terça-feira, 29 de novembro de 2011
Hagia Sophia: A Sabedoria Sagrada
"...Há milênios fui pelo Senhor criada, no começo de tudo, como Seu primeiro ato criador, antes mesmo da Terra, quando não existia o abismo profundo, nem fontes de água, montanhas, colinas ou campos. Quando Ele estabeleceu os céus Eu estava lá, também quando traçou um círculo na superfície do abismo e firmou a abóbada celeste, quando delimitou as margens dos mares e a fundação da Terra. Eu estava sempre ao seu lado como uma Mestra criadora e parceira, sendo o seu deleite e me alegrando ao lado dele no mundo habitado..." (Livro dos provérbios, 8:22-31)
Inúmeros textos (“livros da sabedoria”) da bíblia hebraica descrevem Hokhmah, a Sabedoria feminina, de forma complexa e desafiadora, dando origem a inúmeras interpretações e contradizendo o conhecido monoteísmo judaico. Ela – assim como Yahweh - era invisível e transcendente, sua origem retrocedendo ao “inicio dos tempos antes da Terra existir”. Mas também era imanente, pois além de consorte de Deus e construtora do universo, ela fazia parte da criação e caminhava no meio da humanidade. A controvérsia gira em torno da sua aparição, vista ora como primeiro ato de criação de Deus, ora como entidade pré-existente, herdeira de Zoé, arquétipo da própria existência. Filósofos modernos argumentam que a Sabedoria representa a ordem oculta do mundo, sendo uma lei cósmica, um pré-requisito da criação e portanto percebida e reconhecida por Deus, mas sem ser por ele criada.Como princípio espiritual e força transcendental, Hokhmah é a mediadora entre Deus e o mundo e proporciona à humanidade a sua redenção. O seu surgimento (do abismo profundo, sinônimo do ventre primordial, de uma Deusa mãe) confirma a sua origem e natureza feminina e co-participante no processo de criação. A natureza de Hokhmah é a própria Lei da Vida, mescla de amor e conhecimento que traz à humanidade tanto a alegria, quanto o sofrimento. Ela é o espírito invisível que guia a vida dos humanos e os convida através das mulheres a participarem da sua hospitalidade e buscarem seus conselhos, como é descrito nestes versos:
A sabedoria construiu Sua casa sobre sete pilares, preparou uma farta mesa e enviou Suas mulheres para convidar aqueles que queriam ter a visão para compartilhar do seu pão e do seu vinho (Provérbios 9:1-6).
....saibam que não dedico meus esforços apenas para mim, mas para todos aqueles que buscam sabedoria. Meus pensamentos são mais amplos que o mar e meus conselhos mais profundos que o grande vazio... (Livro de Ben Sirach 24:3-6)
Os livros mais antigos da bíblia que falam sobre a sabedoria baseados em compilações de textos arcaicos de Suméria, Babilônia e Egito, preservam as qualidades de sabedoria de deusas como Nammu, Inanna, Cibele, Isis, as Rainhas do céu e da Terra que antecederam por dois milênios a cultura hebraica e grega. Muitas destas imagens e atributos constituíram a base dos textos do Velho Testamento, em que a sabedoria aparece como uma árvore com fruto, um manto que envolve e protege, uma figura velada e misteriosa, um símbolo mítico da divindade feminina.
A sua mudança da representação metafórica da sabedoria no judaísmo, personalizada nos textos posteriores (hebraicos, gnósticos, cabalísticos e helenísticos) para Espírito Santo e Logos foi embasada em distorções de palavras e gêneros na língua hebraica e grega. DeHokhmah - palavra feminina em hebraico- chegou-se ao termo grego neutro Hagion Pneuma e ao masculino Logos, depois ao conceito latino e masculino do Spiritus Sanctus, apesar da sua imagem ser a pomba, totem da Deusa Mãe. A transição da sabedoria como atributo da Mãe Deusa até sua transformação no Espírito Santo dos evangelhos gnósticos e cristãos aparece nos Livros dos provérbios (400 a.C), Ben Sirach (200 a.C.), O canto de Salomão, o Livro de Enoch (100 a.C.). No livro de Ben Sirach “a sabedoria é criada da boca do Altíssimo, que fez sozinho a abóbada celeste, os mares e a terra, e que lhe determinou morar somente em Israel” privando assim o resto da humanidade da qualidade universal da sabedoria. A real fonte da compreensão intelectual, do esforço e da realização foi transformada no Torah, que à sua vez passou a ser declarado o receptáculo da própria sabedoria identificada pelo Logos, a palavra. A jornada da sabedoria da Terra para o céu foi descrita desta forma:
A sabedoria tentou fazer sua morada no meio dos filhos dos homens, mas não encontrou lugar para ficar e retornou à sua origem, entre os anjos (Livro de Enoch, 42:1).
Como punição pela perda, os pecadores seriam punidos, as pessoas comuns não mais podiam reverenciar as leis da natureza, que iriam ser interpretadas por mestres, padres e homens de lei, os únicos autorizados para compreender os escritos sagrados. O Torah foi visto como escrito pelo próprio Deus e a natureza feminina e universal da sabedoria foi abolida, considerada um compromisso com a lei de punição e recompensa.
O verdadeiro significado da sabedoria não se perdeu mas ressurgiu de outra forma, comoSophia, no Livro de Sabedoria de Salomão, escrito em grego no primeiro século a.C. em Alexandria, por autores judeus não tradicionais com orientação helenística e com comentários de mulheres de um grupo místico chamado Therapeutae. Nele a descrição de Sophia (“a qualidade elevada da alma”) é muito semelhante a Hokhmah bíblica, mas com poderes expandidos, como podemos ver nos versos a seguir:
Ele deu-me o conhecimento de tudo que existe, para compreender a ordem do mundo e a ação dos elementos, o início, meio e final do tempo, a mudança das estações, os ciclos dos anos e a posição das estrelas, a natureza dos animais, as espécies das plantas, as virtudes das raízes, as forças dos espíritos e o raciocínio dos homens (Livro de Sabedoria do Salomão, 7:17-20).
Sophia se revela uma divindade feminina, atributo de sabedoria da natureza acessível às mulheres, que ficou degradada ao se tornar possessão humana e apenas um veiculo para a grandeza masculina e por isso aos poucos desaparecendo. Interpretações posteriores consideram a Sabedoria o Espírito Divino, um atributo radiante e reflexo luminoso de Deus ou o próprio espírito criador, a centelha divina presente nos humanos e em toda a natureza.
Ela pode ser vista como criadora por ter feito o mundo e conhecer suas leis, que compartilha com os seres humanos. A atividade mental, a capacidade criativa portanto pertencem também às mulheres, permitindo-lhes assim confiar no seu intelecto e raciocínio lógico.
Deus é considerado a fonte do conhecimento, mas cuja origem é a própria sabedoria, contida nas leis naturais e não confinada em um livro bíblico.
A sabedoria é definida como: inteligente, sagrada, única, diversa na manifestação, sutil, móvel, clara, pura, singela, bondosa, invulnerável, beneficente, irresistível, perspicaz, humana, firme, segura, livre da ansiedade, poderosa, vê tudo e permeia os espíritos inteligentes, puros e bondosos.
Porém, depois dos capítulos iniciais do livro em que se enumeram as vinte e uma qualidades de Sophia, ela passa a ser vista como uma mulher com que os homens desejam se casar e considerá-la uma maneira para aumentar seu próprio poder.
A sabedoria tornou-se assim um objeto a ser possuído pelos sábios, garantindo-lhe poder e vitória sobre os inimigos, sucesso nos negócios e felicidade doméstica, perdendo seus aspectos universais e sagrados. Especula-se que os capítulos foram escritos por pessoas em épocas diferentes, mas o mistério não foi resolvido.
Reflexos da Hockhma hebraica são encontrados nos hinos órficos, 80 poemas que honravam várias divindades gregas, atribuídos a Orfeu e usados em rituais entre 300 a.C. e 500 d.C. Independentemente dos seus nomes, as deusas honradas eram manifestações da Grande Mãe, o principio divino feminino universal, existente e manifestado nas leis da natureza, conhecido como Hockhma ou Sofia, a Sabedoria, com os mesmos atributos e qualidades citados nos livros hebraicos. Todavia, a mudança histórica do sagrado feminino para o monoteísmo patriarcal levou aos poucos ao esquecimento e diminuição de status das deusas do Oriente próximo e da Grécia, antes cultuadas e honradas. Expandindo a noção da divindade acima da compreensão humana a sabedoria perdeu seu aspecto telúrico, a mulher foi dissociada da imagem da Deusa e passou a ser menosprezada como manifestação do pecado e do mal. Espírito e natureza tornaram-se polaridades opostas e simbolizadas pela Sophia celeste e a Eva terrestre.
Com o advento do cristianismo o arquétipo feminino foi totalmente eliminado da ligação com o divino, a matéria decretada inferior ao espírito, o atributo de sabedoria associado com Jesus e depois transformado na terceira figura da trindade masculina, o Espírito Santo.
A conexão entre Sophia, a Mãe Divina e seu filho Cristo é perdida, Jesus nasce como filho de Deus Pai e de Maria (simples mortal) e assume as qualidades de Sophia, a sabedoria passando a ser atributo masculino.
Hockhma hebraica ou Sophia gnóstica são totalmente negadas como aspectos divinos femininos e jamais é feita alguma menção à sua existência prévia nas escrituras cristãs. A sabedoria é personificada por Jesus como o mediador entre o plano divino e material e cuja missão era salvar as almas e não mais orientá-las para se tornarem “moradas da sabedoria”. Jesus, apesar da sua associação pelo apóstolo posterior pelo apóstolo Paulo com os atributos e títulos da sabedoria, nunca afirmou ser ele a Sabedoria divina. O enfoque passou a ser a salvação, conseguida ao pertencer ao cristianismo, que privou assim a alma da união mística do criador com a criação, separando os processos físicos, mentais e espirituais e levando ao distanciamento da natureza e à inferiorização da mulher.
As seitas gnósticas que preservaram a associação mítica entre a Deusa e a imagem de Sophia como personificação da sabedoria divina feminina, foram proibidas no ano 326 pelo imperador Constantino. Sophia ou Sapientia (que emerge do mar e de cujos seios jorram o vinho vermelho e branco da iluminação pela união das polaridades) reaparece apenas na Idade Média nas obras de vários filósofos, ordens iniciáticas (Templários, Cátaros, Graal) alquimistas e trovadores.
A natureza lunar de Sapientia é representada nas suas duas faces, uma clara, outra escura e que está presente nas figuras das duas Marias, a Mãe (doadora da luz) e a consorte (Madalena que detém o conhecimento da sabedoria oculta).
A igreja ortodoxa preservou por um bom tempo o titulo grego de Sophia como sendo a sabedoria divina (Hagia Sophia) dedicando-lhe inúmeras igrejas, inclusive a basílica bizantina. Santa Sofia foi uma adaptação da Grande Mãe gnóstica simbolizada pela pomba de Afrodite e depois transformada no Espírito Santo.
Por ser a natureza desvalorizada na comparação com a salvação e as mulheres sendo a ela associados, surgiu a doutrina do controle e autoridade masculina, a dominação do mundo material e exploração das mulheres. Esta teoria foi reforçada pela culpa atribuída à mulher pelo pecado original e a origem dos males no mundo. A demonização das mulheres e da natureza enfatizou a supremacia masculina, divina e humana, premissa que incentivou as horrendas e cruéis perseguições da Inquisição na Idade Média.
O que importa para nós mulheres é lembrar que Hagia Sophia é uma energia divina feminina, mediadora entre o céu e a Terra, que detém e compartilha o conhecimento universal do Logos e da sabedoria ancestral. Ela existe em todas nós mulheres e agora chegou a hora de prestar atenção à sua voz e agir de acordo com as leis da natureza, onde é sua morada, buscando inspiração, conhecimento intelectual e sintonia espiritual. Quanto mais conscientes agirmos na nossa vida, mais poderoso e recompensador será o conhecimento que encontraremos, fruto da árvore da sabedoria e verdade. Conscientes do nosso poder e da habilidade de criar, poderemos assumir nossa condição inata de Filhas da Sophia, sacerdotisas da dança sagrada da vida e da Terra, artesãs dos nossos sonhos e realizações, reconhecendo e honrando a unidade e a interdependência da luz e escuridão, silêncio e palavra, razão e intuição, Espírito e matéria.
Mirella Faur
Fonte: