros da corporalidade

Vamos nos aprofundar em certos aspectos da constituição não-física do ser humano. O leitor atento pode ter formulado logo no início deste texto uma dúvida: e os aspectos vitais? Será que aquilo que chamamos de 'vida', por exemplo em uma planta, é devida a fenômenos exclusivamente físico-químicos? É lógico que não – para a ciência materialista, o fenômeno 'vida' é uma grande incógnita. No entanto, como foi visto, afirmamos que as plantas não tem alma. Então onde estão esses processos vitais e quais são suas causas? Para entrarmos na questão deles e da vida, e em outros processos que abordaremos mais adiante, é necessário tratar de 3 membros da corporalidade, também conceituados por Rudolf Steiner.

5.1. O Corpo Físico

Observemos um ser humano morto recentemente. O que podemos ver é seu puro Corpo Físico sem nenhuma manifestação vital: ele não respira, seu coração não bate, não há metabolismo. Ele está totalmente entregue às forças da natureza, que decompõem seu corpo.

5.2 O Corpo Etérico

Observemos agora um jovem dormindo. Contrariamente ao morto, os processos vitais estão se passando normalmente: ele respira, há batimentos cardíacos, o metabolismo segue seu curso (digestão, regeneração de órgãos e tecidos), ele cresce e, principalmente, algo atua contra as forças da natureza e seu corpo não se decompõe.

Rudolf Steiner diz que uma observação clarividente pode constatar que nesse corpo físico dormindo atua um segundo elemento corpóreo, agora não-físico, que ele denominou, seguindo uma certa tradição esotérica, de Corpo Etérico. É ele que é responsável por todas as funções vitais que mencionamos, e ainda pelo estabelecimento e manutenção das formas orgânicas do corpo físico; daí Steiner tê-lo denominado também de Corpo das Forças Plasmadoras. De fato, como é possível explicar por processos puramente físico-químicos que as orelhas, que não param de crescer, mantêm uma forma razoavelmente simétrica? Não adianta dizer que isso é devido ao DNA. Como chamou a atenção R.Sheldrake em seu livro A New Science of Life (Los Angeles: Tarcher/St.Martin 1987), o DNA na ponta de um dedo é o mesmo que no lóbulo da orelha, no entanto num caso ele 'produziria' um dedo e na outra o lóbulo. Aliás, sabe-se que uma mudança no DNA de certas plantas pode produzir alterações em suas formas, mas não se sabe com exatidão qual o processo que faz o DNA regular a forma durante todo o crescimento e a regeneração.

O Corpo Etérico estabelece e regula a forma do Corpo Físico, e é responsável pela regeneração de órgãos e tecidos, por meio do metabolismo, e também pela hereditariedade. Somente o DNA não leva à hereditariedade; é necessário algo que leve do DNA à manifestação da mesma. Afinal, o DNA é como um modelo; é preciso uma atuação de algo sobre ele para que ele produza, por exemplo, um órgão, assim como uma forma de bolo sozinha não produz um bolo – para isso é preciso uma cozinheira que usa a forma mas nela coloca os ingredientes, leva-o ao forno, etc. O interessante dessa metáfora é que cada vez que ela usa a forma, faz um bolo um pouco diferente – ou até muito diferente, dependendo dos ingredientes e das ações que toma para fazê-lo. Podemos ainda modificar essa imagem associando o DNA aos ingredientes do bolo: é necessário alguém que os misture e uma forma para dar-lhe a forma e a estrutura finais.

Vejamos o que aquele jovem dormindo não tem. Ele não faz movimentos voluntários, não tem consciência (não se sente dor em sono profundo), nem percepções e sentimentos. Estes são devidos a mais um membro da corporalidade – mais adiante faremos uma distinção em relação à atividade da alma, na qual colocamos alguns desses processos.

5.3 O Corpo Astral

Observemos em seguida uma criança de poucos meses acordada. Nela temos todos os processos vitais de uma pessoa dormindo, mas temos também movimento (pelo menos dos bracinhos e perninhas, e também do queixo) e, principalmente, consciência, percepção sensorial e sentimentos. Essas atividades adicionais são devidas a um terceiro membro da corporalidade, denominado por Steiner de Corpo Astral. Como o corpo etérico, ele também não é físico, é supra-sensível. Mas é de uma 'substancialidade' não-física diferente da substancialidade do corpo etérico, e mais sutil da que deste.

É devido à presença do corpo astral que o ser humano tem as manifestações que reconhecemos na pequena criança desperta, e que não ocorrem em uma pessoa dormindo.

O leitor atento observará que algumas dessas manifestações são as de ter percepções sensoriais e sentimentos. Ora, quando falamos da Alma das Sensações, referimo-nos ao fato de que é justamente devido a ela que temos as sensações interiores provocadas, por exemplo, pelas percepções sensoriais. Pois bem, o Corpo Astral pode ser considerado o veículo não-físico das sensações. A vivência interior das mesmas é feita pela Alma das Sensações. É uma situação análoga à do olho e da visão. O olho é o veículo dos impulsos luminosos, mas certamente não é o olho que vê: a imagem é formada interiormente. Isso é feito pelo cérebro, no entender dos cientistas materialistas, sem poderem-no provar. É feito pela Alma das Sensações, diria o espiritualista, também sem podê-lo provar fisicamente, pois não é um processo físico; seria necessário desenvolver órgãos de observação supra-sensíveis para se poder observar esse processo.

Podemos agora ser um pouco mais precisos com mais uma característica animal e humana: os instintos não se localizam na alma, mas no Corpo Astral. De fato, os instintos tem um caráter de permanência, eles estão de algum modo incorporados às características não-físicas dos seres humanos. Por outro lado, a alma está mais afeita a reações interiores.

5.4 O 'Eu'

Mas o que uma criança de poucos meses não tem que um adulto acordado tem? Ela não tem auto-consciência: apenas aos 3 anos uma criança que não teve uma aceleração indevida de seu amadurecimento (por exemplo, forçada pela TV ou pelo uso de computadores) refere-se a si própria como 'eu'. A criança de poucos meses não tem posição e andar eretos, fala, pensamento, liberdade, responsabilidade, e nem manifestação de uma individualidade superior – isto é, aquela que está além dos traços físicos individuais, seus gostos e instintos particulares.

Steiner acrescenta mais um quarto elemento à constituição humana, que denominou de Eu, e que não mais considerou como sendo corpóreo como os três anteriores, e sim puramente espiritual. É devido a esse Eu que o adulto tem todas as características que não encontramos na criança pequena. Para simplificar, vamos considerar que esse Eu é aquilo que chamamos de Espírito na trimembração formada com a alma e o corpo. Sua 'substacialidade' é ainda superior, mais sutil, do que a do Corpo Astral. É por meio dele que o ser humano comunga com os mundos espirituais, o mundo das ideias, como caracterizamos ao abordar o Espírito.

Cada ser humano tem um 'Eu' individual, distinto dos outros. É ele que denominamos de 'individualidade superior'.

5.5 Síntese

Temos, portanto, 3 membros da corporalidade: o Corpo Físico e os outros 2 não-físicos, o Etérico e o Astral. O único que é físico, e onde se encontram todos os processos físico-químicos, é o primeiro. Os outros 2 não são físicos, podendo-se dizer que são compostos de uma 'substancialidade' não-física etérica e astral, respectivamente. Com o Corpo Etérico temos principalmente as funções vitais, e com o Astral principalmente a consciência. Um quarto elemento, não mais corpóreo, o Eu, introduz as manifestações puramente espirituais, como a individualidade superior, a auto-consciência, a liberdade e a moral. Denomina-se de quadrimembração a organização humana incorporando os 3 membros da corporalidade e o Eu.



Parte 3/3



6. Os reinos da natureza

A partir dos 3 aspectos da corporalidade humana e mais o seu espírito, ou Eu, podemos compreender por que há 4 reinos distintos na natureza.

6.1 O reino mineral

Os minerais têm apenas um Corpo Físico. Eles estão sujeitos totalmente às leis da natureza, sendo imutáveis por si próprios: é necessário haver uma ação externa ao mineral para que ele mude de estado (posição, temperatura, movimentos, formas, organização química). De fato, não se pode dizer que um cristal cresce do mesmo modo que um ser vivo. O primeiro aumenta por deposição externa, o segundo por uma transformação interior.

Quanto à forma, o mineral ou é amorfo ou tem uma forma cristalina, geométrica. Ambos são bem distintos da forma orgânica dos seres vivos. A forma cristalina é devido a forças físicas atuantes interiormente no cristal.

Finalmente, o mineral tem composição inorgânica, ao passo que o ser vivo tem composição orgânica.

6.2 O reino vegetal

As plantas têm, além de um Corpo Físico, também um Corpo Etérico, de 'substancialidade' supra-sensível. Por isso elas têm vida e todas as suas manifestações: crescimento interior, troca gasosa (ligada parcialmente à fotossíntese), reprodução, regeneração, forma vegetal típica (como já dissemos anteriormente, é necessário partir sempre da observação dos casos mais gerais, mais completos, e não das formas de transição – estas devem ser compreendidas a partir das mais gerais), com raiz, caule/tronco/galhos, folhas, flores e frutos, tecidos orgânicos, nascimento e morte.

O Corpo Físico da planta tem forma bem distinta daquele do mineral justamente devido à atuação do Corpo Etérico – a presença de um constituinte superior modifica todos os inferiores. O Corpo Etérico interage com o meio ambiente através do Corpo Físico da planta. Por isso, uma mesma espécie de planta pode assumir formas um pouco diferentes conforme a região (p. ex., ser mais ou menos alta ou grossa, chegar a desenvolver flores, etc.).

Como é o Corpo Etérico, supra-sensível, que dá vida a uma planta, e produz todas as suas manifestações vitais, conjeturamos que a ciência materialista jamais chegará a uma compreensão total dos processos e das formas vegetais.

6.3 O reino animal

Vamos também partir da observação dos animais mais completos, neste caso os mamíferos. Os animais têm, obviamente, um corpo físico. Eles têm vida e as manifestações vitais que a planta também tem, se bem que em outra forma. Mas o animal tem mais um constituinte, que a planta não tem: o Corpo Astral, 'superior' ao Etérico. A sua presença modifica os Corpos Etérico e Físico em relação às plantas, daí por exemplo a forma distinta dos animais.

É devido ao Corpo Astral que o animal tem movimento, inclusive independente de estímulos exteriores: se um animal tem fome, sairá à procura de alimento independente de sentir, por exemplo, o cheiro deste. Mas além disso, o Corpo Astral permite ao animal ter sensações, sentimentos, instintos, manifestação exterior através de sons (piado, mugido, urro, etc.). É por meio de sua astralidade que o animal manifesta seus sentimentos empregando sons, como um uivo de dor, um rosnado de ameaça, etc. Devido a ela, um cachorro pode abanar o rabo manifestando satisfação.

Quanto à forma, é importante notar o aparecimento de órgãos ocos (coração, rins, etc.). Aparece também a respiração rítmica, distinta da troca gasosa das plantas.

A presença do Corpo Astral faz com que o Corpo Etérico se impregne mais no Corpo Físico do que na planta. Com isso, a capacidade do segundo de atuar no físico diminui, de certa maneira. É por isso que, num mamífero, se se cortar uma pata ela não se regenera mais. Nesse sentido, a capacidade de regeneração dos tecidos vegetais é muito maior – devido a um 'distanciamento' maior do etérico em relação ao físico, podendo aquele mudar muito mais este último. A capacidade de regeneração de diferentes espécies de animais pode justamente ser compreendida pela maior ou menor penetração do seu Corpo Etérico no Físico, produzida pelo Corpo Astral. É óbvio que essa penetração acaba por influenciar a forma do tecido físico, mas uma determinada forma ou constituição desse tecido não é a causa, e sim o efeito da atuação supra-sensível dos outros dois corpos.

Nos animais, aparece algo inexistente na planta: a lembrança, no caso, repetição de sensações (ver o tiem 1.3). Treinando-se um rato a caminhar num labirinto em busca de um alimento, ele repetirá o caminho certo, tendo ocorrido um processo de aprendizagem inexistente nas plantas.

Nos animais ocorre ainda algo que não há nas plantas: alternância de estados de consciência, entre sono e vigília. De certo modo, a planta tem permanentemente uma consciência de sono profundo. A explicação sobre a diferença entre esses estados, um grande mistério para a ciência corrente, é relativamente simples usando-se os corpos não-físicos. Dá-la-emos, adiante, no item 7 .

Talvez ainda valha a pena citar uma explicação de Steiner sobre o fenômeno da dor. Quando há um ferimento, o animal sente dor. Ela ocorre pois o Corpo Etérico não consegue manter a forma do Corpo Físico, e reage a isso, o que é percebido pelo Corpo Astral como dor. Por meio de ação química ou física (por exemplo, pelo frio) pode-se alterar a interação dos 3 corpos de um animal, e com isso ele pode deixar de sentir dor.

6.4 O reino humano

O ser humano tem, além dos 3 constituintes corporais, os 3 aspectos da alma e ainda o espírito. A Alma Racional e da Índole, a Alma da Consciência e ainda o espírito fazem com que ele se distinga dos animais. Como vimos, a presença de constituintes superiores modifica os inferiores. Assim, já no seu Corpo Físico notamos diferenças fundamentais do ser humano em relação aos animais. Temos uma postura ereta, em forma de I (não é por coincidência que a palavra 'eu' em várias línguas começa com o som de I: 'ich', 'iá', 'io', 'yo', etc. e no inglês a própria palavra para 'eu' é um I!). Essa posição ereta, inexistente nos vários animais (atenção, as aves são bípedes mas não têm posição ereta, veja-se a forma de sua coluna vertebral; os macacos e os ursos podem ficar eretos por alguns instantes, mas logo apoiam-se nas patas dianteiras, sua posição normal de se locomover – sua coluna vertebral não tem a forma de duplo S como nos seres humanos), coloca o ser humano em uma situação de independência em relação à força da gravidade, que é tão sentida pelos animais que eles normalmente se curvam. Para ficarmos em pé precisamos estar em estado de vigília, isto é, ter toda a nossa constituição física e supra-sensível harmonicamente em funcionamento (a esse respeito, veja-se o item 7, sobre o sono). É indevido dizer que na origem éramos quadrúpedes e nossa posição ereta é 'anormal', e por isso temos problemas de coluna. Uma outra aberração é dizer que ficamos eretos quando nossos ancestrais desceram das árvores, pois eretos enxergamos mais longe – nesse caso deveríamos ter, digamos, pescoço de girafa!

Uma outra distinção do ser humano é não ter um pelo ou couro protetor, como os mamíferos, nem escamas ou penas. Esse corpo desnudo do ser humano e suas desvantagens é uma das grandes incógnitas para os evolucionistas darwinistas.

Essa questão da pele desnuda nos leva a um outro ponto. Uma outra característica da forma física única no ser humano é o fato de ele manter a sua forma embrionária, como no caso das mãos, que não são nem um pouco desenvolvidas em comparação com as patas dianteiras dos animais. Justamente por não serem desenvolvidas, não serem especializadas e permaneceram com uma forma quase embrionária é que podemos fazer com elas as coisas sutis que realizamos, desde pintar e tocar violino até acariciar.

O ser humano nasce totalmente indefeso e sem especialização (além de chorar e mamar). Já os animais nascem especializados – leva algumas horas para um potrinho pôr-se de pé, e pouco tempo para um patinho nadar. Há uma espécie de macaco que, ao nascer, já tem tanta força nas patas dianteiras que logo se agarra à mãe, podendo mamar enquanto ela salta de galho em galho.

É justamente uma característica humana levar muito tempo para amadurecer. É interessante que nos animais a maturidade sexual indica que estão adultos. No ser humano atual, quando essa maturidade se dá ao redor do 14 anos, faltam ainda cerca de 7 para que ele seja considerado adulto responsável. Essa idade de 21 anos para a maioridade civil provém de uma sabedoria antiga, que corresponde a uma realidade do desenvolvimento supra-sensível de cada ser humano (ver o item 11 abaixo). É nessa idade que no jovem o Eu passa a manifestar-se plenamente. Qualquer aceleração indevida do amadurecimento de uma criança ou jovem pode ter implicações trágicas para a vida futura; metaforicamente, é como se tivesse havido uma 'animalização' da pessoa. Os meios eletrônicos produzem justamente essa aceleração indevida (ver a respeito vários artigos em meu site, bem como meu livro Meios Eletrônicos e Educação: una visão alternativa, 3ª ed. São Paulo: Ed. Escrituras, 2005).

Uma outra característica humana é a fala, inexistente nos animais. Os primatas, por exemplo, não têm o palato côncavo como nós, essencial para a fala. Uma outra é o pensar. Por meio do pensar é que o ser humano tem auto-consciência e pode agir em liberdade (quando escolhe, pelo pensar, uma dentre várias ações possíveis). De fato, os animais sempre reagem automaticamente em cada situação. Só o ser humano pode pensar de antemão na conseqüência de seus atos e decidir contrariar um impulso interior que o levaria a exercer uma certa ação. É o caso de uma pessoa glutona que, por motivos estéticos, resolve fazer um regime rigoroso.

Finalmente, como foi visto no item 1.3, uma característica essencialmente humana é a memória. Sua sede está no corpo etérico, mas quem a consulta é o Eu. Hoje em dia, a especulação que faz a ciência corrente é que a memória está no cérebro. No entanto, não se pode localizar nele as mais simples manifestações de memória. Por exemplo, não se tem a menor idéia onde e como é armazenado nele o número 2, muito menos o numeral correspondente (que é um puro conceito, sem representação física!). O que se sabe é que certas regiões do cérebro são mais ativadas quando se têm certas lembranças (por exemplo, as áreas para a memória auditiva e a visual são distintas), que se houver lesão de certas áreas do cérebro perdem-se certas capacidades de memória, etc. No entanto, não é possível tirar daí uma relação de causa-e-efeito, isto é, que essas lembranças estejam armazenadas nessas áreas; o máximo que, cientificamente, poder-se-ia afirmar, é que essas áreas estão envolvidas no processo de lembrança. A hipótese de que o 'armazenamento' se dá no corpo etérico, isto é, em algo não-físico, não contradiz, portanto, o conhecimento científico de hoje. Contradiz, isso sim, o julgamento científico que se faz a respeito.

Há várias evidências para a memória não ser física – e muito menos que ela segue a metáfora computacional, tão apreciada hoje em dia. Por exemplo, aparentemente a memória é infinita, e o ser humano guarda todas as sua vivências. Poucas delas são guardadas no consciente, podendo ser consultadas pelo Eu; a maior parte fica no inconsciente, mas podem ser lembradas em casos de hipnose, por exemplo. Qualquer um pode fazer uma experiência simples: olhar para um objeto qualquer, fechar os olhos e tentar lembrar dos seus detalhes. Logo percebe-se que a memória não é tão nítida quanto a percepção visual. Do ponto de vista do modelo aqui apresentado, a gravação no corpo etérico não se dá com a nitidez da percepção, ou a percepção da memória nesse corpo não pode ser feita pelo Eu com aquela nitidez. Ora, pelo modelo computacional, não haveria nenhuma razão para não se 'armazenar' e posteriormente consultar fisicamente todos os detalhes! Para usar um argumento evolucionista-darwinista, tão em moda hoje em dia para especular sobre qualquer processo dos seres vivos, o ser humano que guardasse fisicamente mais detalhes em sua memória teria claramente vantagens sobre os que não pudessem fazê-lo, isto é, paulatinamente seria atingido o armazenamento total da perceção sensorial. Note-se que, se o objeto observado for uma figura geométrica, pode-se lembrar dela com todos os detalhes, pois ela pode ser reconstruída no pensamento pelos seus conceitos (não-físicos!). Uma outra evidência é o esquecimento: no modelo computacional, ou algo está gravado, ou não está. Se algo está gravado, pode ser bloqueado ou desbloqueado por algumas ações, mas não temos a sensação de 'desbloquear' um acesso quando de repente, sem nenhuma causa aparente, voltamos a lembrar de algo esquecido (o nome de uma pessoa, por exemplo).

O cérebro físico é necessário pois, segundo Steiner, ele funciona como se fosse um espelho, permitindo a consciência; sem uma certa área do cérebro a memória continua existindo, mas ela não pode ser mais consultada pois perde-se a consciência que permite controlar essa consulta.

Nos exemplos que demos, a gravação na memória do Corpo Etérico provém de percepções sensoriais. Mas nele podem ser também gravadas as sensações e sentimentos vivenciados pela Alma das Sensações por meio do Corpo Astral, como por exemplo o gosto de uma fruta, uma dor em algum órgão, um medo, etc.

Vê-se que, realmente, o ser humano não é um animal. Assim como o animal e a planta são seres de naturezas essencialmente diferentes, como se pode constatar pelas suas manifestações (agora sabemos por que: um tem o Corpo Astral, e o outro não), o animal e o ser humano e são seres também de naturezas essencialmente diferentes, como também se pode constatar pelas suas manifestações (agora sabemos por que: um tem um Eu, e o outro não). A ciência corrente, materialista como é, tentou por meio do darwinismo mostrar que o ser humano é um mero animal, com algumas características 'um pouco' diferentes'. Hoje em dia, a área científica da 'Inteligência Artificial' (as aspas foram propositais – não se sabe o que é inteligência, como ela pode ser artificial?) procura provar que o ser humano é uma máquina, o que é, para começo de conversa, uma expressão absolutamente errada do ponto de vista linguístico, pois todas as máquinas foram projetadas e construídas, e nenhum ser humano o foi. Para maiores detalhes, inclusive do ponto de vista espiritualista, veja-se o artigo do autor "I.A. – Inteligência Artificial ou Imbecilidade Automatizada? As máquinas podem pensar e ter sentimentos?", em seu site.

7. Sono e sonho

A partir da constituição quadrimembrada do ser humano, pode-se compreender o que se passa no sono. Como vimos em 5.2, observando-se um jovem dormindo nota-se que ele tem a manifestação de todas os seus processos vitais, como respiração, crescimento, etc. Mas ele não tem consciência, movimento normal, etc. Também não pensa e não apresenta a manifestação de sua individualidade superior. Tudo se passa como se o seu Corpo Astral e seu Eu não se manifestassem. Steiner afirma que na verdade existe no sono profundo uma separação desses dois em relação aos Corpos Físico e Etérico – não total, mas o suficiente para que o Corpo Astral não se manifeste, e com ele o Eu. É interessante notar que várias vezes, quando acordamos, temos a impressão de estarmos caindo: é uma imagem que formamos para essa 'queda' de nosso Corpo Astral no Corpo Etérico.

Steiner afirma que durante o sono o Corpo Astral expande-se, abrangendo todo o mundo supra-sensível associado às estrelas, daí dar-se-lhe esse nome. A sua contração ao acordar e novamente penetrar no Corpo Etérico é que dá a sensação de queda. No estado expandido no mundo astral, o Corpo Astral têm vivências de outros seres que também têm esse corpo. Do mesmo modo, o Eu vivencia aquilo que pertence ao mundo puramente espiritual (e que é 'superior' ao astral).

Vimos, em 6.4, que a memória dos seres humanos está em seu Corpo Etérico, podendo ser consultada conscientemente, por atuação do Eu. Como durante o sono o Corpo Etérico está separado do Corpo Astral e do Eu, não temos, ao acordar, a lembrança das vivências dos mesmos naquele estado.

Pode acontecer que durante o despertar haja um estado de transição, isto é, o Corpo Astral, ainda parcialmente no mundo astral, impregne levemente o Corpo Etérico. Nesse caso, haverá alguma lembrança das vivências do primeiro. Ao acordar, lembramo-nos dessas vivências, mas como elas são de natureza totalmente diversa das nossas vivências no plano físico, interpretamo-las empregando imagens provindas de nossas percepções sensoriais. Essa é a origem de certos sonhos. Eles parecem ilógicos do ponto de vista do mundo físico, pois na verdade não têm origem nele, sendo mera interpretação, em forma de imagens, de vivências astrais ou espirituais do Eu.

Os sonhos sempre nos vêm em forma de imagens, e são criados ao despertar ou ao adormecer. Às vezes essas imagens são interpretações de vivências provenientes do próprio mundo físico, como sonharmos que estamos no meio de um incêndio quando estamos cobertos em demasia, com muito calor. Um problema intestinal pode nos fazer sonhar com cobras.

O importante é notar-se que durante o sonho temos uma espécie de consciência, mas que é diferente da que temos em estado de vigília. Daí podermos resolver um problema enquanto dormimos, e acordarmos com a solução. Em estado de sono profundo, pode-se dizer que temos uma consciência de planta; em sonho, a de um animal.

8. Morte e a existência após a morte

Com o modelo quadrimembrado do ser humano, pode-se compreender de um ponto de vista espiritualista o que se passa na morte. Recordemos o que vimos em 5.1. Uma pessoa morta não tem suas manifestações vitais, o que se passa com uma pessoa que está dormindo. Se não há essas manifestações, o Corpo Etérico não está presente. Portanto, a morte é a separação não só do Corpo Astral e do Eu, como no sono, mas também do Corpo Etérico em relação ao Corpo Físico. Este, sem o Corpo Etérico, perde a capacidade de regeneração, fica entregue às forças físicas e começa a decompor-se.

Imediatamente depois da morte, temos o Corpo Etérico unido ainda ao Corpo Astral e ao Eu. Essa união permanece, segundo Steiner, durante aproximadamente 3 dias, quando o Corpo Etérico dissolve-se, sobrando um resto do mesmo no mundo etérico. Durante esse período o Corpo Astral e o Eu têm a vivência de toda a memória da vida recém-passada registrada no Corpo Etérico, sem as restrições impostas pela ligação deste com o Corpo Físico, como a seqüência do tempo. É como se houvesse a observação de um grande panorama instantâneo de tudo o que foi vivenciado durante toda a vida. Essa situação pode ocorrer em casos extremos de quase-morte, como acidentes, operações, etc. No caso de acidentes, como desastres vivenciados conscientemente, afogamentos ou quedas, o choque imediatamente antes dos ou durante os mesmos pode fazer com que haja uma momentânea separação do Corpo Etérico e dos outros membros superiores em relação ao Corpo Físico. Com isso, o Corpo Astral tem a vivência da memória etérica. Como a morte realmente não ocorreu, a pessoa posteriormente lembra-se desse panorama da vida. Esse é um fato relativamente comum; muitas pessoas que tiveram essa vivência infelizmente não a contam, pois é algo que foge totalmente às experiências normais de vida. Elas temem ser tomadas como loucas. Hoje em dia, com as pesquisas de quase-morte, principalmente do Dr. R. Moody, pessoas que passam por essa experiência estão relatando-a mais do que se fazia antigamente. O interessante é que em geral as pessoas que vivenciaram seu 'panorama' passam a ter uma certeza íntima da existência do mundo espiritual. Aliás, a vivência do 'panorama' é mais uma evidência de que a memória não é física, somando-se às apresentadas no item 6.4.

A sobra do resquício do Corpo Etérico depois dos 3 dias após a morte explica certos fenômenos mediúnicos. Um médium, em geral em estado de transe – o que não corresponde à maneira como se deve fazer pesquisas hoje em dia, já que nesse estado ele não tem nenhum controle sobre suas vivências – pode entrar em contato com esse resquício de Corpo Etérico e consultar parte da memória da pessoa morta. As habilidades físicas estão também no Corpo Etérico, de modo que o médium pode no estado de transe ter as habilidades da pessoa morta, donde por exemplo os fenômenos de incorporação de cirurgiões. É importante que se compreenda que não se trata de uma incorporação do Eu do morto, mas apenas uma ligação com o citado resquício etérico.

Segundo Steiner, após esse período de 3 dias ocorre um período de cerca de 1/3 da vida passada (correspondendo mais ou menos ao tempo que a pessoa passou dormindo em sua vida), em que o Corpo Astral continua ligado ao Eu. Durante esse período há uma recordação da vida pregressa, mas com tudo ao contrário: ela se dá em retrospectiva, de trás para frente, iniciando com as experiências mais próximas da morte, indo até o nascimento; vivencia-se os efeitos dos próprios atos, por exemplo o que os outros sentiram como resultado das ações do morto. Por exemplo, se se ofendeu uma pessoa, sente-se então o que ela sentiu como conseqüência disso.

Um fato muito importante é que, estando o Corpo Astral ainda presente, todas suas cobiças continuam existindo. As que não almejavam algo espiritual, mas eram baseadas essencialmente no mundo físico, tornam-se verdadeiras torturas, pois o corpo físico não existe mais para satisfazê-las. Por exemplo, uma pessoa glutona sentirá nesse período enormes sofrimentos por não poder mais sentir o gosto da comida. Um viciado em fumo ainda sentirá a necessidade do prazer do cigarro, mas não poderá satisfazê-la. Por tudo isso é que se convencionou denominar, na Igreja Católica, de Purgatório, a uma fase pela qual passaria a alma do morto até se purificar. Na tradição oriental, essa fase é denominada de 'Kamaloka'. O antigo ascetismo tinha por finalidade desligar a pessoa de todos os prazeres terrenos, em parte para evitar os sofrimentos do 'Kamaloka'.

Uma necessidade intrínseca do Corpo Físico, como a fome, não produz sofrimento nesse período, assim como os que nascem da essência espiritual do Eu, tais como o prazer estético ou o de sentir sabores ou odores delicados ou o prazer de ajudar os outros. Assim, não se deve em absoluto eliminar todos os prazeres da vida, mas sim os que não correspondem a reais necessidades ou a motivações elevadas.

Essa fase de 1/3 da vida tem como finalidade transmitir ao Eu toda a essência da vida passada, purificá-lo e libertá-lo de qualquer ligação com a Terra.

Nessa fase retrospectiva, ao atingir o nascimento todas as cobiças ligadas à Terra terão sido 'consumidas', purificadas. Por exemplo, antipatias transformam-se em simpatias, repulsa por uma pessoa em atração a ela. Assim, o Eu pode entregar-se ao mundo espiritual, pois nada mais o prende ao mundo físico. Como depois dos 3 dias depois da morte sobrou um substrato do Corpo Etérico, depois desse período de 1/3 da vida pregressa sobra um substrato astral, restando então 3 'cadáveres': físico, etérico e astral. O Eu permanece com uma essência, uma síntese espiritual da vida passada.

O Eu passa a conviver plenamente com outros seres espirituais, e com a essência espiritual do mundo físico. Isso se dá de uma maneira peculiar: o que estava fora do ser vivente, passa a estar dentro, como o espaço ocupado por uma pedra. Não se deve imaginar o mundo espiritual como um mundo análogo ao físico. De fato, muito do primeiro passa-se, de certa maneira, ao contrário do mundo físico. Steiner menciona que não se deve imaginar o mundo espiritual como um espaço de 4 ou mais dimensões. Ao contrário, uma imagem mais adequada é a de um espaço de 2 dimensões – sem espessura não há matéria!

Normalmente, depois de centenas de anos o Eu sente uma necessidade muito grande de voltar à terra, para reparar os males feitos e progredir moralmente. Ajudado por seres puramente espirituais, envolve-se com um novo Corpo Astral. Em seguida, esse par formado pelos dois é dirigido a um casal de pais, de onde são herdados os germes do Corpo Etérico e do Corpo Físico, formando-se o feto que irá nascer posteriormente. Esse é o processo essencial da reencarnação. É importante constatar-se que sem uma conceituação de reencarnação, a vida humana não faz sentido. Por não sermos perfeitos, já que não somos apenas espírito, sempre cometemos erros durante uma vida. A impossibilidade de repará-los posteriormente e de nos aperfeiçoarmos tiraria totalmente o sentido para a vida.

Normalmente, o Eu é imortal, voltando repetidamente para novas encarnações. Sempre se falou de que talvez houvesse algo de imortal no ser humano. Deve ser bem compreendido que a imortalidade é de sua essência espiritual. Uma preocupação exagerada com a própria imortalidade poderia significar uma manifestação egoísta ("eu não vou desaparecer"). A preocupação correta deveria ser para com o conhecimento espiritual, a fim de contribuir para a melhoria da humanidade e do mundo em um sentido realmente positivo. Deveria haver uma preocupação também com a existência própria antes do nascimento: "Que impulsos eu trouxe para essa vida? Qual a minha missão do ponto de vista da humanidade e do ponto de vista cósmico? Que males eu fiz que devo reparar?"

O Eu encarna-se com vários impulsos para a vida futura, levando o indivíduo a situações em que ele pode reparar males feitos em vidas anteriores, àquelas em que ele pode progredir ou proporcionar um progresso de outras pessoas ou da humanidade. Essas situações podem envolver encontros com pessoas, visitar-se um local sem saber-se exatamente por que, pegar-se uma doença, etc. Essa é em breves palavras a conceituação antroposófica de destino, de carma (k'rma). No entanto, é importantíssimo frisar que o Eu leva inconscientemente a pessoa a essas situações, mas o que ela faz em cada uma delas depende de sua decisão livre, se esta acontecer. Assim, o destino não elimina a liberdade.

O processo de encarnação leva em geral cerca de 21 anos depois do nascimento. Durante essa fase os corpos inferiores vão sendo moldados para que o Eu possa manifestar-se segundo o seu destino – desde que o meio ambiente favoreça esse processo e não o prejudique.

9. Os 4 temperamentos

Vejamos mais uma aplicação dos conceitos ligados à quadrimembração do organismo humano: os 4 temperamentos. Rudolf Steiner resgatou o ensinamento da antiga Grécia sobre eles, conceituando-os em termos dessa quadrimembração, sendo portanto uma interessante aplicação desse conhecimento.

O temperamento melancólico provém de um predomínio do Corpo Físico sobre os outros 3. Uma pessoa com esse temperamento sente em demasia a atração da gravidade, como se fosse uma carga física constante. Para ela, tudo é 'pesado', principalmente sua própria vida. Ela tem a tendência de sofrer com qualquer coisa, vivendo a lamentar-se. É típico ela perguntar-se por que suas agruras acontecem justamente com ela e não com os outros, mostrando uma característica de introspecção exagerada, tendendo a uma certa depressão. Fisicamente, muitas vezes é magra, longilínea, com olhos profundos. É o temperamento dominante hoje em dia, fruto de nossa civilização voltada para o físico.

O temperamento flegmático provém de um predomínio do Corpo Etérico. Uma pessoa com esse temperamento tem um exagero de suas função metabólicas, e como que 'rumina' tudo. Adora comer, o que faz em geral lentamente, saboreando cada garfada. Mas também 'rumina' seus pensamentos, que são em geral lentos, tendendo a uma atividade interior sonhadora. Fisicamente é uma pessoa 'aquosa' (o líquido está muito ligado ao etérico), tendendo ao excesso de peso. É um excelente temperamento para os dias de hoje, pois faz com que a pessoa se isole em seu mundo interior de sonhos, e não fique muito afetada pela agressividade e caos do mundo moderno, principalmente nas cidades.

O temperamento sangüíneo provém de um predomínio do Corpo Astral. Uma pessoa com esse temperamento tem tendência a não se concentrar em nada. É em geral muito 'aérea' (característica do Corpo Astral – lembremos o aparecimento dos órgãos ocos por sua influência), no sentido de saltitar não só fisicamente, mas até em suas ações, fala e pensamento. Em geral é magra, longilínea.

O temperamento colérico provém de um predomínio do Eu. É como se a pessoa fosse possuída por um 'fogo' interior, sempre decidida em suas atitudes e opiniões. Gosta de se impor e de mandar, e 'perde a esportiva' facilmente, revelando muito pouca paciência. Fisicamente, tende a ser baixo e atarracado – um colérico típico foi Napoleão –, pisando com passos fortes e decididos. Muitos coléricos têm um queixo saliente, sobrancelhas espessas, às vezes cabelos revoltos.

Uma conhecida ilustração pode ajudar a imaginar como se comportam pessoas que têm a predominância de um desses temperamentos. Suponhamos que uma pessoa esteja passeando por uma trilha num bosque cerrado e topa com uma pedra de cerca de 1 m de altura bloqueando o caminho. O melancólico, ao ver a pedra, lamenta-se: "Que tragédia, uma pedra no meu caminho! Isso só poderia ter acontecido comigo! E agora, o que faço? Ela vai fazer eu perder meu compromisso, arruinar minha vida, …" O flegmático admira a beleza da pedra, dá um jeito de sentar-se ou apoiar-se nela, e começa a sonhar acordado, refletindo sobre as lindas pedras que já encontrou, como seria lindo ter a garota de seus sonhos sentada sobre ela, inspira profundamente o perfume das plantas ao redor, etc. O sanguíneo vem saltitando, assobiando ou cantarolando, feliz com o ar fresco do bosque e a bonita vegetação que sempre vê rapidamente, sem se concentrar em planta alguma. Salta por sobre a pedra, ensaia uns passos de dança sobre ela, salta para o outro lado e continua seu caminho alegremente, já tendo se esquecido da pedra. Já o colérico, ao ver a pedra, tem um ataque de raiva, xingando as pessoas que deveriam cuidar do caminho por não terem removido a pedra. Numa explosão, chuta violentamente a pedra, machucando seu pé e, com isso, explodindo mais ainda, dá um soco na pedra…

Cada um de nós tem 2 ou mais temperamentos predominantes, podendo obviamente ocorrer o exagero de apenas um deles. O ideal é ter um equilíbrio de todos, sabendo sentir profundamente como o melancólico, manter uma certa distância do seu exterior como o flegmático, ser alegre e despreocupado como o sangüíneo, e tomar decisões levando a ações firmes como o colérico.

As crianças são em geral sangüíneas, deixando um adulto cansado sé de vê-las correr e saltitar o tempo todo (aliás, tem-se observado que cada vez menos as crianças saltitam, sendo forçadas pela educação, pelos meios de comunicação, jogos eletrônicos e computadores a penetrarem cedo demais em seu corpo físico e a um temperamento melancólico precoce). Uma recomendação pedagógica de Steiner, seguida na Pedagogia Waldorf (V. R. Lanz, A Pedagogia Waldorf – Caminho para um Ensino mais Humano. São Paulo: Antroposófica, 1998), é agrupar na classe as crianças segundo seus temperamentos. Com isso, os coléricos se agridem até gastar seu excesso de energia, os flegmáticos, de tão sonhadores, acabam achando seus vizinhos de mesmo temperamento cacetes demais, tomando assim a iniciativa de sair de sua flegma. Por outro lado, se o colérico é colocado ao lado de um melancólico, agride-o constantemente, fazendo-o sentir-se cada vez mais sofredor, 'curtindo' sua vida infeliz. O agrupamento dos alunos segundo os temperamentos também permite à professora dirigir-se especialmente a cada grupo, por exemplo contando trechos de relatos ou histórias que se adequam melhor a um ou outro temperamento. Ela pode passar para os coléricos um grande problema complexo, para os sangüíneos uma porção de probleminhas, etc.

No lar, o reconhecimento dos temperamentos dos filhos pode também ajudar muito na educação. Por exemplo, pode-se preparar alimentos adequados para cada temperamento (os flegmáticos gostam muito de doce, os coléricos de temperos fortes, etc.), deve-se compreender as tendências de cada filho, organizando atividades adequadas, etc. Assim, um sangüíneo pode gostar muito de estudar violão, flauta, clarineta ou violino, um colérico trompete, piano (que gosta de martelar com os dedos) ou percussão, um melancólico violoncelo, um flegmático harpa ou piano (que gosta de tocar suavemente, em ondas).

10. O desenvolvimento da criança e do jovem

Uma interessante aplicação da quadrimembração do organismo humano é a descrição que Steiner dá do desenvolvimento segundo as idades, em períodos de 7 anos denominados de setênios. Claramente, no nascimento o Corpo Físico, que era dependente do corpo da mãe, ficando 9 meses ao seu abrigo, se independiza, nascendo para o mundo. O estudo do desenvolvimento do embrião é fascinante. O grande embriologista Eric Blechschmidt, que organizou o Museu de Embriologia Humana da Universidade de Goettingen (veja, por exemplo, http: // www. aktion-leben.de /Abtreibung /Embryonal-Entwicklung/ sld01.htm, infelizmente em alemão, mas com interessantes fotos de embriões em estágios de diferentes semanas ['Wochen', nas legendas] de idade) escreveu em um de seus livros que é impossível, a partir de um estado qualquer do embrião, prever-se quais os estados seguintes do mesmo (a menos que se usem conhecimentos prévios da evolução dos embriões). Alguns órgãos não se formam pelo uso progressivo, pois este dar-se-á apenas ao nascer, como é o caso dos pulmões. Uma das características mais interessantes dos embriões dos animais é que são todos parecidos em seu desenvolvimento inicial – parecidos ao embrião humano! Conta-se que o pioneiro no estudo dos embriões, o grande Haeckel, uma vez esqueceu-se de rotular vidros com embriões pequenos de vários animais, e não mais conseguiu classificá-los. É como se os embriões mostrassem que o ser humano é a origem de todos os animais. A idéia de Haeckel de que a ontogênese recapitula a filogênese pode, nesse sentido, ser levada muito mais longe. É também interessante notar como os macacos nascem com a cabeça redonda, como os seres humanos, mas estes conservam a forma embrionária, ao passo que aqueles desenvolvem as mandíbulas, usadas para atacar e se defender, que se tornam salientes, o crânio se alonga e músculos poderosos penetram em cavidades que vão se formando. A contrário, o ser humano conserva o aspecto relativamente redondo da cabeça. É também interessante observar que a forma da cabeça dos macacos recém-nascidos lembram seres humanos idosos.

Depois do nascimento do Corpo Físico, a criança entra em um processo de 'gestação' do Corpo Etérico, que vai 'nascer', ou tornar-se independente, aos 7 anos. Só que esse nascimento dá-se agora em relação a forças etéricas universais, que envolviam o Corpo Etérico durante o processo de seu amadurecimento. O Corpo Astral ainda existe apenas como germe, de modo que esse período é também caracterizado como o da nenhuma consciência (logo depois do nascimento) a uma subconsciência de sonho e fantasia. Durante esse setênio, a criança desenvolve a sua base física e está entregue aos processos vitais típicos do corpo etérico: alimentação, sono, metabolismo, falta de consciência. Sob o ponto de vista educacional, deve-se considerar que esse período é uma continuação daquele em que a individualidade da criança estava imersa no mundo puramente espiritual, e portanto ele deve significar uma lenta substituição das forças e influências daquele mundo. A falta da consciência significa que a criança está extremamente aberta às influências do meio ambiente e, pelo contrário, transmite a ele tudo o que se passa dentro dela, por meio de suas ações, isto é, de sua vontade. De fato, ela é essencialmente um ser volitivo: ela simplesmente não controla sua vontade como o fará depois desse período. Se uma criança nesse primeiro setênio quer alguma coisa, só distraindo-a ou fazendo a sua vontade dirigir-se a outra coisa é que ela deixa de querer a primeira. Steiner caracterizou a criança nesse período como um grande órgão sensório, de modo que é preciso tomar extremo cuidado com as vivências que ela tem, pois as influências são muito profundas. Não é à toa que a Psicanálise procura traumas nas experiências da infância: aí é que se dá a gravação mais profunda e inconsciente das vivências do novo ser. O mundo que a criança deve vivenciar é um mundo essencialmente bom e amoroso (compare-se com os horrores que as crianças estão vivenciando por meio dos meios eletrônicos). De fato, a criança vem ao mundo esperando que ele seja bom -- caso contrário não teria se encarnado! O encontro com o mal produz uma frustração inconsciente terrível nessa idade. Essa abertura ao meio ambiente leva à base do aprendizado nesse período: ela deve ser a imitação, isto é, por meio de ações feitas na presença da criança, pois as ações são atos de vontade. Contar histórias cheias de imagens é outro meio educacional muito valioso. É nesse período que ocorrerão as maiores transformações de toda a vida: os aprendizados de erguer-se e de andar, de falar e de pensar que, por sinal, deveriam processar-se nessa ordem. Steiner chama a atenção para a importância do aprender a erguer-se e equilibrar-se, o que significa para a criança uma localização no espaço, que não é feita pelos animais. Ele atribui esse impulso a uma atuação do Eu da criança, isto é, ele não é devido a forças naturais intrínsecas da mesma.

No fim do primeiro setênio, caracterizado fisicamente pela troca dos dentes, o Corpo Etérico está individualizado, liberto para ser usado pela criança por meio da memória e do pensar: é no segundo setênio que deve começar a escolarização. Com isso, pode-se por exemplo começar a fazê-la memorizar algo abstrato. É por isso que a Pedagogia Waldorf coloca as crianças na 1a série em geral apenas depois de 6½ anos, e o aprendizado da leitura é bastante lento, por meio de muita fantasia. As letras são hoje em dia símbolos abstratos, e durante o primeiro setênio não se deve forçar a abstração intelectual e a memorização de símbolos desprovidos de realidade e de fantasia, como são nossas letras. Durante o segundo setênio o Corpo Astral é que está se desenvolvendo, e a criança e o jovem vão adquirindo cada vez mais consciência de si próprios, passando mais ou menos aos 9 anos por uma fase de primeiras perguntas existenciais ("vocês são meus pais mesmo?"). Esse desenvolvimento do Corpo Astral significa que as qualidades a ele ligadas é que devem ser cultivadas, como os sentimentos, a fantasia. Nesse período, o jovem é um ser sentimental. Assim, como no primeiro setênio a grande ferramenta educacional deve ser a imitação e o exercício da vontade por meio de brincadeiras e ações, durante o segundo setênio ela deve ser a arte: o mundo a ser apresentado deve ser belo. Todo o ensino deveria ser artístico, acompanhado de emoção e estética. O processo educacional deve girar em torno da realidade, e não da abstração. Por exemplo, no ensino de ciências o fundamental é ensinar a observar os fenômenos e a descrevê-los, e não compreendê-los abstratamente. O fim desse período é marcado pela entrada na puberdade.

Quando atinge a maturidade sexual, o animal já é plenamente adulto. Esse não é o caso do ser humano. Não é à toa que uma tradição antiga e extremamente sábia coloca a plena maioridade aos 21 anos – em nosso país, a responsabilidade civil –, depois de completado o 3o setênio. Durante este último, o Corpo Astral já se independizou e se individualizou; o que é desenvolvida é a manifestação do Eu. O Eu anseia por uma compreensão do universo, portanto a educação no 3o setênio deve começar a voltar-se para o intelecto. O mundo a ser apresentado é um mundo verdadeiro. O ensino de ciências deve agora abordar as teorias conceitualmente, tentando mostrar as possíveis explicações para os fenômenos. Mas não se deve enganar o jovem confundindo teoria com realidade, com se faz normalmente com a Teoria da Evolução, com a Teoria das Cores de Newton, etc. Nessa idade é que se devem abordar teorias puramente formais, como a prova de teoremas na Matemática. É nessa fase que se deve ensinar o jovem a ser crítico – se isso é feito durante os dois primeiros setênios, prejudica-se a criança, pois ela necessita maturidade para encarar o mundo do ponto de vista conceitual, necessário para criticá-lo. Pelo contrário, nesses dois setênios qualquer crítica provocaria uma profunda decepção na criança e no jovem, pois eles esperam um mundo belo e bom. No terceiro setênio é que se deve começar a dar ao jovem plena liberdade, que não faz sentido nos períodos anteriores; nestes, o jovem sabe que não tem conhecimento e conceituação suficientes do mundo, e quer, em geral inconscientemente, sentir que está sendo guiado. Muitas vezes o jovem testa os pais, ultrapassando limites, justamente para conferir se estes estão guiando-o com atenção; imagine-se a frustração inconsciente de um jovem quando, em lugar de sentir a mão firme mas amorosa dos pais e mestres, é sujeto a uma educação libertária, sem limites!

11. Os três aspectos do espírito

Do mesmo modo que o corpo e a alma têm, cada um, três aspectos distintos, o espírito também os têm. Eles ainda estão em forma germinal no ser humano atual. O mais 'inferior' foi traduzido como Identidade Espiritual (em inglês, 'spirit self'), e aparece por uma ação consciente do Eu sobre o Corpo Astral, sendo como que este último transformado. O seguinte foi denominado de Espírito Vital e é constituído pelo Corpo Etérico transformado, espiritualizado. O terceiro é o Homem Espírito, que aparece por uma espiritualização do Corpo Físico.

A atuação do Eu sobre o Corpo Astral é a mais fácil de ser feita e de ser compreendida. Trata-se de impedir que as cobiças e egoísmos provenientes do segundo aflorem à consciência e traduzam-se em ações, pelo enobrecimento das emoções e manifestações da vontade. Todos podem ter a experiência de educar um gosto, mudando-se uma repulsa em uma atração, ou vice-versa. Por exemplo pode-se, agindo conscientemente, chegar a deixar de sentir uma vontade freqüente que existia anteriormente, como a de fumar ou de comer chocolate. Já a auto-educação do Corpo Etérico é mais complexa e difícil: por exemplo, envolveria a mudança de caráter ou de temperamento. Steiner diz que as atividades artísticas e as verdadeiramente religiosas provocam uma atuação sobre o Corpo Etérico (ver A Ciência Oculta, 'A Essência do Ser Humano'). A atuação do Eu no Corpo Físico é ainda mais difícil. Pode-se ver uma leve manifestação dessa atuação quando uma pessoa ruboriza-se de vergonha, ou na palidez de um medo. Justamente por estar 3 níveis abaixo do espiritual no ser humano, o Corpo Físico é o mais difícil de ser trabalhado pelo Eu. Obviamente, não se trata aqui de se forçar um determinado movimento físico, mas sim de atuar sobre as forças físicas mais profundas, como as que levam a um nascimento ou as que levam à desintegração. Felizmente, o ser humano normal de hoje em dia não tem a capacidade de atuar nessas profundezas do seu corpo físico, pois tem muito pouco conhecimento do mundo espiritual e responsabilidade para com ele.

Analogamente à manifestação interior do mundo físico através da Alma da Sensação, é por meio da Personalidade Espiritual que o Eu entra em contato com o mundo espiritual. As manifestações do mundo espiritual dão-se por meio do que é verdadeiro e do que é bom. Pode parecer estranho que se fale do bom como algo objetivo no mundo espiritual, pois estamos acostumados a interpretá-lo como algo subjetivo, dependendo da opinião de cada um, dos costumes socias, etc. No entanto, um conhecimento do que deve ser o progresso da humanidade e do universo do ponto de vista cósmico leva necessariamente a valores morais absolutos. Por exemplo, hoje em dia é ponto pacífico em boa parte do mundo que matar um ser humano não é um ato moral. Por pior que seja, nunca se pode prever se uma pessoa não irá se regenerar. Do ponto de vista antroposófico, a morte é um momento tão sagrado quanto o nascimento, e o ser humano atual não pode ter o conhecimento suficiente para determinar se uma pessoa deve ou não morrer. O Bom universal vai-se revelando a uma pessoa cada vez mais, à medida que ela aprende a entrar em contato com o espírito no universo.

É o pensamento superior da Personalidade Espiritual que revela o mundo espiritual ao ser humano, isto é, a verdade e o bom universais. Em 4.2 atribuímos novas 'idéias' à Alma da Consciência. Em Teosofia, Steiner afirma que hoje em dia a Alma da Consciência e a Personalidade Espiritual formam uma unidade.

O Homem Espírito constitui a individualidade humana dentro do mundo espiritual, assim como existe uma individualidade em cada ser humano físico. Essa individualidade utiliza-se de um Corpo Etérico para vivificar seu Corpo Físico. Assim o Homem Espírito emprega o Espírito Vital, que é como que um invólucro dentro do mundo espiritual, separando o Homem Espírito de outros seres espirituais. O Corpo Físico é relativamente estático depois da idade adulta. Mas o Corpo Vital vai crescendo espiritualmente à medida que o Homem Espírito vai absorvendo um alimento espiritual, pois este possui valor eterno.

Steiner toca nos extremos ao afirmar:

"Pelo corpo, a alma encontra-se confinada ao mundo físico; pelo Homem Espírito, crescem-lhe asas para mover-se no mundo espiritual." (Teosofia, 'A Natureza do Homem').

 
Waldemar W. Setzer


Fonte: sociedade antroposófica brasileira