sexta-feira, 25 de novembro de 2011

As dádivas da memória



A memória é algo admirável. Literalmente incrível, quando observada de perto. Faz parte do pacote de capacidades miraculosas com que o ser humano é dotado. Aquelas cuja grandiosidade a gente sente melhor, em geral, somente quando falham. Pela doença. Pela velhice. Pelo desgaste natural. Às vezes, a gente só vê o sol quando chove, não é assim? Eu, por exemplo, já sofri quatro entorses nos tornozelos, jogando frescobol, correndo de ladrão, caindo em poça em dia de chuva, levando aqueles tombos bobos que a gente nem sabe explicar depois como aconteceram. Dizem que o pé é o ponto físico mais frágil dos piscianos. Não sei se faz algum sentido para a maioria, mas para mim tem feito. Todas as vezes que precisei imobilizar, com gesso ou outro recurso, ficava destacado em néon no meu sentimento o quanto é maravilhoso poder andar livremente. Superado o problema, eu esquecia de novo. É assim que costuma ser.

Voltando à memória, para não esquecê-la, acho fantástico perceber como ela consegue pescar sensações e sentimentos lá nas águas do passado e trazê-los para o instante presente do jeito como faz. Por mais que o rio flua, o tempo não passa no coração, é o que sinto. A memória faz com que coisas que aconteceram há décadas sejam revisitadas com um frescor tão genial que parecem ter ocorrido ainda agorinha. Deve ser por isso que, tantas vezes, admirados por lembrar de algumas circunstâncias com capacidade de experimentar, de novo, a textura do sentimento, o cheiro dele, dizemos para nós mesmos ou para os outros: “parece que foi ontem”. A memória não sente calendários, embora os saiba. A inteligência que bolou essa maravilha só pode ser suprema.

Muitas vezes quando estou presa nas gaiolas que ainda me limitam, a minha lembrança voa e pousa em delícias que desenham em mim um sorriso bom. Quando percebo, eu sou toda aquele sorriso, como se cada célula, naquele instante, pudesse sorrir também. Não sei se isso acontece pela alegria que o meu coração experimenta nos lugares que visita ou simplesmente porque me dou conta de que há algo em mim que continua livre. Ainda que por tantos motivos eu me sinta enredada. Ainda que por tantos motivos eu desafine no canto que ofereço à vida e, de forma mais particular, no canto que eu me ofereço.

Há algo em mim que não desaprende esse caminho. Que segue, quando, aparentemente, eu paro. Que continua a luzir, mesmo quando eu tropeço nas minhas sombras. Há algo em mim que me salva de mim. Que me leva pela mão para brincar. Para conhecer o que continua vivo e belo além de toda e qualquer gaiola. Além dos meus tempos de muda. Algo que me mostra uma paz intensa e verdadeira. Que não me deixa esquecer que continuo a ter asas, mesmo quando eu não vôo. A memória, de alguma forma, me ajuda a lembrar de tudo isso, porque nunca desfaz a mesa onde eu posso me alimentar, sobretudo quando mais preciso, com lembranças perenes de amor.

Gosto quando a minha memória brinca de preparar boas surpresas e traz à tona lembranças que parecem surgir do nada. Aquelas que aparecem, de repente, sem ter nenhuma vinculação perceptível com algum fato ou experimento dos sentidos. É provável que a mente tenha lá as suas motivações para trazê-las ao nosso encontro, mas não deixa pistas para que possamos compreendê-las. Essa é uma das minhas partes prediletas da brincadeira: de vez em quando, não conseguir entender nem tentar é um descanso. Um convite para somente sentirmos, nós que costumamos agir como se fôssemos impelidos a entender tudo o tempo todo. É um alívio quando descobrimos a liberdade que há em apenas dizer “não sei”.

Uma tarde dessas, repentinamente, eu senti o cheiro, depois o gosto, de um doce de brigadeiro que provei há mais de trinta anos. E a memória que veio à tona não se limitava ao olfato e ao paladar. Era maior. Cheguei a lembrar da ilustração das caixas do chocolate em pó: dois padres que pareciam se deliciar com a gulodice. Lembrei da minha mãe comprando aquelas caixas junto com a minha madrinha para a festa de algum aniversário meu. Da atmosfera que registrei como uma alegre cena de amizade das duas. Do carrinho do supermercado. Depois, da consistência do doce. Da delícia de ter dedos e queixos lambuzados com a sobra da panela, sem cerimônia alguma. A vida era tão grande e eu não sabia nada a respeito dela nem fazia questão. Sequer imaginava que, tantos anos depois, a vida continuaria imensa, mas eu teria a impressão de sabê-la ainda menos, apesar de ter uma coleção de hipóteses.

O mais curioso é que não havia nada, aparente, que pudesse ter evocado aquela lembrança. Nenhum vendedor. Nenhum comentário culinário. Nenhuma mordida na barra de chocolate própria ou alheia. Nenhuma colher de pau. Nenhum carrinho de mercado. Nenhuma dupla de amigas trocando idéias sobre a festa de aniversário dos filhos. Estava ali, sentada, diante de um computador. Apenas isso. Sorri ao me dar conta de que algumas lembranças doces - inclusive literais, como aquela – conseguem nos salvar da sisudez de momentos insossos.

Quando acontecem situações como esta, eu percebo que somos o que sentimos a cada instante. Que somos o lugar, não importa onde estamos. Percebo, principalmente, que, por maiores que sejam os apelos externos, não precisamos nos limitar em gaiola alguma. Nem nas que criamos para nós nem naquelas que os outros, sejam lá por quais razões, querem nos prender. Ninguém precisa continuar a se sentir preso quando pode recordar com o próprio sentimento o quanto a vida pode ser mais fácil e amorosa, embora tantas vezes as circunstâncias tentem nos convencer do contrário.

Eu sei que a memória também nos apronta surpresas desconfortáveis. Que, de vez em quando, ela nos põe em contato com lembranças que por nada nesse mundo queremos rememorar e que não existe nenhum botão que possa ser apertado para evitarmos esse encontro. Mas os benefícios que propicia superam os eventuais desconfortos. Recorro a ela várias vezes para me nutrir, mas não fico por lá além do necessário. No retorno, costumo voltar mais confiante. Ela me lembra de que tudo passa, mas que algumas dádivas conseguem transpor as aparentes cercas do tempo. Dádivas, por exemplo, como o amor compartilhado.

Ana Jácomo

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