segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

As Virtudes Selvagens



Se você busca as origens da ética, olhe as vidas de outros ani­mais. As raízes da ética estão nas virtudes animais. Os huma­nos não podem viver bem sem as virtudes que partilham com seus parentes animais.


Essa não é uma idéia nova. Há dois mil e quinhentos anos Aristóteles observou as semelhanças entre humanos e golfi­nhos. Como os humanos, os golfinhos agem propositalmente.

As origens da justiça, bem como da prudência, da modera­ção, da bravura - em suma, de tudo aquilo que designamos como as virtudes socráticas - são animais: uma conseqüên­cia daquele impulso que nos ensina a buscar comida e esca­par de inimigos.

Agora, se considerarmos que mesmo o mais elevado ser humano apenas se tornou mais elevado e sutil quanto à natureza do que come e em sua concepção do que é antagônico a ele, é adequado descrever todo o fenô­meno da moralidade como animal.

Para conseguir as boas coisas da vida, têm prazer em exerci­tar seus poderes e habilidades e mostram qualidades como curiosidade e bravura.

Os humanos não estão sozinhos nisso de ter uma vida ética.

Ao pensar dessa maneira, Aristóteles pensava como Nietzsche, que escreveu:

"A idéia ocidental dominante é outra. Ela ensina que os huma­nos são diferentes dos outros animais, que simplesmente res­pondem às situações nas quais se encontram. Nós podemos escrutinar nossos motivos e impulsos; podemos saber por que agimos como agimos. Tornando-nos cada vez mais autocons­cientes, podemos nos aproximar de um ponto no qual nossas ações sejam resultados de nossas escolhas. Quando estivermos plenamente conscientes, tudo que fizermos será feito por razões que podemos conhecer. A essa altura, seremos autores de nossas vidas."


Isso pode parecer fantástico, e é mesmo. Ainda assim, é o que nos foi ensinado por Sócrates, Aristóteles e Platão, Des­cartes, Spinoza e Marx. Para todos eles, a consciência é nossa própria essência, e a boa vida significa viver como um indiví­duo plenamente consciente.


O fato de que não sejamos sujeitos autônomos constitui um golpe mortal para a moralidade - mas é a única base pos­sível da ética. Se não fôssemos feitos de fragmentos, não po­deríamos praticar o auto-engano nem sofreríamos de falta de força de vontade. Se a escolha governasse nossas vidas, nun­ca poderíamos mostrar generosidade espontânea.

Se o "self" de cada um fosse fixo como imaginamos ser, não poderíamos lidar com um mundo abundante em descontinuidades. Se fôssemos realmente mônadas, cada um fechado em si mesmo, não po­deríamos ter a fugaz empatia com outras coisas vivas, a fonte última da ética.

O pensamento ocidental está fixado no hiato entre o que é e o que deveria ser.

Mas, em nossa vida diária, não escanea­mos nossas opções primeiro, para só depois atuar conforme a melhor delas.

Simplesmente lidamos com o que quer que se apresente.

Saímos da cama de manhã e vestimos nossas rou­pas sem decidir que vamos fazê-lo. Ajudamos a um amigo exa­tamente do mesmo jeito. Pessoas diferentes seguem costumes diferentes; mas, ao agir sem intenção, não estamos simples­mente seguindo hábitos. Atos não-intencionais ocorrem em todos os tipos de situação, incluindo aquelas com as quais nunca nos defrontamos antes.

Fora da tradição ocidental, os taoístas da China antiga não viam nenhum hiato entre ser e dever ser. A ação correta era o que quer que derivasse de uma clara visão da situação. Eles não seguiam os moralistas - confucionistas, naquela época - que buscavam acorrentar os seres humanos a regras ou princípios.

Para os taoístas, a vida boa é apenas a vida natural vivida com habilidade. Ela não tem nenhum propósito parti­cular. Não tem nada a ver com a vontade e não consiste em tentar realizar nenhum ideal. Tudo que fazemos pode ser fei­to de maneira mais certa ou menos certa, mas, se agimos cer­to, não é porque traduzimos nossas intenções em ações. É porque lidamos habilmente com o que quer que precise ser feito. A vida boa significa viver de acordo com nossas nature­zas e circunstâncias. Não há nada que diga que ela deva ser a mesma para todo mundo ou que deva estar em conformidade com a "moralidade".


No pensamento taoísta, a vida boa vem espontaneamen­te; mas espontaneidade está longe de ser simplesmente agir segundo os impulsos que nos ocorrem. Em tradições ociden­tais como o romantismo, a espontaneidade está ligada à subjetividade. No taoísmo, significa agir desapaixonadamen­te, baseado numa visão objetiva da situação presente. O ho­mem comum não pode ver as coisas objetivamente porque sua mente está anuviada pela ansiedade de alcançar suas metas. Ver claramente significa não projetar nossas metas sobre o mundo; agir espontaneamente significa agir de acordo com as necessidades da situação. Os moralistas ocidentais pergun­tarão qual é o propósito de tal ação, mas, para os taoístas, a vida boa não tem propósito. É como nadar em um redemoi­nho, respondendo às correntes, tal como vêm e vão.

"Mergu­lho com o influxo e emerjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não imponho a ela minha visão egóica. É assim que perma­neço à tona", diz Chuang-Tzu.


Dessa perspectiva, a ética é simplesmente uma habilidade prática, como pescar ou nadar.

O cerne da ética não é a esco­lha ou a atenção consciente, mas a aptidão para saber o que fazer.

É uma habilidade que vem com a prática e com uma mente vazia. A. C. Graham explica:

"O taoísta relaxa o corpo, acalma a mente, afrouxa a pressão exercida por categorias tornadas habituais pelo nomear, li­bera a corrente de pensamentos para diferenciações e assi­milações mais fluidas e, em vez de pesar escolhas, deixa que seus problemas se resolvam por si mesmos à medida que a inclinação espontaneamente encontre sua própria direção. (...) Ele não tem que tomar decisões baseadas em padrões de bom e mau, porque, admitindo-se apenas que iluminação seja melhor que ignorância, é auto-evidente que, entre inclina­ções espontâneas, a que prevalece numa situação de maior clareza da mente, outras coisas sendo iguais, será a melhor, ou seja, a que está de acordo com o Tao, o Caminho."


Poucos seres humanos têm a aptidão para viver bem. Obser­vando isso, os taoístas buscaram outros animais como guias para a vida boa. Os animais selvagens sabem como viver; não precisam pensar nem escolher. Apenas quando são acorren­tados pelos humanos é que param de viver naturalmente.


Como diz Chuang-Tzu, "os cavalos, quando em estado selvagem, comem capim e bebem água; quando estão satis­feitos, enlaçam seus pescoços e se esfregam. Quando enraive­cidos, viram-se de costas um para o outro e dão coices. É isso o que cavalos sabem. Mas, se atrelados juntos e obrigados a se alinhar, sabem como cabecear e arquear os pescoços, patear em círculos, tentar cuspir o freio e se livrar das rédeas."


Para pessoas escravizadas à "moralidade", a vida boa sig­nifica esforço perpétuo. Para os taoístas, significa viver sem esforço, de acordo com nossas naturezas. O ser humano mais livre não é o que age de acordo com razões que escolhe para si mesmo, mas o que nunca precisa escolher. Em vez de se agoniar entre alternativas, responde sem esforço às situações o taoísmo coincide com a visão científica de mundo exata­mente naqueles pontos em que essa visão mais incomoda os ocidentais enraizados na tradição cristã - a pequenez do homem em um vasto universo; o Tao não-humano que todas as coisas seguem, sem propósito e indiferente às necessida­des humanas; a transitoriedade da vida, a impossibilidade de saber o que vem após a morte; a mudança infindável na qual a possibilidade de progresso não é nem mesmo concebida; a relatividade dos valores; um fatalismo muito próximo do de­terminismo; até mesmo a sugestão de que o organismo hu­mano opera como uma máquina.


Autonomia significa agir segundo razões que escolhi; mas a lição da ciência cognitiva é que não existe nenhum "self" para fazer a escolha. Somos muito mais semelhantes a máquinas e animais selvagens do que imaginamos. Mas não podemos al­cançar o egoísmo amoral dos animais selvagens ou o automa­tismo sem escolha das máquinas. Talvez possamos aprender a viver com mais leveza, menos oprimidos pela moralidade. Não podemos retomar a uma existência puramente espontânea.


Se os humanos diferem de outros animais, é, em parte, nos conflitos entre seus instintos. Eles buscam segurança, mas são facilmente entediados; são animais amantes da paz, mas têm um gosto pela violência; são inclinados a pensar, mas ao mes­mo tempo odeiam e temem a incerteza trazida pelo pensar. Não existe nenhum modo de vida no qual todas essas neces­sidades possam ser satisfeitas. Felizmente, como atesta a histó­ria da filosofia, os humanos têm um talento para o auto-engano e crescem na ignorância de suas naturezas.


A moralidade é uma doença peculiar aos humanos, a vida boa é um refinamento das virtudes dos animais. Surgindo de nossas naturezas animais, a ética não precisa ter onde se an­corar; mas fica encalhada nos conflitos de nossas necessidades.


Por Adalberto Tripicchio 

Fonte:
rede psi