Até há pouco tempo, a Biologia buscava seus modelos e explicações através da descrição espacial de estruturas de organismos, sistemas, tecidos, células ou panes de células. O tempo nesses modelos representa nada mais do que um cenário no qual as estruturas funcionam e eventualmente se transformam.
A Cronobiologia pretende entender o tempo não mais como cenário, mas sim como personagem, ou seja, como elemento organizador da matéria viva.
Na Física contemporânea, o tempo já é entendido como uma dimensão do real; na Biologia, o tempo está sendo introduzido pelos cronobiologistas como uma dimensão importante da matéria viva.
Sentimos a existência do tempo através das transformações no meio ambiente e nos nossos organismos. Sabemos intuitivamente que o tempo passa, independente da nossa vontade. Uma das sensações que temos é a da existência de ciclos, ou seja, fenômenos que se repetem de tempos em tempos, sugerindo uma imagem de avanço do tempo em círculos ou em espiral. Os seres vivos normalmente expressam esses ciclos de forma em geral bem clara, através de hábitos diurnos ou noturnos, sono e vigília, reprodução etc.
Hoje sabemos que tais ciclos estão presentes não apenas nesse nível mais geral do comportamento das espécies, mas são encontrados em todos os níveis de organização dos seres vivos: desde funções celulares até comportamento social. Além disso, sabemos hoje também que os ciclos estão presentes em praticamente todas as espécies vivas, desde organismos unicelulares até o homem. Uma característica tão geral da matéria viva como essa organização temporal deve, portanto, ser encarada como componente fundamental dos seres vivos.
O tempo parece ser de fato um personagem importante na história evolutiva dos seres vivos. Quando observamos o nascimento de qualquer indivíduo, temos uma expectativa do tempo de vida médio de sua espécie, algo que parece estar contido no patrimônio genético da espécie e que diz respeito ao tempo. Esse mesmo indivíduo aparentemente também traz em seu patrimônio a inscrição de seus hábitos futuros, diurnos ou noturnos, seus ciclos reprodutivos, etapas de desenvolvimento, enfim, diversos marcadores de tempo que regularão as diversas atividades desse organismo ao longo de sua existência.
Uma das maneiras mais simples de detectar a organização temporal dos seres vivos é através da constatação da existência de ciclos regulares nas suas funções, avaliando a regularidade desses ciclos através da comparação com marcadores de tempo exteriores ao organismo em questão.
Uma marcação universal é dada pelos movimentos do nosso planeta, os quais geram ciclos geofísicos de diversas durações, como o dia/noite e as estações do ano. Diversos ciclos nos seres vivos tendem a acompanhar esses ciclos geofísicos, como é, por exemplo, o caso do ciclo sono/vigília, que se repete aproximadamente a cada 24 horas. Aliás, essa coincidência leva muita gente a acreditar que esses ciclos dos seres vivos não passam de reflexos dos organismos em relação aos ciclos ambientais. Pretendo demonstrar ao longo deste artigo que esses ciclos biológicos funcionam independentemente da exposição dos organismos aos ciclos ambientais. Uma maneira interessante de chegar a essa conclusão é acompanhar a história da Cronobiologia.
Um astrônomo francês, J. J. De Mairan, foi provavelmente o primeiro pensador a propor a possível existência de um relógio biológico. Ele observou o movimento regular de abertura e fechamento das folhas de uma sensitiva (provavelmente a Mimosa pudica) em um vaso na janela junto a seu telescópio. Curioso com a regularidade dos movimentos, levou o vaso para o porão da casa, colocou-o dentro de um baú e, nessas condições de obscuridade constante, observou a persistência dos movimentos das folhas coincidindo, aparentemente, com o dia/noite ambiental. De Mairan relatou o experimento a um amigo botânico, que fez uma comunicação do fato à Academia Real de Ciências de Paris, publicando o relato em 1729. Evidentemente, essa suposição da existência de um relógio biológico nas plantas entrava em choque com a noção, bastante difundida, segundo a qual os ciclos biológicos nada mais eram do que reflexos das flutuações ambientais. Por isso o relato do astrônomo foi encarado mais como uma curiosidade mal-explicada: talvez o baú não estivesse bem-vedado, o porão não tão escuro ou a sensitiva tivesse recebido algum estímulo não-identificado sinalizando claro ou escuro, e por aí vai. Em 1759, Du Monceau mostrou que o movimento das folhas da sensitiva não dependia de variações da temperatura ambiental. Em 1832, A. de Candolle repetiu as observações na espécie Mimosa pudica e não só constatou a persistência do ciclo de movimento das folhas, mas também demonstrou que na condição de obscuridade constante a duração dos ciclos era de 22 a 23 horas, portanto, diferente do ciclo ambiental de 24 horas. Em 1814, Virey obteve o grau de Doutor em Medicina com uma tese sobre as flutuações diárias da temperatura na saúde e na doença. Darwin escreveu em 1880 que o movimento diário das folhas era uma propriedade inerente das plantas. Nessa mesma época, Pfeffer, fisiologista de plantas, refletindo a mentalidade vigente, supôs que os movimentos observados em obscuridade constante eram devidos a vazamentos de luz; levando essa suposição para o laboratório, acabou convencido do contrário: o movimento tinha origem em algum mecanismo endógeno e não era, como supunha, resposta reflexa a vazamentos de luminosidade ambiental. Todas essas observações pioneiras e fundamentais não puderam ser bem compreendidas na época, justamente em razão da dificuldade de conviver com o conceito de relógios biológicos, ainda malformulado e improvável.
Nestes últimos dois séculos, as evidências foram-se acumulando a tal ponto que hoje praticamente nenhum cientista bem informado duvida da existência dos relógios biológicos. As demonstrações seguem todas o esquema original do astrônomo francês De Mairan: coloca-se o organismo sob condições constantes, isolando-o de variações ambientais que possam causar a ciclagem, e assim constata-se a persistência de ciclos. Esse desenho experimental é denominado situação de livre-curso e os ciclos observados são chamados ritmos biológicos em livre-curso. Aliás, a denominação ritmos biológicos será adotada daqui em diante como designação genérica para os diversos ciclos encontrados nos mais variados níveis de organização dos seres vivos.
Retomando a perspectiva histórica, deve ser registrado um outro marco importante: em 1935, Bünning demonstrou a transmissão hereditária do ritmo do movimento do caule e das folhas do feijão, revelando a existência de duas linhagens distintas quanto ao período endógeno desse ritmo: uma com período de 23 horas e outra com período de 27 horas; a hibridização entre essas duas linhagens produziu uma nova, com ciclo de movimentos de 25 horas. Esses achados foram confirmados mais recentemente na mosca da fruta, a Drosophila melanogaster. Em 1963, foi demonstrado a capacidade dos organismos de medir o tempo, monstrando que as plantas possuem reatividade variável em relação à luz, dependendo do momento de exposição. Essa linha de investigação deu origem ao reconhecimento do fenômeno do fotoperiodismo, que consiste basicamente na capacidade de avaliação da duração da fase de luz do ciclo claro/escuro, especialmente importante em seres cujo ambiente está sujeito a grandes variações sazonais como nas zonas temperadas do globo.
Podemos datar a origem da Cronobiologia mais ou menos por essa época, metade do século XX, quando se firmaram os conceitos de ritmos endógenos e relógios biológicos, entre outros.
Uma questão que surge geralmente nesta altura é por que a Cronobiologia demorou tanto a ser reconhecida no meio acadêmico internacional. As respostas estão em dois níveis: de um lado a precariedade de algumas demonstrações da existência de ritmos ou relógios, de outro, a compreensão limitada dos fenômenos ligados à variabilidade biológica.
A precariedade foi superada pelo avanço tecnológico, que passou a tornar viáveis coisas como a monitoração contínua de parâmetros fisiológicos ou comportamentais e, também, o desenvolvimento de metodologia matemática e estatística adequada para lidar com fenômenos cíclicos, Conceitos Fundamentais.
No que se refere à limitação da compreensão, sabemos que certas idéias acabam sendo aceitas ou rejeitadas muitas vezes pelo grau de coerência que estabelecem com as idéias dominantes em um dado campo do saber.
Ora, no caso da Biologia e principalmente nas áreas de aplicação médica, os princípios teóricos dominantes desde o final do século XIX derivam dos conceitos originais de Claude Bernard, especialmente na proposta de W. Cannon sobre a homeostasia como princípio organizador geral dos seres vivos. Segundo essa proposta, os sistemas fisiológicos buscariam um estado de equilíbrio constante, entendendo-se as variações em torno dos valores de equilíbrio como perturbações a serem corrigidas pelo sistema.
Fica mais fácil entender por que a Cronobiologia demorou a ser aceita, uma vez que dados de variações eram entendidos como perturbações e não como evidências de uma organização mais essencial dos sistemas fisiológicos.
Um exemplo pode ajudar a compreender melhor a diferença entre a hipótese homeostática e a abordagem cronobiológica: qual a temperatura normal de um ser humano? A resposta homeostática será algo parecido com 36,5 º (para mais, para menos 0,5 grau) Celsius, ou seja, um valor médio que oscila entre extremos de 36,0 e 37,0 graus. Já a versão cronobiológica nos dirá que a temperatura corporal humana apresenta um ritmo com valores mínimos e máximos em diferentes momentos do dia; por exemplo: próximo dos 36,0 graus no início da manhã e próximo de 37,0 graus no final da tarde. O cronobiologista nos dirá também que a média dos valores do dia tem muito pouco valor, dada a grande variabilidade, e que é melhor falar em valores médios para cada momento do dia.
Um outro exemplo talvez ajude: como pensar um estado de equilíbrio intermediário entre o sono e a vigília? Seria este o estado normal do ser humano, sendo o sono profundo e a vigília em alerta máximo os pontos extremos de perturbação no sistema? Parece evidente que essa rota não leva muito longe. A Cronobiologia nos dirá que os estados de sono e vigília fazem parte de um ciclo e que têm seus mecanismos de produção próprios, não podendo ser entendidos como perturbações do sistema, uma vez que este consiste justamente em um mecanismo produtor da oscilação entre esses dois estados.
As inúmeras demonstrações da existência e mesmo a identificação de alguns relógios biológicos ao longo das últimas décadas contribuíram para o reconhecimento da Cronobiologia como ramo importante do conhecimento biológico.
BIORRITMOS OU RITMOS BIOLÓGICOS?
Sob o nome de biorritmos, procura-se divulgar comercialmente uma versão popular e laica pretensamente aplicada da Cronobiologia. Essa versão, que não deve ser confundida com o estudo científico dos ritmos biológicos, propõe a predição das condições físicas e psicológicas dos indivíduos a partir de curvas traçadas desde o nascimento deles. A origem dos conceitos fundamentais dos biorritmos pode ser situada em fins do século XIX e início do século XX, quando Hermann Swoboda, psicólogo vienense, e Wilhelm Fliess, médico berlinense, amigo de Freud, sugeriram a existência de periodicidade na ocorrência de distúrbios físicos e emocionais. Posteriormente, na década de 50, a tentativa de encontrar-se um método científico capaz de predizer o estado físico e emocional tomou novo impulso, continuando pelas décadas de 60 e 70, quando então diversos trabalhos sérios foram publicados demonstrando a falta de rigor metodológico e fundamentação estatística para os supostos biorritmos.
A teoria dos biorritmos sustenta a existência de três ciclos com períodos fixos, que têm origem no momento do nascimento e que se repetem ao longo da vida do indivíduo. Esses ciclos teriam períodos de 23, 28 e 33 dias e estariam relacionados com os estados físico, emocional e intelectual, respectivamente. Ainda segundo a teoria, os dias críticos na vida do indivíduo seriam aqueles em que as curvas se achassem no ponto zero, ou seja, na transição da fase positiva para a negativa ou vice-versa. Nesses dias críticos seria maior a possibilidade de ocorrência de acidentes, devido à instabilidade do indivíduo.
Desta forma, baseadas nesta suposição, empresas japonesas e norte-americanas passaram a adotar o cálculo dos biorritmos, convencidas de estar usando uma ferramenta científica na elaboração das escalas de trabalho de seus funcionários, com vistas a uma redução dos acidentes de trabalho. Uma dessas empresas, o Ohmi Railway Co. do Japão, chegou inclusive a divulgar resultados favoráveis obtidos com o auxílio dos biorritmos. Entretanto, em estudo em que examinam a incidência de acidentes aéreos e automobilísticos, assim como flutuações em desempenho esportivo, não há nenhuma base estatística para atribuir-se quaisquer correlações entre acidentes de trabalho e os biorritmos, o mesmo valendo para desempenho esportivo. Dados como esses da empresa japonesa devem ser creditados principalmente a fatores psicológicos, predispondo os indivíduos analisados.
Com base no conhecimento atual em Cronobiologia, os seguintes aspectos da teoria dos biorritmos são criticáveis:
1. O significado das curvas.
A existência de um ciclo de vigor físico de 23 dias é fundamentada por uma única evidência: o caso de um paciente que apresentou um ciclo de temperatura de 24 a 26 dias, não existindo nenhuma outra evidência experimental da existência de tal ciclo. Além do fato de tratar-se de um dado isolado e, portanto dificilmente generalizável, deve-se questionar também a suposta correlação direta entre temperatura e vigor físico.
O ciclo emocional de 28 dias possui relação evidente com o ciclo menstrual, que apresenta realmente correlatos emocionais, para os quais contribuem as alterações hormonais verificadas ao longo do ciclo. Entretanto, a existência de um ciclo semelhante para homens ainda é discutível, já que existem poucas evidências experimentais. O próprio ciclo feminino apresenta periodicidade bastante variável, tanto na população de mulheres, como em cada mulher individualmente.
Já o ciclo intelectual de 33 dias surgiu em decorrência de observações feitas em ferroviários no período de 1929 a 1932, além de observações casuísticas do desempenho de estudantes da Universidade de Innsbruck.
2. A origem dos biorritmos.
A suposição de que esses ciclos têm origem exata no momento do nascimento dos indivíduos é arbitrária, pois conhecemos hoje ritmos existentes antes do nascimento, como é o caso de ritmos hormonais, geralmente vinculados aos ritmos maternos, bem como ritmos que se instalam bem mais tarde, como é o caso dos ciclos sono/vigília e menstrual.
3. A invariabilidade dos biorritmos.
Pelo que se conhece dos trabalhos em Cronobiologia, é bem pouco provável a existência de ritmos biológicos absolutamente invariáveis, com períodos exatos de 23, 28 ou 33 dias, como supõe a doutrina dos bíorritmos.
Na realidade, todos os ritmos biológicos conhecidos apresentam certa variabilidade, ou flutuações, aparentemente inerentes à própria estrutura temporal do organismo.
O rigor absoluto contido na doutrina dos biorritmos certamente tornaria os organismos incapazes de promover certas adaptações ou ajustes aos diversos esquemas temporais existentes no seu ambiente, sejam decorrentes de fenômenos como estações do ano, sejam decorrentes de alterações em horários de trabalho, doenças etc.
A própria variabilidade interindividual, amplamente demonstrada em estudos cronobiológicos, não é levada em consideração no cálculo dos biorritmos. Igualmente improvável é a estrita sincronização dos biorritmos; para que isso ocorra, é preciso que essa sincronização se mantenha ao longo de toda a vida do indivíduo dentro de uma margem de variação da ordem de segundos, o que é praticamente impossível, segundo o conhecimento atual do modo de funcionamento dos relógios biológicos.
4. A interpretação das curvas.
A falta de um critério objetivo para análise dos altos e baixos das curvas torna a interpretação dos biorritmos extremamente subjetiva e variável. Tal fato não é de causar estranheza, conhecendo-se a origem obscura e imprecisa dos biorritmos, o que torna inevitável o uso de critérios frouxos para encaixar eventos da vida das pessoas na doutrina dos biorritmos. Trabalhos recentes demonstram a total falta de coerência entre os prognósticos e os resultados da aplicação da doutrina dos biorritmos.
A despeito de todas essas incongruências, os biorritmos tendem a assumir um papel semelhante ao do horóscopo sobre o comportamento social, pois tanto a astrologia como os biorritmos possuem como maior trunfo a capacidade de produzir autosugestão nos consumidores, à semelhança de certas drogas miraculosas que dependem muito mais da crença do indivíduo do que dos efeitos reais que elas produzem no organismo. A atitude dos astrônomos em relação à Astrologia tem sido simplesmente ignorá-Ia, o que não impede sua grande penetração social em escala maior do que a própria Astronomia.
No caso dos biorritmos, as incoerências do método são necessárias justamente para possibilitar a ilusão de explicação universal, válida para todos os casos, e, portanto vendável; prevalece nitidamente o interesse comercial dos produtores e divulgadores de biorritmos.
Uma consideração importante: se por um lado é fácil demonstrar a incoerência e falsificação contidas na doutrina dos biorritmos, por outro lado como explicar seu consumo generalizado nas últimas décadas?
Acontece que de fato todos nós temos curiosidade de conhecer e, principalmente, poder prever variações do nosso comportamento, e as explicações científicas dessas variações não têm sido satisfatórias, daí o espaço aberto para mistificações.
A Cronobiologia tem como uma de suas tarefas suprir essa necessidade social de conhecimento e análise dos ritmos biológicos. Através da demonstração cada vez mais clara da universalidade dos ritmos biológicos em todos os níveis de organização dos seres vivos, da expansão crescente da aplicação de métodos científicos no estudo dos ritmos e do desenvolvimento de métodos próprios na análise dos fenômenos biológicos cíclicos, será possível enfrentar e vencer a batalha contra a deformação de idéias relacionadas com a existência real dos ritmos.
Por Adalberto Tripicchio
Fonte:
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