quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A Consciência sem Limites - Parte 2/2




Por mais estranho que tudo isso possa parecer à pri­meira vista, a percepção interior de que não existe um eu separado sempre foi óbvia para os místicos e sábios de todas as épocas, e constitui um dos pontos centrais da filosofia perene. Embora existam inúmeras citações que poderiam ilustrar essa percepção, o decantado resumo dos ensinamen­tos de Buda exprime tudo:

Só o sofrimento existe, ninguém que sofra;
O feito existe, mas não quem o faça;
O Nirvana existe, mas ninguém que o procure;
O Caminho existe, mas ninguém que o percorra.

Essa exata compreensão é universalmente considerada a libertação de todo sofrimento. Podemos afirmá-lo positi­vamente: quando compreendemos que nosso eu é o Todo, então não há nada fora de nós mesmos que possa causar so­frimento. Não há nada fora do universo contra o qual possa­mos chocar-nos. E podemos afirmá-lo negativamente: essa compreensão é uma libertação de todo sofrimento porque é, a priori, uma libertação frente à idéia de que há um eu que pode sofrer.

Como afirma Wei Wu Wei:

Por que você está infeliz?

Porque 99,9 por cento
De tudo o que você pensa e
De tudo o que você faz
É para você mesmo -
­E você não existe.

Apenas as partes sofrem, não o Todo. E essa conclu­são, quando afirmada "negativamente" pelos místicos, diz:

"Tornamo-nos livres do sofrimento quando percebemos que a parte é uma ilusão - não existe um eu separado, pronto para sofrer."

Quando afirmada "positivamente", diz:

"So­mos sempre o Todo, conhecendo apenas a liberdade, o des­prendimento e o esplendor. Perceber o Todo é escapar do destino reservado às partes, que é apenas o sofrimento, a dor e a morte."

O Budismo Hinayana enfatiza a primeira colo­cação, o Hinduísmo e o Cristianismo a segunda, e o Budis­mo Mahayana parece estabelecer um equilíbrio satisfatório entre ambas. Contudo, todas essas correntes são testemu­nhas da mesma percepção interior.

Quando compreendemos que não existe a parte, caímos no Todo. Quando percebemos que não existe eu algum (e isso ocorre neste exato momento), percebemos que nossa verdadeira identidade é sempre a Identidade Suprema.

À luz onipresente da consciência sem limites, aquilo que anterior­mente consideramos o eu isolado e interior revela-se como parte integrante do cosmos lá fora. E esse é o nosso verda­deiro eu. Para onde quer que olhemos, veremos nossos ros­tos originais em toda a parte.

"Voltei à sala [assim um mestre zen explicou a sua pri­meira visão do sem-limite] e estava prestes a voltar ao meu lugar quando toda a perspectiva mudou. Quando olhei ao meu redor, para cima e para baixo, o universo todo com seus muitos obje­tos sensíveis parecia completamente diferente; o que antes era repugnante, juntamente com a ignorância e as paixões, era agora visto apenas como o transbordar de minha natureza mais íntima, que, nela mesma, permanecia clara, verdadeira e trans­parente."

Tat Tvam Asi, dizem os hindus. "És Isso. O teu verdadeiro Eu é idêntico à Energia suprema da qual todas as coisas no universo são uma manifestação."

Esse eu verdadeiro recebeu, das diversas tradições mís­ticas e metafísicas, dezenas de nomes diferentes durante a história da humanidade. É conhecido como o Filho Divino, al-insan, al-Kamil, Adam-kadmon, ruarch adonai, Nous, Pneuma, Purusha, Tathagatagarbha, o Homem Universal, a Hóstia, o Brahman-Atman, ipseidade. E, de um ponto de vista leve­mente diferente, ele é sinônimo de Dharmadhatu, de Vazio, de Qüididade e de Divindade. E todas essas palavras são apenas símbolos do verdadeiro mundo do sem-limites.

Frequentemente nos referimos ao verdadeiro eu usan­do algum tipo de designação que sugere ser ele o núcleo "mais íntimo" do homem, predominantemente subjetivo, interior, pessoal, não-objetivo. Os místicos nos dizem, unânimes, que "o Reino dos Céus está dentro de nós", que devemos bus­car nas profundezas de nossa alma até descobrir, oculto em nossa porção mais íntima, o Verdadeiro Eu de toda a exis­tência. Como costumava dizer Swami Prabhavananda: "Quem, o que você pensa que é? Absoluta, básica e fundamentalmen­te, bem lá no fundo?"

Encontramos, com freqüência, referências ao eu verda­deiro como sendo algo semelhante à "Testemunha interior", o "Cognoscente e Observador Absoluto", a "Natureza mais Íntima" de uma pessoa, a "Subjetividade Absoluta", e assim por diante. Por isso, Shankara, mestre do Hinduísmo Vedan­ta, diria que "há uma Realidade auto-existente, que é a base de nossa consciência de ego. Essa Realidade é a Testemunha dos três estados de consciência [vigília, sonho e sono pro­fundo], e é diferente dos cinco sentidos. Essa Realidade é Cognoscente de todos os estados de consciência. É ciente da presença ou da ausência da mente. É Atman, o Ser Su­premo, o antigo".

Consideremos esta excelente citação do mestre zen Shibyama: Ela (a Realidade) é "Subjetividade Absoluta", que trans­cende tanto a subjetividade como a objetividade e livremente cria e usa de ambas. É "Subjetividade Fundamental", que nunca pode ser objetivada ou conceitualizada, e é completa em si pró­pria, contendo a plena significação da própria existência. Cha­má-la por esses nomes constitui já um erro, um passo em di­reção à objetivação e à conceituação. O Mestre Eisai obser­vou, nesse sentido, que "ela é sempre inominável".

A Subjetividade Absoluta que nunca pode ser objetivada ou conceituada é livre das limitações de espaço e tempo; não está sujeita à vida e à morte; vai além do sujeito e do obje­to e, apesar de viver num indivíduo, não se restringe a ele.

Mas dizer que o verdadeiro eu é o Verdadeiro Obser­vador, a Testemunha Interior ou a Subjetividade Absoluta dentro de cada um de nós parece contraditório à luz do que dissemos até agora sobre a consciência da unidade.

Isso porque, por um lado, vimos que o verdadeiro eu é uma percepção sem limites e sempre presente na qual o sujeito e o objeto, o observador e o observado, o vivenciador e o vivenciado formam um único continuum.

No entanto, por outro lado, acabamos de descrever o verdadeiro eu como sendo a Tes­temunha interior, o Cognoscente fundamental. Dissemos que é o Observador e não o observado, o interior e não o exterior.

O que fazer então dessa aparente contradição?

Em primeiro lugar, precisamos reconhecer as dificul­dades que o místico enfrenta ao tentar descrever a inefável experiência da consciência da unidade.

Ocupando posição de destaque, há o fato de que o verdadeiro eu é uma percepção sem limites, enquanto todas as nossas palavras e pensamen­tos são apenas limites. Entretanto, isso não é um defeito res­trito a uma língua em particular, mas é inerente a todas as línguas devido à sua própria estrutura. Uma língua possui utilidade apenas na medida em que pode construir limites. Uma língua sem limites não constitui língua alguma, e assim o místico que tenta falar lógica e formalmente sobre a cons­ciência da unidade está fadado a parecer paradoxal ou contra­ditório. O problema é que a estrutura de qualquer língua não consegue captar a natureza da consciência da unidade, assim como um garfo não consegue apanhar o oceano.

Logo, o místico deve contentar-se em apontar e indi­car um Caminho através do qual todos nós possamos viven­ciar por nós mesmos a consciência da unidade. Nesse sentido, o caminho místico é puramente experimental. O místico pede que não acreditemos em algo apenas com base na fé cega, que não aceitemos autoridade alguma a não ser a auto­ridade de nossa compreensão e experiência. Ele nos pede ape­nas que tentemos empreender algumas experiências de per­cepção, que observemos atentamente nosso atual estado de existência e que tentemos ver nosso eu e nosso mundo da forma mais clara possível.

"Não pense, apenas olhe!", excla­mou Wittgenstein.

Mas, olhar para onde?

É essa a questão a que os mís­ticos universalmente respondem dizendo: "Olhe para den­tro. Bem lá no fundo, pois o verdadeiro eu está dentro de nós".

O místico não está descrevendo o verdadeiro eu co­mo algo que existe dentro de nós - ele está apontando pa­ra dentro de nós.

Na verdade, está dizendo para olharmos para dentro, não porque a resposta final esteja de fato dentro de nós e não fora, mas porque, quando olhamos para dentro cuidadosa e consistentemente, cedo ou tarde acabaremos encontrando o exterior.

Em outras palavras, percebemos que o interior e o exterior, o sujeito e o objeto, o observador e o observado são a mesma coisa, e assim ingressamos esponta­neamente em nosso estado natural.

Portanto, o místico co­meça a falar do verdadeiro eu de um modo que parece con­traditório em relação a tudo o que dissemos anteriormente. Mas se o seguirmos até o fim, a conclusão - como veremos ­será idêntica.

Consideremos de início o que pode significar algo co­mo "Subjetividade Absoluta" ou "Testemunha Interior", pelo menos segundo o modo pelo qual o místico utiliza esses termos. A Subjetividade Absoluta seria aquilo que nunca, em tempo algum, em circunstância alguma, pode ser um obje­to particular que pode ser visto, ouvido, conhecido ou per­cebido. Assim como o Observador Absoluto, ela nunca pode ser vista. Assim como o Cognoscente absoluto, ela nunca po­de ser conhecida.

Lao Tzé fala sobre isso da seguinte forma:

Porque o olho contempla mas não consegue vislumbrá-lo,
Ele é chamado evasivo.
Porque o ouvido escuta mas não consegue ouvi-lo,
Ele é chamado o rarefeito.
Porque a mão sente mas não consegue encontrá-lo,
Ele é chamado o infinitesimal.

A fim de entrar em contato com esse eu verdadeiro ou Subjetividade Absoluta, a maioria dos místicos, portanto pro­cede de modo mais ou menos semelhante ao descrito por Sri Ramana Maharshi: "O corpo grosseiro, composto dos sete humores, não sou eu; os cinco órgãos do sentido que captam seus respectivos objetos, não sou eu; até a mente que pensa, não sou eu."

Mas então o que poderia ser esse eu verdadeiro?

Como Ramana demonstrou, ele não pode ser meu corpo, porque posso senti-lo e conhecê-lo, e aquilo que pode ser conheci­do não é o Cognoscente absoluto. Ele não pode ser meus de­sejos, esperanças, medos e emoções, pois até certo ponto posso observá-los e senti-los, e aquilo que pode ser observado não é o Observador absoluto. Ele não pode ser minha mente, minha personalidade, meus pensamentos, pois tudo isso po­de ser testemunhado, e aquilo que pode ser testemunhado não é a Testemunha absoluta.

Ao procurar persistentemente o eu verdadeiro dentro de nós, na verdade estamos começando a perceber que ele não pode mesmo ser encontrado dentro de nós. Costumávamos pensar sobre nós mesmos como o "pequeno sujeito" aqui dentro que observava todos aqueles objetos lá fora. Mas o místico nos mostra claramente que esse "pequeno sujeito" na verdade pode ser considerado um objeto! Não é um ver­dadeiro sujeito, não é o meu eu verdadeiro.

No entanto, aqui se encontra, de acordo com o místico, o nosso principal problema. A maioria de nós supõe que pode sentir-se, conhecer-se ou perceber-se, ou pelo me­nos ter de certa forma consciência de nós mesmos. Te­mos essa sensação até mesmo agora. No entanto, responde o místico, o fato de que posso ver, ou conhecer, ou sentir meu "eu" neste momento, leva-me a concluir que esse "eu" não pode de modo algum ser meu verdadeiro eu. É um falso eu, um pseudo-eu, uma ilusão, um engodo. Inadvertidamen­te identificamo-nos com um complexo de objetos, todos conhecidos ou passíveis de ser conhecidos. Esse complexo de objetos cognoscíveis não pode ser o verdadeiro Cognos­cente ou verdadeiro Eu.

Nós nos identificamos com nosso corpo, mente e personalidade, imaginando que esses obje­tos constituem nosso verdadeiro "eu", e passamos a vida in­teira tentando defender, proteger e prolongar aquilo que é apenas uma ilusão.

Somos vítimas de um caso epidêmico de identidade tro­cada, e nossa Identidade Suprema, silenciosamente, espera ser descoberta. O místico quer apenas nos acordar para aquilo que na verdade e para sempre somos, sob o manto de nosso pseu­do-eu, e anterior a ele. Dessa maneira, o místico nos pede que deixemos de nos identificar com esse falso eu e percebamos que tudo aquilo que podemos conhecer, pensar ou sentir a respeito de nós mesmos não pode ser o nosso Eu verdadeiro.

Minha mente, meu corpo, meus pensamentos, meus desejos - nada disso constitui o meu verdadeiro Eu, nem tampouco as árvores, as estrelas, as nuvens e as montanhas, pois posso testemunhar todos esses objetos com igual acerto. Prosseguindo desse modo, torno-me transparente para o meu Eu verdadeiro, e percebo que, de algum modo, aquilo que sou vai muito além desse organismo isolado, limitado pela pele. Quanto mais penetro dentro de mim mesmo, mais me deixo para trás.

À medida que essa investigação avança, ocorre aquilo que o Lankavatara Sutra chama de "uma reviravolta na base mais profunda da consciência".

Quanto mais procuramos o Observador absoluto, mais percebemos que não pode­mos encontrá-lo na forma de um objeto.

E a razão por que não conseguimos encontrá-lo na forma de um determina­do objeto é porque ele é todo objeto!

Não conseguimos sen­ti-lo porque ele é tudo o que sentimos.

Não conseguimos vivenciá-lo porque ele é tudo o que é vivenciado.

Nada do que podemos observar é o Observador - porque Ele é tudo o que vemos.

A medida que penetramos dentro de nós mes­mos para procurar nosso verdadeiro eu, encontramos ape­nas o mundo. ­

Mas algo estranho ocorreu agora, pois percebemos que o verdadeiro eu dentro de nós é na verdade o mundo exte­rior, e vice-versa. O sujeito e o objeto, o lado de dentro e o lado de fora são e sempre serão a mesma coisa. Não exis­te limite primário. O mundo é nosso corpo, o lugar de onde observo e aquilo que observo.

Já que o verdadeiro eu não está nem dentro nem fora, já que o sujeito e o objeto na verdade não são coisas distin­tas, o místico pode falar da realidade de muitas maneiras diferentes, contraditórias apenas na aparência. Pode dizer que em toda a realidade não existe objeto algum. Pode afir­mar que a realidade não contém sujeito algum. Pode negar a existência tanto do sujeito como do objeto. Pode falar de uma Subjetividade Absoluta que transcende, mas que tam­bém inclui o sujeito relativo e o objeto relativo. Isso tudo constitui simplesmente modos diferentes de dizer que o mun­do interior e o mundo exterior são apenas dois nomes dife­rentes para o mesmo estado único e sempre presente de cons­ciência sem limites.

Talvez agora se torne óbvio que, apesar das formula­ções teóricas complexas que com frequência cercam a filo­sofia perene, a essência da mensagem mística é clara, sim­ples e objetiva. Fazendo uma recapitulação: a realidade é uma união de opostos, ou "não-dual". Como são os limites e os mapas simbólicos que parecem fa­zer dos opostos inimigos conflitantes, dizer que a realidade é não-dual é dizer que a realidade é sem limites.

O mundo real não é uma coleção de coisas separadas e independentes, divorciadas en­tre si no tempo e no espaço.

Cada coisa e acontecimento no cosmos interdepende de e inter-relaciona-se com todas as ou­tras coisas e acontecimentos no cosmos.

E, mais uma vez, já que são nossos limites e mapas simbólicos que nos dão a ver a ilusão de entidades independentes, dizer que o mundo real não contém coisas separadas é dizer que o mundo real é sem limites.

A descoberta do mundo real sem limites é a consciência da unidade.

Não é que na consciên­cia da unidade estejamos olhando para o verdadeiro território sem limites. Não; a consciência da unidade é o verdadeiro ter­ritório sem limites. A realidade, segundo dizem todos, é cons­ciência sem limites - isso, apenas isso, é o nosso Eu Verda­deiro.

Para citar o fundador da mecânica quântica, Erwin Schroedinger, "podemos atirar-nos por inteiro sobre o solo, estirados sobre a Mãe Terra, com certeza absoluta que nós e ela somos a mesma coisa. Somos tão firmes, tão estabele­cidos, tão invulneráveis quanto ela, ou, ainda, mil vezes mais firmes e invulneráveis. Ela certamente nos engolirá amanhã, assim como nos trará de volta novamente para novas lutas e novos sofrimentos. E isso não ocorrerá 'num certo dia': agora, hoje, todos os dias, ela nos traz de volta, não uma, mas mi­lhares de vezes, e, do mesmo modo, ela nos engole milhares de vezes todos os dias. Isso porque eternamente e sempre há apenas o agora, um único agora; o presente é a única coisa que não tem fim".

Por Adalberto Tripicchio

Fonte:
rede psi