terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Reflexão: Deus e o alfaiate
O título deste artigo poderia muito bem ser: o Mundo e a Calça. Nas minhas leituras encontrei um apólogo (historieta que ilustra sabedoria) que me fez refletir e que quero compartilhar com você, leitor.
Trata-se de uma peça de humor da católica Irlanda citada pelo renomado teatrólogo e dramaturgo Samuel Beckett. “Um inglês precisando rapidamente de uma calça nova para os festejos de Ano Novo vai ao alfaiate que toma suas medidas. – Pronto. Volte em quatro dias. Quatro dias mais tarde, o alfaiate revela a seu cliente: - Me desculpe, errei o fundo, volte em oito dias. Oito dias mais tarde: - Volte daqui a dez dias: lamento, estraguei uma das pernas. Dez dias mais tarde. – Oh! Arruinei a braguilha... Finalmente, de costura em costura, a Páscoa florida chega e o alfaiate erra as botoeiras. – Meu Deus, Senhor, isso é indecente no final das contas! Em seis dias, você entende, em seis dias, Deus fez o mundo. Sim, senhor, o mundo em seis dias! E você, você não consegue fazer uma calça em três meses! Aí o alfaiate responde, com desdém: - Mas meu Senhor, mas Senhor, olhe o mundo. E com orgulho: - e olhe a minha calça!”.
Qual ideia tirar dessa historieta? Talvez a seguinte. Face à imperfeição do mundo, do universo, do macrocosmo, o único recurso não é de nos lamentarmos, nem de nos desesperarmos, nem mesmo de tentarmos consertá-lo, mas de nos voltarmos sobre o microcosmo para realizar, nesta modesta escala, um pouco de beleza que o mundo nos recusa.
Talvez a mesma mensagem nos seja passada por Guimarães Rosa quando nos diz que “o mundo não é maravilhoso, mas é feito de pequenas maravilhas”, que podemos multiplicar. Sei que pode parecer pouco para nós, eternos sonhadores de sentido absoluto e de imortalidade, mas pode ser o que a nossa condição nos permite.
Hoje em dia, cada vez mais pessoas sentem o peso dos impasses da comunicação entre os seres humanos; o homem moderno sente-se cada vez mais isolado já que fugiu da certeza de Deus. O mundo parece cada vez mais um grande Shopping Center cheio de mercadorias expostas em vitrinas ilusórias, mas sem peso significativo, uma imensa movimentação num universo sem direção nem eixo. Mal-estar existencial diante de uma vida que parece cada vez mais sem fundamentos essenciais. Quais são, de fato, nossas relações fundamentais conosco mesmo, com a transcendência e com a divindade?
A historieta acima parece nos ensinar a não focalizar demasiadamente nossa atenção sobre as grandes questões existenciais como a do universo no qual estamos mergulhados, como as de nossas relações com o outro e conosco mesmo, para nos ocuparmos em construir e reconstruir para melhor nosso mundo imediato.
Mudar o mundo e o universo nos escapa, a confecção de uma calça perfeita está a nosso alcance e nos dá orgulho! Mesmo assim o sonho e a utopia não nos são proibidos; sem eles não há calça perfeita. Mas tudo na dimensão de homens, não na de deuses.
André Haguette
haguette@superig.com.br
Sociólogo
Fonte:
jornal o povo