segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Por que os sonhos nos ajudam a viver melhor
A ciência revela que sonhar deixa a memória afiada, ajuda a lidar com as emoções e nos treina para os obstáculos da vida real
Fechar os olhos, relaxar, dormir, sonhar. Um ritual comum, diário, banal até. E que, no entanto, como começam a revelar as mais recentes pesquisas da neurociência, é vital para nossa sobrevivência e tem impacto profundo na qualidade de vida. De acordo com os estudos, para viver melhor, é preciso sonhar. Os sonhos exercem funções biológicas fundamentais na evolução da nossa espécie: eles aprimoram a memória, ajudam no aprendizado, nos auxiliam a resolver nossa vida emocional e servem como treino para nos preparar para os desafios do dia a dia.
Na história da humanidade, é a primeira vez que os sonhos alcançam uma dimensão dessa magnitude. Desde as primeiras civilizações, buscamos entender o significado das imagens e das emoções experimentadas durante o sono – às vezes prazerosas, às vezes apavorantes. Explicações variadas já surgiram, inclusive. Grande parte delas relaciona-se a interpretações místicas, colocando o sonho como uma forma de nos relacionarmos com o divino. Também já são conhecidos episódios famosos que o colocam como fonte de inspiração para a criação. A escritora britânica Mary Shelley idealizou o personagem Frankenstein depois de sonhar com ele. O químico russo Dmitri Mendeleiev organizou os elementos químicos na tabela periódica depois de vê-la em um sonho. Paul McCartney sonhou com a música “Yesterday” e a compôs assim que acordou. E o pintor surrealista espanhol Salvador Dali desenvolveu uma técnica em que usava seus sonhos para fazer seus quadros. Não por acaso, o tema estimula mentes criativas e aparece com frequência em todos os tipos de arte, como no recente sucesso cinematográfico “A Origem”.
Porém, o entendimento mais profundo dos sonhos só começou a ganhar fôlego a partir de Sigmund Freud. Seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, lançado há 110 anos, representou um marco e lançou as bases da psicanálise. Pelo entendimento do médico austríaco, os sonhos eram um modo de manifestação dos desejos reprimidos.
Somente agora, no entanto, com os progressos da neurociência, compreende-se muito mais seu papel real na vida cotidiana – a prática e a emocional. O primeiro passo para a guinada foi a descoberta, por meio de eletroencefalogramas, de que durante o sono a atividade cerebral não se mantém constante. Ondas cerebrais lentas são sucedidas por curtos períodos de ondas mais aceleradas, acompanhadas por rápidos movimentos involuntários dos olhos. É o chamado sono REM (do inglês “movimento rápido dos olhos”). Constatou-se, posteriormente, que, durante esse período mais agitado, o fluxo sanguíneo cerebral se intensifica e uma série de imagens toma conta do cérebro. É o nascimento dos sonhos.
A partir dessa descoberta, outras foram surgindo, associando o sono à consolidação das memórias. Observava-se, por exemplo, que a privação de sono atrapalhava o aprendizado, mas não se explicava exatamente como. Ainda foram necessárias muitas outras pesquisas para se chegar à equação que relaciona a memória aos processos desencadeados no cérebro durante as duas fases do sono.
Para resolver esse enigma, os cientistas precisaram entender o modo como o cérebro define, em meio ao turbilhão de novos conteúdos ao qual é exposto diariamente, o que será guardado. Uma nova informação só se torna uma memória de longa duração se passar pelo crivo de nossa mente, que precisa considerar aquilo significativo e, portanto, digno de ser lembrado. “O que não é importante é esquecido”, explica o psicólogo Rafael Scott, doutorando em psicobiologia pelo Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN), no Rio Grande do Norte. Selecionado o que deverá permanecer, essas lembranças começam a ser ligadas a outras, mais antigas. É esse processo que lhes garante permanência. “Nossa memória funciona por meio da formação de redes associativas de significado”, diz o cientista Sidarta Ribeiro, um dos fundadores do IINN. “Quando você era criança, aprendeu que rosa era uma flor. Depois descobriu que também era uma cor. Quando foi para a escola, teve uma coleguinha chamada Rosa. Mais tarde, descobriu o escritor Guimarães Rosa e que essa mesma palavra também poderia ser o nome de um livro de Umberto Eco – “O Nome da Rosa”, exemplifica.
Mas o que o sonho tem a ver com esse processo? “É nos sonhos que as experiências importantes vividas durante o dia estão sendo associadas às memórias passadas”, explicou à IstoÉ Robert Hoss, presidente da Associação Internacional para o Estudo dos Sonhos e diretor-fundador da Fundação DreamScience. Ou seja: o sonho é fundamental para que essa rede de associações seja tecida. Ele permite a migração daquilo que aprendemos durante o dia e que está no hipocampo – região do cérebro responsável pela aquisição de novos conhecimentos – para o córtex cerebral, onde é armazenado. “É como se fosse o movimento das marés”, compara Ribeiro. A maré cheia corresponde à fase em que as memórias atingem o córtex e, ao “esvaziar”, deixa o hipocampo livre para novos aprendizados. Ao construir essa teia, símbolos diferentes se mesclam de acordo com sua significação ou com as emoções a eles associadas. “É por isso que, no sonho, a pessoa Rosa pode aparecer significada como o escritor: todos estão dentro da mesma rede de associações”, esclarece o cientista brasileiro.
Por que os sonhos nos ajudam a viver melhor - Parte 2
A ciência revela que sonhar deixa a memória afiada, ajuda a lidar com as emoções e nos treina para os obstáculos da vida real
É por causa dessa ligação com a memória que o sonho acaba ajudando também no aprendizado. O psicólogo Scott está pesquisando o tema entre alunos universitários. Na primeira etapa do estudo, realizada durante seu mestrado, dividiu um grupo de 94 vestibulandos entre os que relataram ter sonhado com a prova e os que não. Ele percebeu que aqueles que sonharam com o teste iam melhor. “Mas não era qualquer tipo de sonho”, adianta Scott. Quando o relato dizia respeito a recompensas – como festas após a aprovação – ou a situações-problema – como perder a prova ou estar impossibilitado de fazê-la –, não era observado um melhor desempenho do candidato. O aumento no índice de aprovação acontecia entre os alunos que diziam sonhar com o conteúdo das provas. “É como se, nesses casos, a memória do que foi estudado estivesse mais consolidada na rede neural e houvesse um melhor bloqueio das influências emocionais que bombardeiam o estudante na hora do vestibular”, relata.
O achado da pesquisa de Scott corrobora outros estudos que mostram como sonhar pode ajudar o ser humano a encontrar as melhores soluções para seus problemas. Muitos sonhos, como no caso dos alunos que anteveem o vestibular, atuam como simuladores de realidades futuras. “É o que chamamos de sonhos antecipatórios”, afirma Scott. “Eles funcionam de maneira probabilística: como se o cérebro estivesse simulando uma série de situações para tentar prever qual delas acontecerá no futuro.” É o mecanismo biológico encontrado por nós para treinar várias respostas a um determinado evento antes mesmo que ele aconteça.
É por essa razão que muitos especialistas começam a investir mais nesse poder. “Os sonhos podem ser um manancial de soluções para as questões do dia a dia”, disse à ISTOÉ a psicóloga Deirdre Barrett, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e autora do livro “Tudo Começou com um Sonho”. “Basta prestar atenção no que eles querem nos dizer”, completa. Em um de seus experimentos, Deirdre pediu a 47 pessoas que, durante uma semana, pensassem em um problema pouco antes de dormir. Ao fim do período, metade do grupo relatou ter sonhado com aquilo que havia sido mentalizado. “A maior parte disse que o sonho continha a solução para o problema”, conta.
A pesquisa captou uma maior quantidade de soluções para conflitos de natureza emocional do que para aqueles de origem mais objetiva. Uma explicação para isso reside no fato de que o sonho facilita nosso mergulho em compartimentos mentais jamais acessados durante o dia, como pregava Freud. “Eles guardam relação direta com o que acontece quando estamos acordados”, diz a psicóloga americana. “Só que nesse estado diferente de consciência nosso cérebro pensa de um modo muito mais intuitivo e visual, contrapondo-se à maneira lógica e verbal do estado de vigília”, explica. Por meio dos sonhos, portanto, a razão sai de cena, dando lugar a conteúdos mais relacionados à emoção – e que muitas vezes são sufocados pelo nosso lado racional. É como se o sonhador trocasse as lentes com as quais enxerga o mundo. Essa substituição pode ser capaz de lhe trazer respostas que não conseguiria encontrar por meio da razão.
Quando se sonha, dá-se continuidade a questões emocionais importantes não resolvidas enquanto o indivíduo está acordado, e seu cérebro continua tentando resolvê-las. “Isso acontece mesmo que não nos lembremos do sonho no outro dia”, assegura Robert Hoss. Um achado interessante, porém, indica que, se o que vivemos durante o dia alimenta nossos sonhos, o inverso também é verdade. A psicóloga americana Rosalind Cartwright dedica-se há algumas décadas a pesquisar como o sonho influencia o humor e as emoções. Neste ano, publicou o livro “The Twenty Four Hour Mind: The Role of Sleep and Dreaming in our Emotional Lives” (A mente vinte e quatro horas: o papel do sono e dos sonhos em nossas vidas emocionais, numa tradução livre), resultado de seus últimos trabalhos na área. Rosalind observou que, normalmente, as pessoas têm um primeiro sonho em que predominam sensações negativas e que, ao longo da noite, os demais vão neutralizando esses sentimentos e tornando-os positivos. Assim, ao acordar o indivíduo terá mais fresco em sua memória o “sonho bom”, que cronologicamente aconteceu por último. Isso vai influenciar seu humor pela manhã.
A primeira vez que a pesquisadora percebeu essa função reguladora do humor foi durante estudos com casais recém-separados que estavam em depressão. Quem acordava se lembrando de sensações negativas relacionadas ao ex-parceiro – como sonhar que estava sendo punido ou rejeitado pelo outro – demorava mais tempo para superar o trauma. Além disso, Rosalind notou que a mudança de comportamento nos sonhos também ajudava a superar a depressão. “Quem, nos sonhos, abandonava uma atitude passiva para se tornar mais ativo também melhorava mais rápido”, afirma.
Nas investigações sobre os aspectos emocionais associados aos sonhos, os pesquisadores deram-se conta de outro benefício. Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, sonhar repetidamente com um evento traumático não reforça as sensações negativas vinculadas ao episódio. “As pessoas sonham muito com um trauma após sofrê-lo para que a mente tente dominar esse estímulo desagradável”, diz Elie Chenieux, professor de psiquiatria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cada vez que o episódio traumático reaparece, novas associações são criadas, tentando torná-lo mais aceitável. Isso vale para qualquer trauma, seja uma separação, seja um assalto ou um ataque de um cão. “O sonho é terapêutico por si só”, afirma o professor.
Na realidade, até mesmo os pesadelos clássicos têm o poder de nos ajudar a ter uma vida melhor. Eles são os elementos principais da “Teoria da Simulação do Perigo”, criada pelo cientista Antti Revonsuo, da Universidade de Skövde, na Suécia. “Os pesadelos mais típicos e universais que temos mostram que nós seguimos sonhando com os perigos de nossos ancestrais”, contou Revonsuo à IstoÉ. Assim, sonhar com uma fera faminta correndo atrás de você seria uma espécie de resquício de tempos passados. “Essas eram as situações de perigo mais comuns para os nossos ancestrais e o objetivo do pesadelo era que eles ensaiassem saídas para quando estivessem realmente diante delas”, analisa o cientista.
Esses riscos não fazem mais parte da vida moderna, mas nosso organismo ainda não foi capaz de se livrar dessas imagens – há outros pesadelos ancestrais que continuamos a ter, como cair de lugares altos, perder-se, ser pego por uma armadilha ou ficar exposto a fenômenos extremos da natureza, como tempestades ou dilúvios. Isso se deve em parte ao fato de que o sistema límbico, responsável pelo sono REM, é uma parte primitiva do nosso cérebro. “Essa região, conhecida como cérebro visceral, existe também em outros animais, até mesmo em aves”, diz Gilberto Xavier, professor de neurofisiologia da Universidade de São Paulo. “Por isso elas também sonham.”
No mundo atual, em que o ser humano está exposto a ameaças diferentes, os sonhos perderam a obviedade, mas não a importância. Os pesadelos continuam a nos ajudar na preparação para o enfrentamento dos obstáculos e do estresse do cotidiano. Até porque, embora distintos, perigos permanecem a nossa frente.
Para captar a mensagem que eles nos enviam, todavia, é preciso entender a linguagem dos sonhos – mais metafórica – e ter em mente que só o próprio sonhador compreende o conteúdo que sonhou. Nem gêmeos idênticos encontrarão o mesmo significado para os seus sonhos. “Cada pessoa é única. Elas são estimuladas pelo ambiente de forma diferente e têm seu próprio conjunto de símbolos, que acham mais ou menos significantes”, afirma Xavier. Para decifrar esse conteúdo, porém, nada de dicionários de sonhos. “Buscar o significado do seu sonho em um livro do tipo é o mesmo que tentar entender o amor por meio de textos”, brinca o psicoterapeuta Ascânio Jatobá, coordenador do Curso de Sonhos, em São Paulo. “É melhor se apaixonar, não é mesmo?”
Por Rachel Costa e André Julião
Fonte:
IstoÉ