domingo, 21 de novembro de 2010

O Pensamento Científico de Goethe



Goetheanum, Dornach, Suiça
 
A natureza às vezes se excede.

E reúne, num só homem, uma quantidade de talento capaz de suprir um século inteiro.

Foi o que fez com alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832).

É pelo valor de sua obra literária que o mundo comemora os 250 anos de seu nascimento.

De fato, com apenas 25 anos, a publicação do romance "Os sofrimentos do jovem Wether" já havia feito dele uma celebridade internacional.

A conclusão da primeira parte do Fausto, aos 41, consagrou seu nome como um dos maiores poetas e dramaturgos de todos os tempos.

O que raramente se diz é que, tanto quanto poeta, Goethe foi também um cientista.

E chegou a dar mais importância às suas investigações da natureza do que à criação literária.

Ele realizou pesquisas em campos tão variados como a óptica, a geologia, a mineralogia, a botânica e a zoologia.

Fez descobertas importantes, como a do osso intermaxilar no crânio humano.

E elaborou uma teoria das cores alternativa à do grande físico inglês Isaac Newton (1642-1727).

Mais significativa do que essas realizações isoladas, porém, foi sua visão da natureza.

Divergindo das idéias científicas da época, Goethe a concebeu como uma totalidade orgânica e viva, em profunda conexão com o mundo espiritual, e não um mecanismo frio e sem alma, constituído apenas por matéria em movimento.

Num momento em que a ciência busca novos paradigmas, é essa visão da natureza que torna o pensamento de Goethe tão atual.

Ela o levou a considerar o crânio como um desenvolvimento das vértebras.

E a ver todos os órgãos vegetais como metamorfoses do princípio espiritual expresso pela folha.

Essas concepções ousadas foram tratadas com incompreensão e desprezo pela corrente dominante na ciência.

E só foram resgatadas, quase um século mais tarde, graças ao trabalho de Rudolf Steiner (1861-1925), o criador da antroposofia.

Em 1882, com apenas 21 anos de idade, Steiner foi convidado a editar os escritos científicos de Goethe.

Ele os reuniu em cinco livros, que abordam uma grande variedade de temas.

As introduções que redigiu – de uma profundidade filosófica espantosa para um autor tão jovem – fazem aquilo que o próprio Goethe sempre evitou: pensar sobre o pensamento.

Elas explicitam uma visão de mundo que nos "escritos goetheanos" permanecem implícitos e nos permitem captar suas linhas mestras.

Em todos os domínios da realidade, Goethe trabalha com dois conceitos básicos:

a) arquétipo e
b) metamorfose.

São os arquétipos ou idéias universais que conferem coerência à natureza.

É a metamorfose desses princípios espirituais que produz a enorme variedade das formas individuais encontradas no mundo.

Vejamos como o próprio Goethe utiliza esses conceitos para estabelecer a relação entre o crânio e as vértebras.

"O cérebro representa somente uma massa da medula espinhal aperfeiçoada ao máximo grau", escreveu ele em 1789.

"Na medula terminam e começam os nervos que estão a serviço das funções orgânicas, ao passo que no cérebro terminam e começam os nervos que servem às funções superiores, principalmente os nervos dos sentidos.

No cérebro surge desenvolvido aquilo que está indicado como possibilidade na medula espinhal."

E continua:

"O cérebro é uma medula perfeitamente desenvolvida, ao passo que a medula espinhal é um cérebro que ainda não chegou ao pleno desenvolvimento.

Ora, as vértebras da coluna contornam como um molde as várias partes da medula, servindo-lhe como órgãos envoltórios.

Parece então altamente provável que, se o cérebro é uma medula espinhal elevada ao máximo grau, também os ossos que o envolvem sejam vértebras altamente desenvolvidas".

Em outras palavras, as diversas vértebras da coluna seriam manifestações de um princípio espiritual, de uma idéia arquetípica.

"De vértebra a vértebra, no sentido ascendente, esse mesmo princípio vai-se metamorfoseando, sendo representado por formas ósseas cada vez mais sutis.

Até chegar ao crânio, que seria a última metamorfose da idéia vértebra", explica o farmacêutico-bioquímico Flávio Ernesto Milanese, com estágio em ciência Goetheanística no Goetheanum, de Dornach, Suiça.

Essa maneira de ver o mundo apresenta enorme afinidade com o pensamento do filósofo grego Platão (427-347 a.C.) e de seus sucessores neoplatônicos (séculos 3 a 6 d.C.).

Mas Goethe não chegou a ela por meio da especulação filosófica, e sim através de uma observação muito atenta e sem preconceitos da natureza.

Mais do que em qualquer outro campo, foi na botânica que sua abordagem alcançou as melhores realizações.

Ele as expressou no texto "A metamorfose das plantas", publicado em 1790, o mesmo ano da primeira edição do Fausto.

A idéia começara a germinar em sua mente uma década e meia antes.

Pois foi por volta de 1776 que ele travou contato com a classificação dos vegetais realizada pelo naturalista sueco Carl von Linée, o célebre Lineu (1707-1778).

Esta baseava-se exclusivamente nas características exteriores, que diferenciam uma planta de outra, e não em qualquer princípio interno unificador.

Goethe não podia concordar com isso.

Ele intuia a existência de "algo" que fazia uma planta ser uma planta e estava presente em todas as plantas individuais.

Para captar esse "algo" era preciso observar a mesma planta sob as mais variadas condições e influências.

Sua famosa viagem à Itália, iniciada no dia 3 de setembro de 1786, permitiu-lhe estudar a flora dos Alpes e verificar as numerosas transformações provocadas pelos fatores geográficos em cada ente vegetal.

Ele observou como suas formas se modificavam à medida que subia a montanha.

E, em Veneza, perto do mar, constatou como seus aspectos eram alterado pelo solo e o ar salinos.

Ficou claro que a essência da planta não podia ser encontrada em suas características externas, sempre mutáveis, porém num nível mais profundo de realidade.

Seus sentidos estavam aguçadíssimos e sua inteligência parecia ter alcançado a potência máxima.

No jardim botânico de Pádua, em meio à vegetação exuberante, irrompeu finalmente em sua consciência o pensamento de que todas as formas vegetais poderiam ser desenvolvidas a partir de uma forma só.

Era a idéia da Urpflanze, ou seja, a planta primordial.

"Trata-se de uma realidade espiritual, arquetípica, que não pode ser alcançada pelos sentidos, nem sequer pela imaginação, mas apenas pelo pensamento abstrato", explica o geólogo Hendrik Ens, professor da Escola Waldorf Rudolf Steiner, de São Paulo.

Essa idéia universal pode sofrer um sem-número de transformações, dando origem à extrema variedade de entes vegetais.

Mas todas essas metamorfoses decorrem das leis formativas presentes na planta primordial.

Não são as influências exteriores que transformam esse arquétipo.

Elas apenas fazem com que suas forças plasmadoras internas se manifestem de um modo peculiar.

São essas forças – e somente elas – o princípio constitutivo da planta.

Ao conceber a Urpflanze – escreveu Rudolf Steiner – Goethe reproduziu mentalmente o trabalho que a natureza realiza ao formar seus seres.

Era preciso ser tão cientista quanto poeta para executar tal façanha.

No campo da anatomia comparada, a mais famosa descoberta de Goethe foi a do osso intermaxilar no ser humano.

Esse osso, no qual estão incrustados os dentes incisivos superiores, é bastante destacado nos demais mamíferos.

Mas, no homem, encontra-se de tal forma soldado ao maxilar que a diferenciação é praticamente impossível.

Goethe achava, porém, que ele tinha que existir.

"Isso fazia parte de sua concepção geral da natureza", explica Hendrik Ens.

"Ele considerava que havia, sim, uma diferença fundamental entre o homem e os animais superiores.

Mas essa diferença era de ordem anímica e espiritual."

Do ponto de vista da arquitetura do corpo físico, Goethe "acreditava numa linha de continuidade, que permitia apenas pequenas variações e especializações".

Essa opinião acabou se confirmando, quando, no crânio no um indivíduo doente, ele descobriu um exemplar do osso intermaxilar, que se apresentava bastante separado do próprio maxilar.

A Urpflanze, a planta arquetípica, é uma entidade espiritual, que não pode ser encontrada em nenhum lugar do mundo físico.

Mas manifesta-se parcialmente em cada planta individual.

Ela é constituída exclusivamente por folhas.

Pois, para Goethe, a planta é uma folha que está se transformando.

"Ele chegou a esse pensamento a partir do estudo dos vegetais superiores, porque, quanto mais evoluída a planta, mais completamente ela manifesta o seu princípio arquetípico", afirma Hendrik Ens.

Investigando as sementes das dicotiledônias, Goethe percebeu que, nelas, as folhas já estão presentes em potencial.

É o caso das sementes do feijão, que, ao brotarem, projetam duas folhas.

A partir daí, cada folha nova que nasce apresenta uma forma ligeiramente diferente da anterior.

É a metamorfose do princípio arquetípico, que dá origem aos diferentes órgãos da planta.



Texto de José Tadeu Arantes


(A ser publicado pela revista Galileu provavelmente em outubro de 1999)