Essa não é uma idéia nova. Há dois mil e quinhentos anos Aristóteles observou as semelhanças entre humanos e golfinhos. Como os humanos, os golfinhos agem propositalmente.
"A idéia ocidental dominante é outra. Ela ensina que os humanos são diferentes dos outros animais, que simplesmente respondem às situações nas quais se encontram. Nós podemos escrutinar nossos motivos e impulsos; podemos saber por que agimos como agimos. Tornando-nos cada vez mais autoconscientes, podemos nos aproximar de um ponto no qual nossas ações sejam resultados de nossas escolhas. Quando estivermos plenamente conscientes, tudo que fizermos será feito por razões que podemos conhecer. A essa altura, seremos autores de nossas vidas."
Isso pode parecer fantástico, e é mesmo. Ainda assim, é o que nos foi ensinado por Sócrates, Aristóteles e Platão, Descartes, Spinoza e Marx. Para todos eles, a consciência é nossa própria essência, e a boa vida significa viver como um indivíduo plenamente consciente.
O fato de que não sejamos sujeitos autônomos constitui um golpe mortal para a moralidade - mas é a única base possível da ética. Se não fôssemos feitos de fragmentos, não poderíamos praticar o auto-engano nem sofreríamos de falta de força de vontade. Se a escolha governasse nossas vidas, nunca poderíamos mostrar generosidade espontânea.
No pensamento taoísta, a vida boa vem espontaneamente; mas espontaneidade está longe de ser simplesmente agir segundo os impulsos que nos ocorrem. Em tradições ocidentais como o romantismo, a espontaneidade está ligada à subjetividade. No taoísmo, significa agir desapaixonadamente, baseado numa visão objetiva da situação presente. O homem comum não pode ver as coisas objetivamente porque sua mente está anuviada pela ansiedade de alcançar suas metas. Ver claramente significa não projetar nossas metas sobre o mundo; agir espontaneamente significa agir de acordo com as necessidades da situação. Os moralistas ocidentais perguntarão qual é o propósito de tal ação, mas, para os taoístas, a vida boa não tem propósito. É como nadar em um redemoinho, respondendo às correntes, tal como vêm e vão.
Dessa perspectiva, a ética é simplesmente uma habilidade prática, como pescar ou nadar.
"O taoísta relaxa o corpo, acalma a mente, afrouxa a pressão exercida por categorias tornadas habituais pelo nomear, libera a corrente de pensamentos para diferenciações e assimilações mais fluidas e, em vez de pesar escolhas, deixa que seus problemas se resolvam por si mesmos à medida que a inclinação espontaneamente encontre sua própria direção. (...) Ele não tem que tomar decisões baseadas em padrões de bom e mau, porque, admitindo-se apenas que iluminação seja melhor que ignorância, é auto-evidente que, entre inclinações espontâneas, a que prevalece numa situação de maior clareza da mente, outras coisas sendo iguais, será a melhor, ou seja, a que está de acordo com o Tao, o Caminho."
Poucos seres humanos têm a aptidão para viver bem. Observando isso, os taoístas buscaram outros animais como guias para a vida boa. Os animais selvagens sabem como viver; não precisam pensar nem escolher. Apenas quando são acorrentados pelos humanos é que param de viver naturalmente.
Como diz Chuang-Tzu, "os cavalos, quando em estado selvagem, comem capim e bebem água; quando estão satisfeitos, enlaçam seus pescoços e se esfregam. Quando enraivecidos, viram-se de costas um para o outro e dão coices. É isso o que cavalos sabem. Mas, se atrelados juntos e obrigados a se alinhar, sabem como cabecear e arquear os pescoços, patear em círculos, tentar cuspir o freio e se livrar das rédeas."
Para pessoas escravizadas à "moralidade", a vida boa significa esforço perpétuo. Para os taoístas, significa viver sem esforço, de acordo com nossas naturezas. O ser humano mais livre não é o que age de acordo com razões que escolhe para si mesmo, mas o que nunca precisa escolher. Em vez de se agoniar entre alternativas, responde sem esforço às situações o taoísmo coincide com a visão científica de mundo exatamente naqueles pontos em que essa visão mais incomoda os ocidentais enraizados na tradição cristã - a pequenez do homem em um vasto universo; o Tao não-humano que todas as coisas seguem, sem propósito e indiferente às necessidades humanas; a transitoriedade da vida, a impossibilidade de saber o que vem após a morte; a mudança infindável na qual a possibilidade de progresso não é nem mesmo concebida; a relatividade dos valores; um fatalismo muito próximo do determinismo; até mesmo a sugestão de que o organismo humano opera como uma máquina.
Autonomia significa agir segundo razões que escolhi; mas a lição da ciência cognitiva é que não existe nenhum "self" para fazer a escolha. Somos muito mais semelhantes a máquinas e animais selvagens do que imaginamos. Mas não podemos alcançar o egoísmo amoral dos animais selvagens ou o automatismo sem escolha das máquinas. Talvez possamos aprender a viver com mais leveza, menos oprimidos pela moralidade. Não podemos retomar a uma existência puramente espontânea.
Se os humanos diferem de outros animais, é, em parte, nos conflitos entre seus instintos. Eles buscam segurança, mas são facilmente entediados; são animais amantes da paz, mas têm um gosto pela violência; são inclinados a pensar, mas ao mesmo tempo odeiam e temem a incerteza trazida pelo pensar. Não existe nenhum modo de vida no qual todas essas necessidades possam ser satisfeitas. Felizmente, como atesta a história da filosofia, os humanos têm um talento para o auto-engano e crescem na ignorância de suas naturezas.
A moralidade é uma doença peculiar aos humanos, a vida boa é um refinamento das virtudes dos animais. Surgindo de nossas naturezas animais, a ética não precisa ter onde se ancorar; mas fica encalhada nos conflitos de nossas necessidades.
Por Adalberto Tripicchio