quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A palavra e o silêncio


As palavras são boas. As palavras são más. 
As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. 
As palavras queimam. As palavras acariciam.
As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. 
As palavras estão ausentes.
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam...

As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. 
São melífluas ou azedas. 
O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. 
Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas.
Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem.

Há muitas palavras. 
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. 
Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. 
São brindes, orações, palestras e conferências. 
Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. 
E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo.
E as palavras escorrem tão fluidas como o “precioso líquido". 
Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço.
É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas.
A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... 
E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar.
Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. 
A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se.
A palavra não responde nem pergunta: amassa. 
A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. 
A palavra é poeira nos olhos e olhos furados.
A palavra não mostra. 
A palavra disfarça.
Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em seara.
Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação.
Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio.
O silêncio, por definição, é o que não se ouve. 
O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. 
O silêncio é fecundo. 
O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar.
Caem sobre ele as palavras.
Todas as palavras.
As palavras boas e as más.
O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.

José Saramago