quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Psique e o Mundo / Parte 2/2




FUNÇÃO DA CONSCIÊNCIA

São as quatro ferramentas, ou aspectos, que a nossa consciência usa para funcionar.

Representam o modo como se funciona na interação com o mundo e com o próprio indivíduo.

Há uma predisposição ao maior desenvolvimento de uma função do que de outras e a educação pode ou não reforçar ainda mais essa tendência. Deste modo, embora todas as pessoas possuam as quatro funções, elas não se desenvolvem de modo igual.

Daí a possibilidade de se classificar em geral as pessoas que tendem a usar mais certas funções do que outras de acordo o nome dessa função, o que forma, junto com a atitude extrovertida ou introvertida, os tipos psicológicos.

A mais desenvolvida é chamada de "função principal" e a menos evoluída de "função inferior".

A sensação informa que alguma coisa existe e trabalha com os cinco sentidos e com as percepções do corpo em geral.

O pensamento esclarece o que é esta coisa, a define e identifica, forma conceitos e trabalha com as ideias.

O sentimento revela se é agradável ou não para o sujeito. A função sentimento trabalha com seus conteúdos, que são os sentimentos, os quais a ajudam no trabalho de atribuir valor às coisas. É também uma espécie de julgamento que visa a uma aceitação ou rejeição subjetivas, e distingue-se do julgamento intelectual (função pensamento), o qual visa ao estabelecimento de relações conceituais. Provoca repulsa ou atração em diversos níveis. Jung (1991) difere os conteúdos da função sentimento – os sentimentos – das emoções.

A intuição expõe as diferentes possibilidades de relação do objeto com outras coisas e pode, dessa forma, relatar de onde ele veio e para onde vai.

Transmite a percepção por via inconsciente do que é possível acontecer ou fazer.

Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas internas ou externas e suas relações.

Por ela pode-se vislumbrar o mundo interior.

A intuição vai além dos fatos, sentimentos e ideias, e constrói modelos elaborados da realidade.

Jung (1991) classificou as funções da consciência em irracionais e racionais. Funções irracionais são aquelas que não operam com a razão, que não dependem do raciocínio nem do juízo para funcionarem.

A intuição e a sensação são funções psicológicas que devem estar abertas à casualidade e a qualquer possibilidade; por isso não devem ter qualquer direção racional. Já as racionais fazem uso da razão, do juízo, da abstração e da generalização.

São elas o pensamento e o sentimento.


FUNÇÃO INFERIOR (OU QUARTA FUNÇÃO)

As funções da consciência foram classificadas por Jung (1991) de acordo com o grau de consciência com o qual o indivíduo as opera.

Assim, a função superior consiste naquela em que o indivíduo tem maior perícia no seu domínio.

As auxiliares são governadas de forma apenas relativa, pois se encontram parcialmente inconscientes.

A inferior não se desenvolve durante o processo de maturação.

É considerado dificílimo o desenvolvimento simultâneo de todas as funções psicológicas. As exigências sociais podem forçar o desabrochar daquela que servirá melhor ao sucesso social ou a seguir a própria natureza.

Da identificação mais ou menos plena com a função privilegiada combinada com as atitudes de extroversão e introversão, é que surgem os oito tipos psicológicos junguianos.

A unilateralidade desse desenvolvimento acaba relegando uma ou mais funções à precariedade, à escuridão, ao subdesenvolvimento.

Normalmente ocorre a percepção de certos sinais de sua presença, daí ser conhecida pelo menos "de vista". Nas neuroses, porém, o caso é mais grave, podendo ocorrer forte incompatibilidade da função inferior com a função principal, o que perturba seriamente o equilíbrio psíquico. Com a função inferior no inconsciente, a energia de que está naturalmente investida acaba ativando fantasias correspondentes à função em questão. A conscientização dessas fantasias e sua integração através de trabalhos interiores favorecem o seu progresso até uma realização mais ou menos completa da pessoa.


IMAGINAÇÃO ATIVA

É um método de interação com o inconsciente há muito tempo conhecido dos antigos alquimistas e presente com algumas variações na meditação oriental.

Sucintamente, "(...) é um diálogo que travamos com as diferentes partes de nós mesmos que vivem no inconsciente" (Johnson, 1989, p. 154).

Consiste no relacionamento com os sentimentos, pensamentos, atitudes e emoções através dos vários personagens que aparecem em nossos sonhos e fantasias, ou através de sua representação mental.

Na imaginação ativa (IA) interage-se ativamente com esses personagens, isto é, discordando, quando for o caso, opinando, questionando e até tomando providências com relação ao que é tratado, isso tudo pela imaginação. Quando não se sabe, p. ex., porque uma figura agiu de forma violenta em um sonho, pode-se fazer uma IA, recordar o sonho até esta parte em particular e a partir daí questionar o personagem das razões do seu comportamento violento. Nesse momento deve-se ter o cuidado de deixar que a figura "diga" o que vier à sua cabeça. Pode haver a sensação de que se está inventando tudo, mas isso não importa e nem altera o efeito real da prática da IA, o que pode ser verificado por seu efeito emocional após sua conclusão.

Difere da fantasia passiva porque nesta não há atuação do ego no quadro mental, de forma a participar do drama vivenciado. O indivíduo apenas observa o desenrolar do roteiro, muitas vezes com sofrimento involuntário, sem proveito algum, e o que é pior, sem que venha a conhecer o sentido que há por trás.

A técnica pode ser aplicada também quando se está fortemente influenciado por uma emoção. Neste caso, personifica-se a emoção vivenciada para interação do modo como descrito acima.


IMAGINAÇÃO CORPO-ATIVA

Consiste numa aplicação semelhante à imaginação ativa, porém com o acréscimo da vivência e identificação corporal/material com o cenário, os personagens e a dinâmica do sonho.

A partir dessa identificação, ocorre uma conscientização das impressões com o elemento identificado e com os outros elementos do sonho através desse ponto de vista.

Essa percepção interior ocorre através do reconhecimento do sentimento, emoção, ação, ideia, pensamento e sensação e através de contemplação em estado de relaxamento emergentes dessa apropriação.

Esta técnica, criada por Gallbach (2000), visa favorecer o contato com o conteúdo emocional das imagens oníricas. Isto relativizaria o trabalho exclusivamente mental que várias outras técnicas enfatizam.

"Frequentemente, afecções corporais parecem constituir a dramatização de conflitos psíquicos. Corpo e psique estão interligados" (Gallbach, 2000, p. 36). Esta técnica pretende fazer justiça à totalidade do sonhador, recorrendo ao uso das várias outras funções psíquicas.


INCONSCIENTE COLETIVO

É o mais poderoso e influente sistema da psique.

Parece constituir o depósito de traços de memória herdados do passado ancestral do homem.

É parte importante do desenvolvimento psíquico evolutivo do homem que se acumulou em consequência de experiências repetidas durante várias gerações.

Aparentemente é universal; todos os seres humanos têm, mais ou menos, o mesmo inconsciente coletivo.

Sobre ele estão erigidos o ego, o inconsciente pessoal e todas as outras aquisições individuais.

Tudo o que uma pessoa aprende como resultado de experiências é influenciado pelo inconsciente coletivo, que exerce uma ação orientadora ou seletiva sobre o comportamento da pessoa, desde o início da vida.

A experiência de mundo dos indivíduos está moldada pelo inconsciente coletivo, embora não completamente, pois, se assim fosse, não poderia haver variação e desenvolvimento.


INCONSCIENTE INDIVIDUAL

É a região da personalidade mais próxima ao ego.

Consiste de experiências que foram suprimidas, reprimidas, esquecidas ou ignoradas.

Os conteúdos do inconsciente individual são acessíveis à consciência, havendo muitas permutas entre o inconsciente individual e o ego.


INDIVIDUAÇÃO

É o processo de desenvolvimento da individualidade da pessoa que tem como consequência sua diferenciação da coletividade, do conjunto, sem opor-se necessariamente à norma.

A individuação não leva ao isolamento do indivíduo, mas à sua integração mais consciente, intensa e abrangente com o coletivo, seja na forma do inconsciente coletivo ou na forma da sociedade como conhecemos.

Pode conduzir-se consciente ou inconscientemente.

O primeiro caso tende a ocorrer quando alguém se envolve com trabalhos interiores, como a interpretação dos sonhos, a imaginação ativa, a análise, etc.

O segundo é uma ocorrência natural e geralmente muito mais lenta, que tem a desvantagem de deixar o individuado mais ou menos às cegas quanto ao processo em geral.

Geralmente a individuação ocorre na segunda metade da vida. Pode ser detectada através dos sonhos pela repetição cíclica, espiral e temática das imagens dos sonhos, num ciclo de desenvolvimento que tende a resolver os conflitos expressos em um nível mais avançado.


INTROVERSÃO

Consiste na atitude de voltar-se para dentro de si próprio, isto é, envolve uma relação negativa com o objeto.

O interesse do indivíduo se retrai do mundo exterior para se voltar a ele mesmo, ao contrário da atitude oposta, a extroversão.

O introvertido pensa, sente e age de modo a deixar perceber que o mais importante é ponto de vista do indivíduo, enquanto o exterior torna-se secundário. O sujeito pensa, sente, percebe e intui de acordo com a(s) função(ões) predominante(s) em sua psicologia.


PERSONA

Forma a máscara usada pelo indivíduo em resposta às solicitações da convenção e da tradição sociais e às suas próprias necessidades arquetípicas internas.

É a personalidade pública, aqueles aspectos que ostentamos ao mundo ou que a opinião pública fixa no indivíduo.

Constitui o estilo de relação e de adaptação do indivíduo ao mundo.

Frequentemente o ego se identifica com a persona, originando o que se chama de "inflação do ego


SI-MESMO (SELF)

Representa o ponto central da personalidade, em torno do qual todos os outros sistemas se organizam, formando constelações.

Sustenta a união desses sistemas, e fornece unidade, equilíbrio e estabilidade à personalidade.

Como todos os arquétipos, motiva o comportamento do homem e faz com que procure a integração, especialmente pelos caminhos fornecidos pela religião.

O Si-mesmo como totalidade psíquica tem um aspecto consciente e um inconsciente.

Aparece em sonhos, mitos e contos de fadas, na figura de personalidades "superiores" como reis, heróis, profetas, salvadores, etc. ou na figura de símbolos de totalidade como o círculo, o quadrilátero, a cruz, etc.


SÍMBOLO

Representa a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido (que se encontra no inconsciente), não podendo ser mais clara ou definida.

Distingue-se do sinal, que é uma analogia ou representação sucinta de algo conhecido.

Desta forma, explicar a cruz como símbolo do amor divino é reduzi-la a um sinal, pois "amor divino" designa o fato que se quer exprimir, bem melhor do que uma cruz que pode ter ainda muitos outros sentidos.

Simbólica seria a explicação que considerasse a cruz além de qualquer explicação imaginável, como expressão de um fato místico ou transcendente (psicológico), até então desconhecido e incompreensível, que pudesse ser representado do modo mais condizente possível só pela cruz.

O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se compõe de dados de todas as funções psíquicas. Possui um lado que fala à razão e outro inacessível à razão.


SINCRONICIDADE

Acontecimento simultâneo, de dois ou vários eventos, onde pelo menos um é interno e o outro externo, sem relação de causa e efeito, mas que são ligados pelo mesmo significado.

Uma explicação para as sincronicidades é que os arquétipos não se situam exclusivamente na esfera psíquica, mas também nas circunstâncias exteriores.

Estamos acostumados a considerar o "sentido" das coisas como uma ocorrência na nossa psique e relutamos em admitir que ele possa existir também fora de nossa personalidade. É isso o que a sincronicidade parece indicar.

Em outras culturas, principalmente de caráter introvertido, tais como a chinesa, o sentido encontra seu lugar também nos eventos exteriores. É que, para eles, o sentido (Tao) se obscurece quando fixamos o olhar apenas nos detalhes das coisas, perdendo a visão do conjunto. Já para os ocidentais os detalhes são importantes por si mesmos e não encontram conexão com a totalidade da existência.

Para estes, a psique é inteiramente dependente de um cérebro material. Esquece-se que o comportamento "significativo" ou "inteligente" de organismos inferiores nada tem a ver com a atividade cerebral.


SOMBRA

É o arquétipo responsável pelo aparecimento de pensamentos, sentimentos e ações desagradáveis e socialmente reprováveis.

Nela encontram-se todos os aspectos reprováveis da personalidade.

Daí a sombra fazer parte do inconsciente pessoal.

Constitui o oposto do eu (ego).

É normalmente retratada nas histórias em quadrinhos como o "alter-ego", o lado sombrio da personalidade.

Aparece normalmente nos sonhos e na vida desperta projetada nas pessoas do mesmo sexo que detestamos.

A profunda ofensa com certas críticas é um bom sinal da presença da sombra.

Um ótimo exemplo literário da sombra é o conto “O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde”.

Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho altamente revelador: um homem, perseguido por um crime, engolia um certo pó e passava por uma drástica mudança de caráter, tão drástica que ele se tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr. Jekyll transformava-se no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade ia assumindo proporções cada vez maiores à medida que o sonho se desenrolava.

Stevenson desenvolveu o sonho no seu famoso romance ‘The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde’ [O estranho caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde]. Seu tema integrou-se de tal modo na cultura popular que pensamos nele quando ouvimos alguém dizer, "Eu não era eu mesmo", ou "Ele parecia possuído por um demônio", ou "Ela virou uma megera". Como diz o analista junguiano John Sanford, quando uma história como essa nos toca tão a fundo e nos soa tão verdadeira, é porque ela contém uma qualidade arquetípica - ela fala a um ponto em nós que é universal.

Cada um de nós contém um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona agradável para o uso cotidiano e um eu oculto e noturnal que permanece amordaçado a maior parte do tempo.

Emoções e comportamentos negativos - raiva, inveja, vergonha, falsidade, ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas - ficam escondidos logo abaixo da superfície, mascarados pelo nosso eu mais apropriado às conveniências. Em seu conjunto, são conhecidos na psicologia como a sombra pessoal, que continua a ser um território indomado e inexplorado para a maioria de nós.

 
Texto de Charles A. Resende
Psicólogo

Fonte da Imagem:
Pietrzyk
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