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terça-feira, 28 de agosto de 2012
A Religião do Futuro
A segunda palestra, A Religião do Futuro, examina o conteúdo da religião transformada, em seu registro secular. O tema central é a necessidade e o potencial para uma revolução na nossa crença religiosa. Dois obstáculos dificultam pensar sobre a religião. O primeiro deles é o tabu contra a crítica religiosa da religião. As origens deste tabu encontram-se na privatização da religião e no fim das guerras religiosas do início do período moderno. O segundo obstáculo a ser superado é a atitude sentimental em relação à religião. Na prática, a atitude sentimental em relação à religião é útil para uma democracia social institucionalmente conservadora. Ela serve para manter as aparências: trata-se de um aprimoramento metafísico dos mesmos preconceitos morais frequentemente apoiados pelo humanismo secular predominante.
The second lecture, The Religion of the Future, examines the content of the transformed religion, in its secular register. My central theme throughout is the need and the potential for a revolution in our religious beliefs. Two obstacles make it difficult to think about religion. The first obstacle is the taboo against the religious criticism of religion. The origins of this taboo lie in the privatization of religion and the overcoming of the religious wars of the early modern period. The second obstacle to overcome is the sentimental attitude to religion. In practice, the sentimental attitude to religion serves an institutionally conservative social democracy. It is window dressing: a metaphysical upgrade of the same moral prejudices habitually embraced by the prevailing secular humanism.
O argumento retomado
1. O meu tema na primeira palestra foi o motivo, a ocasião e o objetivo de uma revolução na consciência religiosa da humanidade. Meu tema nessa segunda leitura é o programa dessa revolução.
Eu descrevi as três principais orientações na historia religiosa da humanidade. A terceira — que eu chamei de batalha com o mundo — tem aparecido, não apenas no começo, mas repetidamente e mais frequentemente como uma forca revolucionária. Nos últimos séculos, ela tem ajudado a iniciar e influenciar ideologias seculares de emancipação, que afetaram grande parte da humanidade, e também a cultura romântica popular mundial, que ajudou a ensinar a todos os seres humanos que eles estão destinados a ter uma vida grandiosa apesar das circunstâncias que parecem dizer o contrário.
A nossa lealdade a essa visão pode ser validada somente dentro de um sentido estrito, no qual qualquer visão mais ampla do nosso lugar no planeta pode ser sustentada: pela incitação combinada de várias formas de experiência e de uma maneira que nunca inteiramente a livra de ser uma aposta e uma profecia que se auto-realiza. Além do mais, a sua ascendência deve ser qualificada. Em vários aspectos, o que eu chamei de humanização do mundo, em vez de batalhar com ele, tem uma presença mais forte nas ideias e atitudes consagradas nas interpretações praticas convencionais de varias religiões — incluindo o Cristianismo — que eu associo com a orientação batalha-com-o-mundo. Ela também dita o tom e direção da humanismo secular prevalente. O que falta a essas crenças humanizantes, no entanto, apesar da sua imensa influência, é o poder da iniciativa; elas não, e eu creio que elas não devem, determinar a agenda.
No cerne do programa revolucionário espiritual encontramos os dois temas relacionados que sempre foram vitais para a batalha contra o mundo: a substituição do amor pelo altruísmo como o principio organizador da vida moral e a concepção do indivíduo e humanidade como sendo moldado e ao mesmo tempo sendo capaz de transcender o contexto, ou como sendo, de acordo com a antiga linguagem teológica e metafísica, uma colocação, uma personificação, do infinito dentro do finito.
Essas ideias – amor e infinito — são conectadas de uma maneira que nos incitam a mudar o mundo. Nós o mudaríamos para tornar as nossas vidas e circunstâncias mais parecidas com a visão. Nós também o mudaríamos porque a própria batalha nos tornaria mais divinos. Ela aumentaria a nossa parcela de divindade. Ela vira o jogo contra a experiência de desdenho, precisamente o que esta revolução busca desafiar e superar.
2. Eu desenvolvo o argumento seguindo determinados passos. Eu descrevo as duas maneiras que podem ser usadas para levar a cabo a revolução espiritual. Uma – o caminho sagrado — continua a depender da narrativa da intervenção redentora divina na história. A outra – o caminho profano — não depende em nenhuma narrativa desse tipo e por isso leva ao limite a ideia de que tudo não esta tão bem afinal de contas.
A maior parte dessa palestra lida com o conteúdo deste caminho profano.
O caminho sagrado e o profano
1. A revolução pode proceder com ou sem um apelo à fé nas ações redentoras de Deus na história. A diferença entre fazer tal apelo e evitá-lo importa, por dois motivos.
Em primeiro lugar, importa por causa da autoridade. A narrativa de intervenção divina cria disputas em torno de uma autoridade moldada pelo papel de agentes humanos na interpretação e transmissão da obra salvadora de Deus. Nenhuma narrativa, nenhum privilégio. A oportunidade então se abre não apenas ao sacerdócio de todos os devotos, à maneira da reforma Protestante, mas também a uma afirmação do poder profético de todos os homens e mulheres, no espírito da democracia.
Em segundo lugar, importa por causa da substância. A história da intervenção divina nos diz que a habilidade de abrir e visualizar o caminho só está parcialmente em nossas mãos. A maior parte da salvação vem depois e está escondida no fim dos tempos e na fase que vem depois da vida humana. A rejeição dessa visão nos força a aceitar a noção de que só existe uma perspectiva de salvação — ou resposta – na medida em que nós somos capazes de providenciar uma. Não existe mais ninguém, só nós. Não existe ninguém lá em cima nos protegendo.
A pecha de Pelagianismo sempre irá pairar sobre aquele que propuser o caminho profano nos olhos daqueles que escolhem o caminho sagrado e não importa o quão insistente ele pode ser ao negar o nosso poder de criar um desfecho para historia através de uma reconciliação definitiva dos conflitos e contradições que nos afligem. De sua parte, o viajante do caminho secular, verá o devoto, com que ele compartilha a ambição transformativa, como uma vitima do principio de William James que diz que as pessoas acreditam em tudo que elas podem acreditar, e suspeitam que ele está envolvido numa fantasia de edificação e auto-decepção que ameaça abrandar e mudar o foco do impulso revolucionário.
2. Apesar das diferenças significativas que os separam, o caminho sagrado e caminho religioso para iniciar a revolução são mais semelhantes entre si do que a probabilidade de qualquer um deles se assemelhar ao humanismo secular predominante ou às formas fossilizadas de pratica e crença religiosa. A razão é ao mesmo tempo simples e fundamental: a consciência que a visão evocada na ruptura dos religiosos convencionais e os humanistas seculares, e sujeita a um impulso radicalizante dos aspirantes a revolucionários, continua incompatível com muito do que nós pensamos, de como nos vivemos e de quem nos somos.
Eu proponho uma visão do conteúdo da revolução do ponto de vista do caminho maneira profano. Eu também gostaria de acreditar, mas eu não posso. Eu espero que a atitude sentimental para com a religião, com a sua busca mentirosa por um centro de reabilitação entre a verdade e a inverdade das crenças religiosas, não vai ter muitos adeptos numa humanidade futura.
3. O que ganhamos ao chamar a forma profana da revolução de uma mudança na consciência religiosa da humanidade – dado que o conceito da religião não possui um núcleo estável?
Em primeiro lugar, o objetivo aqui consiste em enfatizar a proximidade com a tradição que eu descrevi como batalha com o mundo. A mensagem daquela tradição precisa ser radicalizada por uma superação de restrições – institucionais e intelectuais — que agora restringem o seu alcance e empobrecem o seu significado. No entanto, a radicalização representa uma melhora pois ela significa uma ruptura. O que gera a aceitação ou rejeição de uma narrativa de intervenção divina na história gera o assunto em disputa entre os revolucionários sagrados e os seculares.
Em segundo lugar, o objetivo é enfatizar o quanto o programa da revolução tem em comum com duas das características que nós associamos com a religião. Uma dessas características é o escoramento de uma orientação existencial numa visão do nosso lugar no planeta. A outra característica é o caráter fragmentário, complicado e limitado da justificação que a crença religiosa pode reivindicar. O programa profano que eu insisto em chamar de revolução religiosa oferece uma visão da direção na qual nós podemos mudar quem somos e como nós nos vemos, e ela conecta o seu programa espiritual e institucional com uma certa maneira de lidar com mortalidade e a contingência. Ela requer que nós adotemos uma posição antes de termos, de acordo com os padrões do discurso racional, uma base que a sustentar nossa posição.
Como seria o caminho sagrado para levar adiante a revolução religiosa?
1. Visto que, como um número crescente pessoas no mundo, eu não sou um crente, e visto que, ao contrário de muitas delas, eu não finjo que existe uma posição intermediária entre acreditar e não acreditar, eu proponho uma descrição do programa da revolução religiosa na sua forma secular. Eu começo, no entanto, sugerindo quais seriam algumas das características da voz sagrada da revolução religiosa. Com esse propósito foco, eu me valho da única religião que eu conheço intimamente, por assim dizer, por dentro: o Cristianismo. Eu falo como se fosse cristão, e, particularmente, católico, teólogo que não sou. O que me encoraja a fazê-lo é a confiança na afinidade entre as rotas sagradas e profanas que levam à revolução religiosa que eu comecei a descrever. Nesse exercício, eu me movimento, em fragmentos, das implicações políticas e morais para o núcleo da concepção e método teológico.
2. O ensinamento social da igreja teria como foco a rejeição das instituições políticas, econômicas e sociais atuais, por causa das razões enumeradas na última palestra e elaboradas nesta. Um ponto decisivo é a recusa para simplesmente atenuar as consequências da estrutura de classe.
Considere, à guisa de exemplo, a trajetória da doutrina social católica. Partindo do seu foco em direitos sociais no fim do século XIX, sem qualquer estrutura institucional de organização política e econômica capaz de cumprir essas promessas, ela prosseguiu para o comunitarianismo corporatista das encíclicas papais entreguerras. Após essa doutrina ser desacreditada, o ensinamento social da igreja católica voltou, no fim do século XX, para o caráter vacuidade institucional no qual se encontrava no fim do século XIX. O que é necessário hoje é um programa para democratizar a economia de mercado e aprofundar a democracia política através de inovações nas formas institucionais do mercado e da democracia. (Tal tentativa seria muito diferente da combinação de conservadorismo institucional ou agnosticismo e igualitarianismo redistribuitivo que marcaram as tendências dominantes na filosofia política anglo-americana nas ultimas décadas.)
A relação passiva de muito do ensinamento social cristão com as formas de organização social econômica é análoga à espiritualização crista do feudalismo europeu. Trata-se de uma acomodação que camufla as tensões manifestas entre a visão profética e a estrutura vigente.
3. Durante séculos, a agitação e reordenamento da doutrina cristã contra a moralidade convencional regrada da época, e também contra a história dessa moralidade das instituições sociais herdadas, encontrou inspiração numa redescoberta e reinterpretação da ênfase Paulina e Agostina na fé contra a razão, na graça contra a obra e no amor contra a lei. O resultado tem sido o surgimento de uma confusão no que tange um assunto vital à religião.
Instituições e regras, se insuladas contra contestações e mudanças, se tornam instrumentos de uma idolatria contrária ao espírito. Mas a religião cristã tem que ser tão contra um antinomianismo que trata toda repetição, regra e estrutura institucional como o toque de Midas que acaba com o espírito quanto o é contra a idolatria de instituições estabelecidas. A “via negativa” do antinomianismo institucional deságua num abandono do mundo, acima do mundo social, claramente em contradição com os principais ensinamentos da religião. (Essa é a heresia, uma doutrina de desespero, na qual o grupo Paulino-Agostiniano sempre corre o risco de cair. Nós vemos sinais dela em pensadores do século XX tão distintos quanto Karl Barth e Jean-Paul Sartre.) A simples oposição entre o espírito e estrutura (ou repetição, regra e instituição) tem que ser superada por uma mudança progressiva na relação entre a estrutura e o espírito, na vida do indivíduo e também na organização da sociedade.
O ponto, ao fim e ao cabo, é insistir na incorporação do espírito no mundo. Tal incorporação não pode ocorrer enquanto o espírito paira sobre o mundo cujas rotinas ele é incapaz de penetrar e transformar.
Uma das implicações práticas dessa visão é o peso teológico do experimentalismo, sobre a extensão de cada vida individual e também sobre a organização da sociedade. A abertura ao novo está relacionada à abertura a outras pessoas.
4. Ao colocar a autotransformação e a transformação da sociedade no contexto de uma narrativa das obras redentoras de Deus na história, nós afirmamos um princípio de esperança radical. As transações entre Deus e a humanidade podem ser compreendidas somente através de uma comparação com as transações entre pessoas. Contudo, elas dão a essas transações um grau de abertura, de possibilidade, de profundidade, de importância, que sem elas normalmente não teriam, ou a teriam de uma maneira muito mais limitada.
A esperança é a esperança de que o mundo, especialmente o mundo humano, pode ser penetrado e transformado, o que significa, na linguagem teológica, que ele pode ser redimido. O cristão vive para esse futuro, mas ele vive para ele como uma maneira de viver no momento, e ele vive para ele à luz de algo que já aconteceu.
5. O Deus de Abraão acima do Deus dos filósofos. O enigma escandaloso do Deus pessoal e a sua obra histórica acima do racionalismo reconfortante da divindade impessoal. O tempo nesse mundo real e único acima da eternidade de muitos mundos possíveis.
O cristianismo pode ser de fato finalmente liberado da influência da filosofia grega. Ele deve se livrar dela, no entanto, de uma forma que considere a mensagem da intervenção divina e da reconciliação como o aprofundamento e expansão de algo que nós já conhecemos, imperfeita e obscuramente, na nossa experiência humana secular de encontro e conexão e que é, portanto, capaz de elucidação parcial. A sua teologia não pode acabar numa celebração da obscuridade.
6. O que justifica denominar uma transformação de crenças com tais características de revolução é a sua combinação de mudança na visão espiritual, no método teológico, no programa institucional e na atitude existencial.
7. Tendo sugerido, na condição de descrente solidário, possíveis características da revolução na sua forma sagrada, eu agora passo a uma descrição do programa que, na sua forma profana, ela colocaria em marcha. O programa é composto por quatro partes. Chamá-las-ei de: a tomada do poder, a transformação, a autotransformação e a recompensa.
A tomada do poder
1. A primeira parte do programa consiste no despertar do estado semi-consciente no qual normalmente vivemos nossas vidas. Ela tem como objetivo nos arrancar das rotinas consoladoras da sociedade e da cultura. Ao encarar a morte de frente e o fato de que vivemos num mundo desprovido de bases sólidas — com a realidade da mortalidade e com o mistério do nosso lugar num mundo que nós somos incapazes de compreender por completo, que existe num espaço temporal cujo começo e fim nós não podemos alcançar — corremos o risco de recuar de uma maneira covarde e humilhante para uma vida que é empobrecida através do enfraquecimento da consciência. A vida, vivida no agora, é tudo que temos. Ao desperdiçá-la, tudo perdemos.
Praticamente todos os grandes pensadores da nossa tradição escreveram sobre essa característica básica da nossa experiência. Trata-se, por exemplo, do “divertissement” de Pascal ou do “Zerstreuung” de Heidegger.
2. E o que devemos fazer a respeito? Parte, mas apenas parte da resposta poderemos encontrar nas ideias e histórias que eles informam. O começo e o fim das ideias deve ser o reconhecimento da mortalidade e da falta de fundamentos, sem a anestesia das teologias e filosofias preocupadas apenas em nos fazer sentir bem.
Ideias sem conteúdo e não concretizadas não são, no entanto, o suficiente. Muitos soldados alemães educados carregavam o Ser e Tempo nas suas mochilas no front da Segunda Guerra Mundial. Suspeitamos que se não fosse o Ser e Tempo seria um exemplar de outra coisa, qualquer coisa capaz de descrever as experiências que nos colocam no limite do que nos podemos ver e resistir. Não foi o texto que fez isso. Foi à guerra.
3. As ideias precisam ser suplementadas pelas práticas: as práticas institucionalizadas da sociedade e as práticas discursivas da cultura. Tais práticas precisam servir como estandartes da nossa tomada de poder auto-infligida, para que possamos ser ao mesmo tempo os depositores e os depostos.
Elas devem ter um atributo distinto e compartilhado. Nós normalmente conseguimos distinguir entre nossas ações de preservação ou contestação ou revisão do contexto. Nós estamos acostumados a nos mover dentro de uma estrutura de arranjos e pressupostos que nós tomamos como dada. Excepcionalmente, desafiamos e revisamos a estrutura por meios que são inevitavelmente apenas incrementais, mas que podem se tornar, pelo seu movimento direcionado e reiterado, radicais no seu efeito transformativo.
A distância entre essas duas classes de atividades não é constante. Ela varia. A distância depende da organização da sociedade e da cultura e, certamente, da alta cultura de cada uma de suas disciplinas. Quanto maior a distancia, quanto mais a mudança dependerá da crise.
Para favorecer a tomada do poder, não como um evento único, mas como um processo contínuo, nós precisamos trabalhar no sentido de diminuir a distância. Nós devemos preferir que as práticas de revisão de contexto sejam causadas, mais pronta e continuamente, pelo exercício das práticas de preservação de contexto. Uma das consequências será o fato de que a mudança dependerá menos da crise para tornar o impulso revisionista mais inerente a nossa experiência. Nós seremos então mais livres e maiores: assim, essa derrubada ergue ao mesmo tempo em que nos arranca da condição atual.
Teríamos pouca perspectiva de desenvolver e disseminar tais práticas caso elas não servissem vários outras sortes de interesses morais e materiais e não apenas nosso interesse espiritual pela tomada de poder: nossos interesses no desenvolvimento de nossas capacidades práticas e no enfraquecimento de divisões e hierarquias sociais enraizadas. Aqui, então, encontra-se um ponto de contato entre os motivos da revolução religiosa inicial — a que deu a luz às três orientações religiosas dominantes históricas que eu descrevi — e a revolução que nós temos a obrigação de concretizar.
3. Como estou numa grande universidade, nem precisaria dizer que tal esforço é contrário às tendências racionalizadoras, humanizadoras e escapistas que comandam as ciências sociais e a área de humanas, já que os grandes relatos da ascensão da humanidade, sustentados pelas mais ambiciosas e esperançosas teorias sociais do passado deixaram de ser críveis. Essas tendências racionalizadoras, humanizadoras e escapistas parecem se antagonizar. Na verdade, elas funcionam de forma concertada para desarmar a imaginação transformativa. Na mesma veia, elas colocam a mistificação no lugar da compreensão.
A transformação
1. A segunda parte da revolução diz respeito à mudança nas instituições da sociedade. Existem três males que tem de ser confrontados: as divisões e hierarquias sociais que menosprezam e apequenam a vida — particularmente a sua estruturação em classes; a restrição da solidariedade à família e, para além da família, à conexão tênue do dinheiro; e o fato da mudança depender da crise. Desses, o terceiro é ao mesmo tempo o mais remoto das preocupações imediatas da vida social e o que possui a relação mais íntima com a religião do futuro.
Os males estão causalmente conectados pela sobreposição de suas condições causais. Cada um dos problemas tem uma relação íntima com um conjunto de inovações institucionais. Contudo, cada série de inovações afeta todos os problemas.
1. O mal da desigualdade enraizada e obstrutora de oportunidades está mais intimamente associado à necessidade de reconstruir o conteúdo institucional da economia de mercado. Nós não podermos construir uma economia de mercado mais inclusiva sem inovações nas instituições que a organizam. (Os americanos tentaram isso, no começo do século XIX ao organizarem uma forma de agricultura familiar combinado a um sistema descentralizado de bancos e crédito). Nós precisaríamos inovar a estrutura que governa a relação entre governos e firmas e a estrutura que molda as relações entre produtores. Regimes diferentes de propriedade privada e social teriam que coexistir em caráter experimental dentro da mesma economia de mercado. Para ampliar o acesso às formas mais avançadas e experimentais de produção e aprendizado que estão emergindo, em conjunto, no mundo seria uma das ambições principais deste programa institucional.
O potencial transformativo de tais reformas só seria realizado na medida em que fosse combinado com uma reformulação da educação. Tal reformulação reconciliaria a administração local das escolas com padrões nacionais de investimento e qualidade. E ela insistiria num método de ensino e aprendizado que fosse cooperativo e dialético (sempre procedendo via o contraste de pontos de vista opostos) e também analítico e focado em problemas.
2. O fracasso da solidariedade fora do círculo familiar não pode ser remediado apenas com transferências de dinheiro. Ela requer o desenvolvimento e aplicação do princípio que todo adulto capaz deve, durante certos períodos da sua vida ou por parte do seu tempo, sempre ser responsável por ajudar a cuidar de pessoas fora da sua família, de acordo com o seu talento e disposição. Dinheiro, sem tempo e engajamento, não é o suficiente para fornecer para cada indivíduo uma resposta para a questão mais importante: onde estão os outros?
Ao insistir na primazia dessa questão ficamos cara-a-cara com a fraqueza humana em todas suas formas e damos as costas à idolatria do poder que poderia corromper a religião do futuro.
Dessas considerações surge o argumento favorável para o serviço social voluntário e também obrigatório.
3. Todas as nossas instituições – as econômicas, sociais e políticas — em todas as sociedades, no mundo inteiro, estão organizadas de uma maneira que torna a transformação dependente do trauma, tradicionalmente na forma da ruína ou guerra. Não é necessário que seja assim, ao menos não numa medida imutável. Esta medida, por sua vez, depende da organização da sociedade. Entre nossas instituições, nossos arranjos políticos são especialmente importantes, especialmente numa democracia, pois eles ditam as regras que utilizamos para mudar todos os outros arranjos.
A consequência mais abrangente do fato da mudança ser dependente da crise é a criação de uma situação em que, a cada passo dado, somos obrigados a escolher entre o engajamento e a resistência, entre a aceitação dos outros e a manutenção do direito de ter a última palavra. Enquanto estivermos obrigados a tomar esse tipo de decisão, não poderemos atender ao chamado de estar no mundo sem ser do mundo.
Uma democracia altamente energética e vibrante é o projeto necessário para lidarmos com esse problema dadas as condições históricas atuais. Tal democracia seria definida por cinco grupos de inovações institucionais. Um grupo incrementaria o nível de engajamento cívico organizado. Ele aumentaria a temperatura da esfera política. O segundo grupo providenciaria meios para resolver impasses entre os poderes do governo, seguindo o princípio liberal da fragmentação de poder e ao mesmo tempo repudiando o compromisso conservador (consagrado, por exemplo, no esquema de Madison) de desacelerar a política sob o falso estandarte da liberdade. Haveria uma aceleração do compasso da política. O terceiro grupo exploraria com maior eficácia o potencial experimentalista do federalismo ao dar maior margem para que setores da sociedade, economia e unidades federativas testassem modelos que estivessem a contrapelo da direção convencional seguida pelas políticas públicas federais. O quarto grupo criaria um poder dentro do governo, projetado e equipado especificamente para resgatar grupos desprivilegiados de sua circunstância de exclusão e subjugação da qual eles não tem capacidade de escapar por meio dos mecanismos políticos e ações econômicas aos quais atualmente têm acesso. O quinto grupo teria como objetivo enriquecer as instituições de democracia representativa pela incorporação de mecanismos de democracia direta e participativa sem, entretanto, acarretar na diluição das salvaguardas da liberdade individual.
4. Pode parecer estranho evocar um programa institucional no delineamento de um programa de revolução religiosa. No entanto, não é tão estranho assim, pois se a orientação religiosa insiste na criação de um mundo social mais justo e que proporciona mais oportunidades para a pessoa que transcende o contexto: ou seja, usando outra linguagem, para o espírito incorporado e situado, o original radical, que todos nós sabemos que somos. Temos um programa institucional para não desistir do mundo.
O objetivo maior desse programa não é humanizar a sociedade, mas, sim, tornar a humanidade divina. Seu objetivo é elevar a vida ordinária — não apenas para uma elite de heróis, gênios e santos, mas para todos — para um nível mais alto de intensidade e capacidade.
A auto-transformação
1. O programa para a reconstrução da sociedade vem acompanhado por um projeto para a transformação do ser. Se o projeto social avança com passos fragmentados, cumulativos, o mesmo valerá também, por razões melhores, para o projeto pessoal. Afinal, é mais fácil mudar uma sociedade do que mudar um indivíduo. Esse projeto se volta a uma reinterpretação dos hábitos da mente e do coração mais valorizados na tradição da batalha com o mundo. Num contexto cristão, ele depende de uma reinterpretação do lugar das virtudes teológicas de fé, esperança e amor na nossa vida moral.
2. O que está em jogo nesse redirecionamento fica mais claro quando a contrastamos com a visão pagã, greco-romana das virtudes. Ainda estamos para superar a influência desse quadro antigo. Sim, as virtudes da conexão — coragem, imparcialidade e tolerância — têm um papel indispensável e encorajador. Sua tônica é o abandono progressivo da experiência primitiva de estar no centro do mundo; elas nos reconciliam, na prática, com a visão de que nem tudo gira em torno de nós.
Tais virtudes precisam ser casadas com as virtudes da purificação — a kenosis dos teólogos da patrística. Por meio de tais virtudes — compaixão, simplicidade e entusiasmo – afrouxamos os grilhões que nos atam ao mundo. Ao fazer isso, conseguimos enxergar melhor o mundo e as pessoas dentro dele. À medida que nossos poderes e confortos aumentam, também aumenta o valor desse desafogo para o gozo de nossa liberdade do mundo estando no mundo.
No entanto, a importância dessas duas famílias de virtudes é transfigurada por uma terceira família que é decisiva para determinar um caminho para a vida. Essas são as virtudes da divinização: nossa aceitação do novo e de outras pessoas. É ela que nos empurra para uma existência na qual nós podemos reconhecer que a transcendência é mais importante do que a circunstância e que o amor ao próximo é uma das estralas guia da vida moral.
Parte da função deles na nossa experiência consiste em compensar pelas consequências da divergência entre o tempo histórico e biográfico: para tornar possível que cada um seja capaz de entrever na sua própria vida, nesse instante, os objetivos da revolução religiosa que essas palestras descrevem, antes de conseguirmos, coletivamente, transformar a sociedade e a cultura.
3. Vista a partir de um ângulo diferente, o objetivo desse ideal de personalidade, dessa orientação existencial, é morrer apenas uma vez, dado que temos que morrer, em vez de morrer várias pequenas mortes. É, além disso, resistir e reverter o estreitamento do foco e da adaptação às circunstâncias que ameaçam nos dominar e nos matar, pouco a pouco, durante as nossas vidas. O objetivo maior dessa conversão é nos dar vida enquanto estamos vivos.
A recompensa
1. No fim, o que temos é a nossa vida, nesse momento.
As raízes do ser humano, de acordo com a religião do futuro, estão mais no futuro do que no passado. A profecia conta mais que a memória; a esperança, que a experiência; a surpresa mais que repetição. O tempo é mais importante do que a eternidade. Nós vivemos para o futuro, à luz do futuro.
No entanto, um paradoxo formativo da religião do futuro é que viver no futuro é uma maneira de viver no presente como um ser que é mais, e que é capaz de mais, do que a sua situação permite ou revela.
Ao assim reorientarmos nossas vidas, somos recompensados. Nossa recompensa não nos resgata da mortalidade ou da ausência de fundamentos. Ela não nos consola em relação à morte. Ela nem mesmo nos prepara para a morte, algo que Fédon queria que a filosofia fizesse. Ela não supera nem ameniza o caráter inconcebível e surreal da nossa existência. Tudo não vai acabar bem.
2. Qual seria então, dentro desses limites, a nossa recompensa?
Nossa recompensa é poder agir, obstinadamente e com todo o coração, no mundo sem sermos vencidos pelo mundo. O engajamento faz parte da liberdade: nós nos criamos ao engajar numa ordem social e cultural particular. A resistência faz parte da liberdade: nós nos criamos ao resistir tal ordem. Enquanto os requisitos do engajamento e da resistência se contradisserem, não estaremos livres. Ficaremos mais livres na medida em que tais requisitos forem reconciliados. Teremos uma chance maior de agir como os originais, os que transcendem o contexto, os que compartilham de atributos da divindade, estando nesse caminho de evolução das nossas crenças religiosas como a rota mais confiável para a auto-revelação e autoconstrução.
Nossa recompensa é ter chance maior de forjar uma conexão com outras pessoas — reconhecer e aceitá-las como seres transcendentes-de-contexto — isto é, transcendentes de classe, raça, gênero e papel — indivíduos que afirmamos ser sem abrir mão do que temos de distinto e oculto (separateness and hiddenness). É também, portanto, ver aumentado o círculo invisível do amor do qual todos nós fazemos parte mesmo quando não conseguimos amar aqueles que não estão no nosso círculo de conhecidos.
Nossa recompensa é a vida, fadada à morte, porém elevada a um nível de maior de intensidade enquanto estivermos vivos. É a chance de morrer apenas uma vez. É a pausa e a reversão do processo de mumificação – a carapaça da rotina e acordos – que se forma ao nosso redor à medida que envelhecemos. Possuir a vida, agora mesmo, de olhos abertos, neste instante momento, é o mais importante objetivo da nossa autotransformação, conquistada graças a uma derrubada, uma tomada de poder auto-imposta do ser. Para chegar a esse ponto, no entanto, precisamos rejeitar o ideal de serenidade pela invulnerabilidade, ideal este que dominou a filosofia moral dos antigos e que penetrou as ideias morais dos últimos séculos. Temos que substituí-la com uma visão que aceita a vulnerabilidade e a rejeição como uma condição para intensificar a batalha com o mundo.
Nossa recompensa é o mundo real e multifacetado, do qual nós, como uma cultura e sociedade organizada, não desistiríamos, mas que, como natureza e cosmos, possuiremos mais plenamente. Possuí-lo mais plenamente significa aliviar o peso dos esquemas categóricos através dos quais o vemos e interpretamos. Significa afirmar os nossos poderes de transcendência em relação aos nossos métodos e pressupostos e também em relação às nossas instituições e práticas. Significa acreditar que a humanidade poder participar mais ativamente na experiência da genialidade, que não consiste em pensar mais, mas em perceber mais.
Tais resultados serão as causas e as consequências da intensificação da experiência, da concentração da vida no instante, que é a única resposta à mortalidade e à contingência que, com a iluminação religião do futuro, temos o direito de acreditar.
Contra-correntes na religião do futuro
1. Primeiro, parece haver um conflito entre a recompensa e a tomada de poder. A confrontação infindável com o fato da morte e com o risco da ausência de sentido e da rejeição de qualquer historia, sagrada ou secular, que eliminaria os seus terrores, parece fazer pairar uma sombra sobre a recompensa.
E de fato esta sombra existe. O conflito está no mundo, não no argumento. A tomada de poder é o requisito da transformação e da autotransformação. Juntos, estes formam o portal para a recompensa. A sombra e o portal são inseparáveis na constituição da nossa experiência.
Se, como resultado da tomada de poder, da transformação e da autotransformação, viermos a ter mais vida no momento do agora, poderemos correr risco maior de sermos dominados e paralisados pelo sentimento da vida do que antes, pelo medo da morte e pela vertigem causada pela ausência de fundamentos.
2. Portanto, aparentemente temos um conflito entre a recompensa, de um lado, e a transformação e autotransformação, do outro. A autotransformação nos coloca num caminho de busca eterna. A transformação consiste de instituições e práticas que nos conduzem a tal busca em vez de, como as instituições e práticas historicamente tem feito, para longe delas.
Estaríamos assim a ponto de sermos acorrentados, de tal maneira similar à situação da qual os filósofos da superação do mundo queriam nos libertar, ao círculo do desejo, ao carrossel da nostalgia, saturação, tédio, inquietação e luta interminável e, na esfera da percepção do mundo real, à oscilação entre ver e fitar fixamente?
De fato, estamos. Ou pelo menos estamos, salvo na medida em que o incremento da nossa experiência de vida e da nossa percepção dos outros e do mundo muda a maneira como vivenciamos a dialética inscrita na nossa constituição. Tal incremento pode mudar essa dialética, de forma assaz simples, transformando estes circuitos em rotas ascendentes no que diz respeito ao único bem que realmente possuímos, a vida vivida agora, porém enxergada à luz ao futuro.
Revolução religiosa
1. Tocqueville chegou a afirmar que toda grande revolução nos afazeres humanos é ao mesmo tempo uma revolução política e religiosa. Creio que com isso ele quis dizer que cada revolução representa uma reformulação de instituições e uma expansão da consciência.
Vivemos numa era de desilusão. Se não ficarmos desiludidos com a desilusão, profetas políticos e religiosos surgirão mesmo assim. Eles empreenderão, cedo ou tarde, a tarefa que não conseguimos realizar.
Eu já sugeri o que eu acredito ser não a doutrina, mas a direção da revolução que nós precisamos. Eu a descrevi do ponto de vista da religião e, em outros momentos, do ponto de vista da política. Eu sei, no entanto, que essa distinção só faz sentido se vista de uma perspectiva alheia aos objetivos e métodos de tal revolução.
As expressões que a insurreição pode assumir, no seu lado mais religioso, provavelmente possuem em comum com as revoluções religiosas antigas apenas a combinação de ação exemplar e ensinamento visionário. Todo o resto será inevitavelmente diferente, tão diferente que pode, no início, ser irreconhecível como a revolução que é.
O simples ensinamento central dos revolucionários deve ser e será, todavia, um que nós já podemos ouvir e seguir.
Em breve morreremos e deterioraremos e seremos esquecidos, embora tenhamos o sentimento de que não deveríamos. Morreremos sem compreender o que esse mundo estranho, e o breve tempo que passamos nele, realmente significa.
Nossa religião deve começar com o reconhecimento desses fatos aterrorizantes e não com a sua negação, como a religião tradicionalmente tem feito. Ela deve nos motivar a mudar a sociedade, cultura e nós mesmos para que nos tornemos — todos nós, não apenas alguns felizardos — maiores assim como mais iguais e incorporar uma parte maior das qualidades que atribuímos a Deus. Ela também deve, portanto, nos tornar mais dispostos a nos desproteger pelo bem da compaixão e do amor. Ela deve nos convencer a trocar a serenidade pela busca.
Assim sendo, enquanto vivermos teremos uma vida maior, nos afastando dos ídolos, porém nos aproximando um do outro. Seremos eternos, temporariamente.
Por Roberto Mangabeira Unger
Tradução de Thiago Nasser
Fonte:
http://revistaestudospoliticos.com/
a-religiao-do-futuro-por-roberto-mangabeira-unger/
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