segunda-feira, 7 de novembro de 2011
A Senhora do Mar
“...Sou a estrela que surge do mar, o mar do crepúsculo,
Trago aos homens os sonhos que regem os seus destinos
Trago as marés do sonho às almas dos homens
As marés que fluem e refluem e tornam a fluir,
As silenciosas marés íntimas que governam os homens;
Elas são o meu segredo e pertencem a mim...”
A sacerdotisa do mar - Dion Fortune
O mar engloba as misteriosas origens da vida, que, após inúmeras transmutações e percursos, para ele volta no final do seu ciclo. Desde o instante em que nascemos do líquido salgado do ventre materno, até quando os nossos pulmões se preenchem com os fluidos corporais no momento da morte, somos um receptáculo para o caminho da água, o nosso mais precioso e sagrado presente. Desde a antiguidade o mar simbolizou vida, magia e mistério, sendo o berço da própria vida, pois ele existiu desde o começo dos tempos, antes que a terra fosse formada. Em muitas culturas a primeira imagem do mundo era de um oceano, ilimitado, indefinido e eterno, pleno de energias que podiam criar as variadas formas da vida. O primeiro estágio do mundo era descrito como uma massa aquática inerte, da qual emergiram a Terra, o céu e todos os seres. O mar primordial, informe, escuro e silencioso representava um modelo para o caos, que existia antes da criação e uma metáfora para o líquido amniótico que sustentava a vida.
Os povos antigos respeitavam o mar como uma força criadora e nutridora, mas também temiam o seu poder destruidor. O mar detinha segredos e mistérios, suas profundezas ocultavam seres sobrenaturais - benéficos ou não - e divindades que moravam em palácios repletos de riquezas e tesouros. As lendas sobre os tesouros enterrados no fundo do mar na realidade são as reminiscências das antigas lendas sobre as divindades que governavam a fertilidade representada pela riqueza da fauna e flora aquáticas.
A Deusa se manifesta em todos os elementos, Ela é a Mãe Terra, o Sopro da Inspiração, a Senhora das Chamas, mas o elemento em que A encontramos mais facilmente é a água, pois assim Ela está presente em todos nós. A vida começou no mar e o nosso corpo guarda esta lembrança no líquido amniótico, nas lágrimas, no sangue, nas células e nos fluidos corporais. Nossos ventres e nossas emoções respondem ao chamado das marés e da Lua e retornaremos ao ventre primordial seguindo o eterno fluir do tempo, do seu inicio até o fim. A Grande Deusa é a quintessência fluida formada das águas, as celestes e as subterrâneas (onde pertencem os córregos, riachos, rios, cachoeiras, fontes, lagos, mares), em cujo ventre a vida se formou como se fosse um peixe.
A Mãe do Mar aparece de várias formas, às vezes Ela é escura e profunda como o vazio primordial onde a vida apareceu primeiramente. Outras vezes Ela brinca e ri com as ondas na areia, brilha com a luz do Sol ou da Lua ou se enfurece e rodopia com o rugido da tempestade. A sua presença foi louvada e honrada em inúmeras canções e poemas, apareceu em mitos, histórias, contos e lendas em vários lugares do mundo. Dion Fortune - escritora, ocultista e sacerdotisa da Deusa - vê o mar como “origem de todos os seres, a vida nela aparecendo como uma onda silenciosa que segue seu rumo e volta para recolhê-la no final.”
Ao longo dos milênios a Mãe do Mar recebeu muitos nomes e representações, Ela era a Grande Deusa cujas marés seguiam as fases da Lua e que foi vista como Tiamat, o dragão das profundezas, Atargatis e Derceto, deusas sírias com caudas de peixe e regentes da fertilidade, equivalentes das deusas venusianas Astarte e Ishtar, Ísis e Maria adoradas como Stella Maris, a Estrela do Mar ou Iemanjá, a nossa Mãe das águas.
A Mãe do Mar como “Senhora dos peixes” tem uma origem muito antiga, foram encontradas esculturas de uma deusa–peixe datadas de 6000 a.C. no sitio arqueológico de Lepenski Vir na antiga Iugoslávia, indicando um culto exclusivo de moças, que nos períodos de seca ou enchente se ofertavam à Deusa - deixando-se levar pelos redemoinhos do rio Danúbio - para implorar Sua benevolência.
Na Grécia existiam antigos cultos da Senhora da navegação e da Mãe das criaturas marinhas que tinham vários altares. A Mãe do mar é um emblema universal do nascimento e renascimento, reproduzido nas religiões patriarcais de maneira oculta e simbólica pelo batismo e a pia batismal. O peixe é totem da Deusa Mãe e aparece como sua montaria ou emblema, estilizado como yoni, símbolo do órgão sexual feminino, uma imagem central do ventre nos mitos de fertilidade e renascimento, adotado depois como símbolo cristão (por ter sido considerado Cristo o pescador das almas).
No mito babilônio da criação o primeiro ser foi Tiamat, Mãe de todos os deuses e detentora das tábuas dos destinos, que se apresentava como uma grande serpente – ou dragão- e regia as águas salgadas dos mares. Fecundada pelas águas doces pertencendo ao seu amado Apsu, do seu imenso ventre nasceram todas as formas de vida, perfeitas e monstruosas, até que no final nasceram os deuses. Após um tempo, os filhos divinos se revoltaram contra seus pais, mataram Apsu e o primogênito Marduk despedaçou Tiamat, criando das metades do seu corpo o céu, a Terra e todas as águas.
Mari significava mar e ventre na tradição suméria, Afrodite Mari era conhecida como a Mãe de todos, nascida do mar e Criadora da essência da água. Como Afrodite, Pandemos é representada cavalgando um golfinho e foi reverenciada na Síria como Atargatis.
A Mãe primordial grega era Rhea, que separou os elementos sólidos e líquidos do abismo primordial e criou assim a Terra e o mar. Tetis, descrita como a Grande Rainha grega do oceano, filha de Gaia e Urano, chamada de Mare Nostrum pelos romanos, era mãe de 6000 filhos, suas 3000 filhas sendo as Ocêanides. Depois da revolta e vitória dos deuses olímpicos sobre as divindades pré-helênicas, a regência do mar foi conferida a Posêidon. Para poder governar ele teve que casar-se com a regente ancestral do mar, a deusa Anfitrite, que continuou governando as profundezas do mar, enquanto Posêidon dirigia sua carruagem na superfície das ondas, acompanhado pelas ninfas marinhas, as Nereidas. Na mitologia celta a deusa Fand também regia as profundezas do mar, enquanto seu marido Manannan Mac Lyr navegava na superfície. O casal de gigantes nórdicos Ran e Aegir era temido pelos navegantes, que lhes pediam proteção fazendo oferendas e orações, para evitar que as tempestades levassem seus barcos para as moradas divinas do fundo do mar. Suas filhas, as Donzelas das Ondas em número de nove eram as mães do deus Heimdall, o guardião de Bifrost, a ponte do arco-íris da mitologia nórdica. Temu era o nome egípcio do vazio uterino cósmico e primordial, do qual foram criadas as divindades e os mundos.
Na China existe a lenda de uma moça - Lin Mo Ning - cujas qualidades extraordinárias de devoção a Kwan Yin, a sua bondade e as curas milagrosas por ela realizadas lhe permitiram a iluminação e ascensão. Aos 28 anos ela foi elevada para o céu em uma nuvem dourada e se transformou em um arco-íris, equivalente chinês do dragão e símbolo de cura e boa sorte. Ela foi deificada e tornou-se Mat-su ou Mazu, a deusa do mar reverenciada até hoje em inúmeros templos a Ela dedicados, como protetora dos barcos nas tempestades e das pessoas nas inundações.
O mito de Sedna, deusa do mar dos inuits - Senhora dos animais marinhos, Doadora da fertilidade - retrata a trajetória mítica de uma jovem mortal passando por decepções afetivas e filiais. Ao ser sacrificada pelo seu pai (para ele se salvar) representa o caos seguido pela abundância, pois ao mergulhar nas profundezas do mar, a jovem Sedna se transformou na mãe arquetípica fornecedora do alimento para o seu povo.
Na África a regência do mar é dividida entre Olokun (que aparece ora como orixá masculino, ora como feminino) e Yemayá ou Iemanjá, também honrada como Iyá Mo Ayé, a Mãe dos mundos, Criadora do céu e do mar. Originariamente Iemanjá era divindade das águas doces, regente do rio Ogum, associada à fertilidade das mulheres, maternidade, criação do mundo e continuidade da vida. Por ser regente do plantio e colheita (dos inhames) e da pesca, seu nome ficou Yeyé Omo Ejá, a “Mãe dos filhos peixes”. Nas representações míticas e nas várias imagens seus poderes - gerador e nutridor - são revelados pelos seios fartos e as ancas largas. Nos mitos Ela aparece como uma Grande Mãe, protetora das cabeças dos mortais, generosa nas suas dádivas e representando os diversos papéis da mulher: mãe, filha, esposa, irmã.
Na transposição para o Brasil foi transferido para Iemanjá a regência do mar, que na África pertencia a seu pai ou mãe, Olokun, pois segundo conta uma lenda “ as lágrimas derramadas pelos escravos na travessia do oceano salgaram as águas doces de Iemanjá”. Mas mesmo considerada orixá do mar, Iemanjá continua sendo saudada no Candomblé como Odo Iyá, Mãe do rio, da qual sua filha Oxum herdou o domínio das águas doces. Outro aspecto de Iemanjá no Brasil é relacionado à sua denominação deRainha do mar, que a associa à figura da sereia, de origem africana (as três sereias de Angola: do mar, do rio e da lagoa) e europeia (dos mitos gregos, celtas, e nórdicos). Como divindade marinha Iemanjá tem um papel duplo: de mãe que controla as marés e propicia a pesca, e também de sereia sedutora e sensual que atrai o pescador ou o navegante para as profundezas do mar.
Concebida popularmente como a Mãe propiciadora de saúde, prosperidade e boa sorte, além de garantir sanidade, equilíbrio e clareza mental como “dona das cabeças”, Iemanjá aos poucos foi perdendo seus atributos originais de divindade guerreira e mulher sensual dos mitos africanos e foi sendo ampliado o seu papel de deusa mãe. À medida do fortalecimento do seu papel materno, Iemanjá foi sendo aproximada da figura de Nossa Senhora com quem Ela é sincretizada em Cuba e Brasil e suas festas comemoradas de acordo com o calendário católico (como Nossa Senhora das Candeias na Bahia, do Carmo no Recife, dos Navegantes no Rio Grande do Sul, da Conceição em São Paulo). Aos poucos Ela foi assumindo novos aspectos iconográficos trocando seus traços africanos por características europeias e sendo retratada como uma mulher branca, com longos cabelos negros e lisos, de vestido azul com cauda, caminhando sobre as ondas do mar, espalhando rosas brancas e usando uma tiara em forma de estrela, aparecendo assim como a própria Stella Maris. Na Umbanda foi atribuída à Iemanjá a chefia de falanges de “caboclos e caboclas do mar”; associada a diferentes Mães d’Água indígenas foi sendo chamada de Iara, a Mãe d’Água ou Senhora Janaina. Seus atributos de sedução e sensualidade foram transferidos para uma entidade complexa e controvertida - Pomba Gira - e realçados apenas os atributos maternos e protetores. Na Santeria cubana Iemanjá é sincretizada com La Virgem dela Regla e retratada como uma Madona Negra, protetora dos navegantes.
A crescente participação da população nas Suas festas nas praias brasileiras - principalmente nos dias 31 de janeiro e dois de fevereiro - tornou Iemanjá o orixá mais popular e reverenciado no Brasil, não somente pelos adeptos de Candomblé e Umbanda, mas pela sociedade como um todo.
Transcendendo as tradições afro-caribenhas que deram origem aos cultos modernos, Iemanjá é cultuada atualmente pelos círculos sagrados femininos, os adeptos dos grupos da tradição Wicca e neo-pagãos, nos Estados Unidos e no Brasil, como uma Deusa Mãe. Apesar das suas modificações ao longo do tempo e espaço, os atributos de amor e nutrição que Iemanjá traz para seus adeptos são prova do seu poder milenar como protetora das crianças, mulheres e famílias. Enquanto Olokum detém os poderes de destruição subindo enfurecida das profundezas do mar, Iemanjá rege em contrapartida a superfície e a calmaria. A suavidade da filha pode acalmar a fúria da mãe, pois ambas representam os ciclos de mudança: dar a vida, proteger, abrigar, nutrir, transformar ou dar-lhe o fim. Com a ajuda de Iemanjá podemos superar as marés e mudanças na nossa vida e buscar a tranqüilidade mesmo no meio da tempestade.
Os mitos da Mãe do Mar refletem o mundo natural ao nosso redor e principalmente o poder do oceano, que inspira respeito e medo pela sua força destruidora como vemos nostsunamis, tufões e maremotos. A mutabilidade do mar nos ensina como buscar o equilíbrio e a conciliação dos opostos na nossa própria natureza, alternando a ação e a quietude, a aceitação da dor e da alegria, as fases de tumulto ou de estagnação.
Ao longo dos séculos os seres humanos lidaram com os desafios do mar e por isso o reverenciavam por saberem que estavam à mercê das suas forças. Mas agora, pela primeira vez na história da humanidade, os homens têm o poder de envenenar as suas águas, de matar sem discernimento ou necessidade os seres vivos que nele habitam. Para continuarmos a receber as bênçãos e dádivas da Mãe do Mar precisamos nos envolver em alguma atividade ecológica para impedir a destruição dos recifes de corais, a extinção das espécies marinhas, a poluição pelos resíduos industriais e domésticos. Precisamos honrar a Mãe do Mar e lhe pedir compaixão e generosidade para o nosso renascimento, nos elevando da cobiça, violência, falta de respeito e compaixão com os outros seres para a harmonia, o convívio pacifico e a serenidade, exterior e interior.
“Devemos nos lembrar de que o nosso espírito nos leva de volta para a água, pois ele flui no pulsar do rio e retorna para o mar onde a vida começou. Nossas almas são pesadas com tanta dor e decepção e difíceis de carregar, mas nós pediremos ao rio levar nosso peso para o mar e oraremos ao mar lavar e renovar os nossos espíritos. Nossas lágrimas de dor e tristeza lavam nossas almas e nos libertam de tudo o que nos atordoa, removendo as marcas de sofrimento. Levantemo-nos radiantes e sigamos em paz, pois o nosso espírito foi lavado pelas ondas do mar e por elas renovado”.
Adaptado do “Book of Daily Prayer for Today’s Changeable World”
Mirella Faur
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