A consciência da unidade é a simples consciência do verdadeiro território sem limites. Para explicá-la, não precisamos de truques, de fetiches, de jargão místico ou de miasmas de ocultismo. Se a realidade é de fato uma condição sem limites - e para negar isso temos de dar as costas à Teoria da Relatividade, às ciências ecológicas, à filosofia do organismo e à sabedoria do Oriente - se a realidade é uma condição sem limites, então a consciência da unidade é o estado natural da consciência que reconhece essa realidade. Em resumo, a consciência da unidade é a consciência sem limites.
Por mais simples que possa parecer, no entanto, é extremamente difícil discutir adequadamente a consciência sem limites ou a consciência da unidade.
Principalmente, não há limites entre sujeito e objeto, eu e não-eu, observador e observado. Eu enfatizo esse ponto, e me alongarei nele por todo este artigo, porque de todos os limites que o homem constrói, o limite entre o eu e o não-eu é o mais fundamental. É o limite que mais relutamos em abandonar. Afinal, foi o primeiro limite que traçamos. E o nosso limite mais estimado. Investimos anos para fortalecê-Io e defendê-Io, para torná-Io seguro. É o próprio limite que estabelece nossa noção de sermos um ente separado. E, à medida que envelhecemos, cheios de anos e memórias, e começamos a entrar no nada final da morte, esse é o último limite que abandonamos. O limite entre o eu e o não-eu é o primeiro que traçamos e o último que apagamos. De todos os limites que construímos, esse é o limite primário.
Tão fundamental é o limite primário entre o eu e o não-eu que todos os nossos outros limites dele dependem. Não somos capazes de distinguir limites entre coisas até que tenhamos nos distinguido das coisas. Todo limite que nós criamos depende de nossa existência separada, isto é, de nosso limite primário entre eu e não-eu.
Certamente, todos e quaisquer limites são obstáculos à consciência da unidade; mas já que todos os nossos outros limites dependem deste limite primário, ver através dele é ver através de todos. Num certo sentido, isso é extremamente oportuno, pois, se tivéssemos de lidar com todos os nossos limites em separado, um por um, levaríamos toda uma vida, talvez várias, para dissolvê-los e obter a "libertação dos pares". Contudo, ao focalizar o limite primário, nossa tarefa toma-se enormemente simplificada. É como se nossos diversos limites constituíssem uma pirâmide invertida de blocos, todos eles repousando no bloco da extremidade. Se retirarmos esse bloco, o edifício todo desmorona.
Podemos analisar esse limite primário sob muitos ângulos e sob muitos nomes. Ele é a separação irredutível entre aquilo que chamo eu e aquilo que chamo não-eu, eu aqui e os objetos lá. É a ruptura entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. É aquele espaço entre meu organismo e o meio ambiente. É a brecha entre o "eu" que agora lê e a página lida. No todo, é a brecha entre a pessoa que vivencia e o mundo vivenciado. Portanto, parece que, no lado de "dentro" do limite primário, existe o "eu", o sujeito, o que pensa, sente e vê, e do outro lado, há o não-eu, o mundo dos objetos lá fora, o meio ambiente, estranho e separado de mim.
Na consciência da unidade, na percepção sem limites, a noção do eu expande-se de modo a incluir sem omissões tudo o que antes foi considerado como não-eu. A noção que a pessoa tem de identidade transfere-se para o universo inteiro, para todos os mundos, superiores ou inferiores, manifestos ou não-manifestos, sagrados ou profanos. E, é óbvio, isso não pode ocorrer enquanto o limite primário que separa o eu do universo é erroneamente interpretado como sendo verdadeiro. Mas, uma vez compreendida a ilusão que o limite primário representa, a noção de eu que a pessoa tem passa a envolver o Todo - então não há mais nada fora da pessoa, nem lugar algum onde traçar qualquer tipo de limite. Assim, se em certa medida conseguimos começar a ver através do limite primário, a noção da consciência da unidade não estará muito longe de nós.
A partir do que foi dito, é bastante fácil chegar à conclusão errônea de que tudo o que devemos fazer para entrar na consciência da unidade é destruir o limite primário. Falando grosseiramente, isso é verdadeiro, mas a situação real é muitíssimo mais simples. De fato, não precisamos ter o trabalho de tentar destruir o limite primário, por uma razão extremamente elementar: o limite primário não existe.
Como todos os limites, ele é apenas uma ilusão. Apenas parece existir. Fingimos que existe, supomos que existe, comportamo-nos como se ele existisse. Mas não é o caso. E se formos em busca do limite primário, não descobriremos dele qualquer vestígio, pois os fantasmas não têm sombra.
Neste exato momento, e quero dizer bem agora, enquanto você está lendo isto, não existe um limite primário verdadeiro, e portanto, neste exato momento, não há uma barreira à consciência da unidade.
Logo, não sairemos à procura do limite primário para depois tentar destruí-lo. Na verdade, isso seria um grave erro, ou, pelo menos, uma colossal perda de tempo, pois não se pode destruir o que não existe. Tentar destruir o limite primário é como estar no meio de uma miragem agitando os braços furiosamente numa tentativa de fazê-la desaparecer apesar da intensa agitação que tal atividade pode criar, ela não deixa de ser algo totalmente fútil. Não se pode erradicar uma ilusão. Podemos apenas compreendê-la e ver através da própria ilusão. Sob este ponto de vista, mesmo a tentativa de destruir o limite primário através de atividades elaboradas tais como a ioga, a concentração mental, as preces, o ritual, os cânticos, o jejum - tudo isso simplesmente supõe a realidade do limite primário, e, portanto reforça e perpetua a própria ilusão que pretende destruir. Como disse Fenelon, Arcebispo de Cambrai: "Não há ilusão mais perigosa do que as fantasias através das quais as pessoas tentam evitar as ilusões."
Em vez de supor que o limite primário é real e depois tomar providências para tentar eliminá-lo, primeiro iremos em busca do limite primário propriamente dito. E, se de fato é uma ilusão, nunca acharemos um vestígio dele. Poderemos então compreender espontaneamente que aquilo que pensávamos estar obstruindo nossa consciência da unidade nunca existiu. E, esse insight já é um vislumbre da percepção sem limites.
Agora, o que realmente significa procurar o limite primário?
No início de tal experiência, devemos ser bem claros com relação ao que realmente significa essa "ausência do eu" ou "ausência do limite primário". Não significa uma perda de todas as sensibilidades; não é um estado de transe, caos, tumulto, ou comportamento descontrolado. Não se trata de uma explosão de minha mente e corpo, que a seguir fundem-se em Uma Grande Massa Informe de algum tipo em algum lugar. Não tem nada em comum com a regressão esquizofrênica, que não transcende de modo algum o limite do eu/não-eu, mas, ao contrário, embaralha-o e confunde-o.
Quando falamos de "perda do eu" queremos dizer isto: a sensação de ser um ente separado é uma sensação que foi mal-compreendida e mal-interpretada, e é a dispersão dessa interpretação errônea que nos interessa. Todos temos aquela sensação, aquele sentimento radical de ser um ente isolado separado de nosso fluxo de experiência e separado do mundo à nossa volta. Todos nós temos de um lado o sentimento do "eu" e de outro o sentimento do mundo externo. No entanto, se observarmos cuidadosamente a sensação de "eu aqui dentro" e a sensação de "mundo lá fora", verificaremos que essas duas sensações são de fato uma e a mesma. Em outras palavras, aquilo que agora sinto ser o mundo objetivo lá fora é a mesma coisa que sinto ser o eu subjetivo aqui dentro. A separação entre a pessoa que vivencia e o mundo das vivências não existe, e, portanto não pode ser encontrada.
De início, isso pode soar muito estranho, porque estamos acostumados a acreditar em limites. Parece óbvio que eu seja aquele que ouve os sons, aquele que tem sentimentos, aquele que vê cenas.
Com certeza, não existem aqui três entidades separadas.
Nosso problema é que temos três palavras - "observador", "observar" e "observado" - para designar uma única atividade, a experiência de ver. Poderíamos também descrever um único curso de água como "a corrente corre a correnteza". Isso é completamente redundante e introduz três fatores onde na verdade só existe um. No entanto, hipnotizados como estamos pela magia verbal de Adão, supomos a existência de uma entidade separada, o "observador" que, através de algum tipo de processo chamado "observar", adquire conhecimento de uma outra coisa ainda chamada o "observado". Então supomos naturalmente que somos apenas o observador, totalmente divorciados do observado. Nosso mundo, que nos foi dado apenas uma vez, é assim separado bem ao meio, com o "observador aqui dentro" confrontando, do outro lado de um abismo profundo, as coisas "observadas lá fora".
Mas vamos voltar ao comecinho do próprio processo de vivência e verificar se o que vivencia é de fato completamente distinto do vivenciado.
Não conseguimos ouvir o ouvinte porque ele não existe. O que nos ensinaram a chamar de "ouvinte" é, na verdade, apenas a própria experiência de ouvir, e não somos capazes de ouvir o ouvir. Na realidade, há apenas um fluxo de sons, e esse fluxo não se divide em sujeito e objeto. Não há limites aqui.
Se deixarmos a sensação de ser um "ouvinte" que habita dentro do crânio dissolver-se no próprio ato de ouvir, poderemos descobrir o nosso "eu" fundindo-se com a totalidade do mundo dos "sons de fora". Como explicou um mestre zen, referindo-se ao momento de sua iluminação, "quando ouvi o sino do templo tocando, de repente não havia mais sino nem eu, apenas o som".
O mesmo é verdadeiro com respeito ao processo da visão. Quando olhamos cuidadosamente o campo visual, ele parece quase suspenso no espaço, suspenso no nada. Contudo, consiste em um padrão infinitamente rico de luzes entrelaçadas, cores e nuanças, formando tudo isso uma montanha aqui, uma nuvem ali, um riacho acolá. Mas, entre todas as cenas visíveis, há ainda uma coisa que não podemos ver, não importa o quanto forçamos a vista. Não podemos ver o observador desse campo visual.
Quanto mais tentamos ver o observador, mais nos intriga a sua ausência. Durante anos, supusemos com toda a naturalidade que nós éramos o observador que via as cenas. Mas no momento que passamos a buscar o observador, não encontramos vestígio dele. De fato, insistindo em tentar ver o observador, tudo o que encontramos são coisas vistas. Isso apenas quer dizer que eu, o "observador", não vejo cenas - antes, eu, o "observador", sou idêntico a todas aquelas cenas agora presentes. O assim chamado observador é nada mais que tudo o que é visto. Ao olharmos uma árvore, não há uma experiência chamada "árvore" e outra experiência chamada "vendo a árvore". Há apenas a experiência única de ver-a-árvore. Não vemos esse ver, assim como não sentimos o olfato ou não degustamos o paladar.
Parece que, onde quer que procuremos um eu separado da experiência, ele desaparece dentro dela. Quando procuramos o experimentador, descobrimos apenas outra experiência - o sujeito e o objeto sempre demonstram ser uma só coisa. Essa é uma realidade bastante perturbadora e, por isso, você pode estar se sentindo muito confuso, sentado aí pensando nisso tudo. Mas levemos a coisa adiante só mais um pouco.
Em outras palavras, existirá um pensador que pensa o pensamento "estou confuso", ou existirá apenas o pensamento "estou confuso"?
Logo, quando o pensamento foi "estou confuso", você não estava ao mesmo tempo consciente do pensador que estava pensando "estou confuso". Havia apenas o pensamento presente - "estou confuso". Quando, então, você procurou o pensador desse pensamento, tudo o que encontrou foi outro pensamento, isto é, "estou pensando que estou confuso". Nunca encontrou um pensador separado do pensamento, o que quer dizer apenas que os dois são idênticos.
É precisamente por isso que os sábios aconselham-nos a não tentar destruir o "eu", mas apenas a procurá-lo, porque toda vez que o procuramos tudo o que encontramos é a sua prévia ausência. Mas, mesmo já tendo começado a compreender que não existe um ouvinte, nem um degustador, nem um observador, nem um pensador isolado, ainda é provável que encontremos dentro de nós um sentimento nuclear, irredutível, de que somos entes separados e isolados. Ainda há aquela sensação de ser separado do mundo lá fora. Há ainda aquele sentimento íntimo que de algum modo conheço como sendo meu "eu" interior. Mesmo se não posso ver, degustar ou ouvir a mim mesmo, definitivamente posso sentir a mim mesmo.
Bem, será que você pode encontrar, além do sentimento que agora chama de seu "eu", um sentidor que está fazendo o sentimento? Se parece que você consegue isso, será que você pode sentir o sentidor que está fazendo o sentimento? Novamente, essa sensação nuclear de ser um sentidor que tem sentimentos é ela própria apenas um outro sentimento. O "sentidor" não passa de um sentimento, assim como o pensador é apenas um pensamento e o degustador é apenas o gosto. Também nesse caso, não há um sentidor separado e diferente dos sentimentos - e nunca houve.
Assim, a conclusão inevitável começa a nos ocorrer: não existe um eu separado do mundo.
Agora, quando você começa a compreender que não existe uma brecha entre "você" e suas experiências, será que não começa a se tornar óbvio o fato de não haver brecha entre "você" e o mundo que é vivenciado?
Isso significa que seu estado de consciência neste momento, quer você se dê conta quer não, é consciência da unidade.
Por mais estranho que tudo isso possa parecer à primeira vista, a percepção interior de que não existe um eu separado sempre foi óbvia para os místicos e sábios de todas as épocas, e constitui um dos pontos centrais da filosofia perene. Embora existam inúmeras citações que poderiam ilustrar essa percepção, o decantado resumo dos ensinamentos de Buda exprime tudo:
Só o sofrimento existe, ninguém que sofra;