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terça-feira, 12 de janeiro de 2016
Biblioteca on line com mais de 1000 livros de Fernando Pessoa
Até agora, a biblioteca pessoal do poeta podia apenas ser consultada na Casa Fernando Pessoa mas, hoje, já podemos encontrar todo o acervo online, constituído por 1142 livros.
As obras podem ser pesquisadas por ano, ordem alfabética e por categorias temáticas e é também possível encontrar algumas páginas com manuscritos do próprio Pessoa.
Todas as páginas dos volumes e manuscritos foram digitalizados e podem ser consultados página a página ou após o download completo de uma obra.
Esta iniciativa reuniu uma equipa de investigadores, incluindo Jerónimo Pizarro, e o apoio da Fundação Vodafone Portugal que possibilitaram a digitalização integral e publicação online da biblioteca. Segundo Pizarro, neste repositório podemos encontrar várias “anotações, comentários, traduções e outros diversos tipos de textos em prosa e em verso, para além de desenhos, horóscopos e exercícios caligráficos” do poeta.
Uma forma de eternizar e louvar todo o trabalho do maior poeta da língua portuguesa.
Acesse aqui:
Fonte:
Shifter PT
segunda-feira, 16 de junho de 2014
O olhar integral
"No coração da sombra existe a luz. E no coração da luz existe a sombra. A experiência do ser é a experiência do círculo que mantém os dois juntos. O momento de repouso que fazemos é semelhante à nossa respiração. O inspirar e o expirar é uma não-dualidade. Se só inspiramos, sufocamos, se só expiramos, morremos.
O sopro contem a inspiração e a expiração e o que é verdadeiro em nossa vida fisiológica é também verdadeiro em nossa vida psicológica.
Tornar-se adulto é passar da idade dos contrários para a idade do complementar, para um outro modo de olhar as coisas. Se alguém diz algo contrário ao que penso e sou capaz de entender esse contrário como complementar, vou crescer em consciência e em compreensão. Se em vez de rejeitar ou negar alguns elementos de minha vida obscura, sou capaz de acolhê-los, torna-me-ei mais inteiro.
A sombra é o que dá relevo à luz.
Quando amamos alguém, um dos sinais de amor verdadeiro é que amamos os seus defeitos. É fácil amar os defeitos de nossos filhos. É difícil amar os defeitos dos adultos ou de nossos cônjuges.
Esse amor de que falamos não significa complacência, não é dizer ao outro que me agrada o que ele tem de desagradável, pois isso seria mentira e hipocrisia. O amor de que falamos é dar ao outro o direito de ser diferente. É dar a ele o direito de experimentar sua liberdade. De experimentar em mim mesmo esta capacidade de amar o que é amável e de amar, também, o que não é amável. Dessa maneira passaremos, de uma vida submissa para uma vida escolhida. Nossa vida vale pelo olhar que é posto nela. Os olhares de juiz nos enchem de culpa. Há olhares benevolentes, misericordiosos e ao mesmo tempo, justos. Precisamos desses olhares porque todos nós temos necessidade de verdade e de sermos amados. Por vezes, os olhares que encontramos são muito amorosos, muito doces, mas falta a eles a exigência desta verdade.
Outras vezes, os olhares que se colocam sobre nós são plenos de verdade e justiça, mas falta a eles a misericórdia e o amor. Há um olhar integral do qual temos necessidade a fim de nos vermos tal e qual somos. Porque a verdade sem amor é inquisição e o amor sem verdade é permissividade.
Estas são reflexões gerais e cada um pode entrar em particularidades que lhes são próprias, sentindo se existe em sua vida alguém que pode suportar sua sombra sem julgá-la, apesar de não se mostrar complacente com ela. Creio que todos nós temos a necessidade, pelo menos uma vez em nossas vidas, de um tal olhar pousado sobre nós.
Nesse momento não teremos mais necessidade de mentir, de nos iludirmos, de usarmos máscaras. Podemos mostrar nossa verdadeira face, nosso verdadeiro corpo, com seus desejos e seus medos. Podemos mostrar nossa verdadeira inteligência com seus conhecimentos e suas ignorâncias.
Mostrar-se com o coração verdadeiro, capaz de muita ternura e também capaz de dureza e indiferença. Mostrar-se como não-perfeito, mas aperfeiçoável. Sob este olhar nossa vida pode crescer. Porque o olhar que nos julga e nos aprisiona em uma imagem faz-nos ficar parados, enquanto que o outro olhar nos impulsiona a dar um passo adiante desta imagem que os outros têm de nós."
Jean Yves Leloup
in Além da Luz e da Sombra
sábado, 29 de março de 2014
Acordes da Harmonia
"Quando um acorde musical é tocado, uma certa harmonia é produzida por aquela combinação de notas. Mas um acorde no qual haja apenas uma nota incorreta produz discordância, dissonância. Isso tem um efeito muito definido.
A mesma coisa acontece aos homens. Se um aspecto está fora de harmonia com o restante, não funcionamos com suavidade; nossas ações vêm de campos de consciência que não estão integrados. Isso pode resultar em doença. Se os acordes de muitos indivíduos não estiverem em harmonia, grupos de seres humanos podem se tornar mutuamente destrutivos, como testemunhamos hoje em dia.
Em comparação, consideremos a natureza. A natureza é como uma orquestra que reúne incontáveis notas. Desde o tempo de Pitágoras, essa sinfonia cósmica é conhecida como a Música das Esferas. De acordo com esse conceito, cada diminuto átomo está afinado a uma nota musical e está constantemente em movimento com velocidades incríveis, cada velocidade possuindo sua própria qualidade ou nota numérica. Se tivermos ouvidos para ouvir, poderíamos realmente perceber uma árvore crescer ou uma flor desabrochar. Da mesma forma, poderíamos ouvir os gritos de outros seres humanos e de outras formas de vida no planeta, e estaríamos melhor equipados para aliviá-los.
Nós, seres humanos, parecemos estar sempre buscando algo, numa tentativa de redescobrir um aspecto perdido da natureza – o acorde da harmonia com o universo. Harmonia não é um conceito visionário de contos de fadas. É muito relevante na vida diária. Ademais, a harmonia não está limitada ao individual, à família e à comunidade humana.
Antes, implica um estado de profunda ressonância interna com toda a vida no mundo terrestre, e, no final das contas, com toda a vida que reside nos domínios ainda mais inferiores. A busca por esse acorde perdido nos tem levado em miríades de direções. Estamos buscando preencher os vazios existentes em nossas estruturas, para nos tornarmos integrais.
Consequentemente, os seres humanos são grandes aventureiros. Procuramos em todos os recantos da vida para tentar descobrir aquele tesouro precioso – através da excitação, drogas, álcool, novas formas de prazer, riqueza, gurus, meditação e assim por diante. Pode-se dizer que o ser humano muitas vezes se parece com água represada, em vez de um participante ativo no grande sonho da vida.
Notas da existência
Nós só podemos nos tornar unos com a corrente, reconectarmo-nos a ela, quando descobrirmos a nossa profundidade. Como podemos, como indivíduos, redescobrir as notas mais profundas de nossa existência, que podem nos ajudar a nos movermos conscientemente em direção ao estado de harmonia?
Ouvir - Cada uma das miríades de formas de vida tem um conjunto único de vibrações. E isso inclui o ser humano. Podemos sentir as notas mais profundas de outra pessoa? Nós verdadeiramente ouvimos o outro – não apenas as palavras faladas mas os gestos da outra pessoa, os olhos, aquilo que não é dito, para que apliquemos nossos sentidos internos ao que a pessoa está comunicando? Krishnamurti comentava que nós sempre ouvimos com ideia preconcebida ou a partir de um ponto de vista particular. Podemos ouvir com “novos” ouvidos?
Confiança - Nós de fato confiamos na vida, ou de algum modo temos medo dela? Nossas ações podem estar baseadas no medo, tal como o medo do que alguém pensa de nós. À medida que evoluímos, as convenções da sociedade de algum modo afrouxam a pressão e a nossa moralidade individual torna-se a base de nossa vida, em vez da moralidade do mundo, que pode estar fora de harmonia com o funcionamento do universo.
Em Cartas dos Mahatmas, o mestre K. H. diz: “Um Mahatma deve obedecer ao impulso interno de sua mente sem se importar com as considerações de prudência e sagacidade da ciência mundana.” A assim chamada sabedoria do mundo pode, às vezes, não ser mais que um reflexo daquela sabedoria que pode penetrar, oriunda dos níveis mais profundos, inundada com a luz debuddhi. À medida que nos tornamos mais confiantes internamente, os temores desse tipo recuam, e nós confiamos na vida porque de algum modo confiamos em nós mesmos. Aprendemos a lidar melhor com as situações, com os nossos relacionamentos, com os fardos da vida e com as tarefas que temos no momento.
Responsabilidade - Em que nível nós verdadeiramente assumimos a responsabilidade pelo que fazemos? Se assumimos responsabilidades por nossas ações, nos tornamos mais conscientemente responsáveis pelo estado do mundo. A idéia do carma pode não ser nada mais que uma noção interessante revolvendo em nossa mente. Mas uma ação consciente do trabalho do carma na nossa vida diária resulta numa suposição consciente da responsabilidade por nossas ações.
Aspiração - Pode-se pensar na aspiração como sendo o coração da vida espiritual. Um dos significados de aspirar é buscar. Buscar sugere a procura de algo que está oculto, como uma terra não descoberta. Por exemplo, quando aspiramos pela verdade, ou a buscamos, estamos nos esforçando para além do mundano, do lugar-comum, além dos nossos limites conhecidos, em direção a um novo território.
Chegando à verdade
Os ensinamentos teosóficos sugerem que nós fracionamos a verdade por meio das divisões da mente concreta, do mesmo modo como a luz do sol é dividida quando atravessa um prisma. O microbiologista Darryl Reanney, em seu livro Music of the Mind, comenta que o nosso modo primário de expressão física, a linguagem, também fraciona a verdade.
Contudo, devemos qualificar isso, porque a linguagem também oferece oportunidades de enxergar além do mundano. Podemos ouvir ou ler palavras belas, inspiradoras, que agem como catalisadores para novos insights, novos entendimentos. A linguagem é o nosso modo primário de expressar o pensamento, e o pensamento tem muitas manifestações. Portanto, a linguagem deve dar voz àquilo que é sublime, e também aos aspectos grosseiros da mente humana. No final das contas, a verdade pode prescindir da linguagem, como ilustra uma história da tradição Zen.
O cachorro do instrutor Zen adorava as brincadeiras noturnas com seu mestre. Corria daqui para ali para pegar um pedaço de pau, depois retornava, sacudia o rabo, esperava pela próxima brincadeira. Uma noite, o instrutor convidou um dos seus estudantes mais brilhantes para ir até sua casa – um rapaz tão inteligente que ficava confuso com as aparentes contradições da doutrina budista.
“Você deve entender,” disse o instrutor, “que as palavras são apenas postes de orientação. Jamais deixe que as palavras ou os símbolos se interponham no caminho da verdade. Venha cá, eu vou lhe mostrar.” O instrutor chamou seu alegre cachorro. “Pegue a lua”, disse ele ao cachorro, e apontou para a lua cheia.
“Para onde está olhando o cachorro?”, perguntou o instrutor ao inteligente aluno. “Para o seu dedo”, respondeu o aluno. “Exatamente. Não seja como o meu cachorro. Não confunda o dedo que aponta para uma coisa com a coisa que está sendo apontada. Todas as nossas palavras são apenas sinais indicativos. Todo homem luta para, através das palavras de outro homem, encontrar a sua própria verdade.”
Darryl Reanney afirma que a sociedade de hoje confunde conhecimento, que nasce do insight, com memória, que nasce da repetição. O insight vem em seu próprio tempo, quando a mente está pronta e é capaz de transformar a informação em sabedoria. Ele assinala que a memória permite acessar a experiência sem necessariamente compreendê-la, o que explica o empobrecimento espiritual de nossa era. “O conhecimento profundo é um prêmio que pode ser conseguido viajando até as profundezas da nossa consciência e pagando o preço total em dor e paciência, exigidas daqueles que, de maneira passional, precisam conhecer.” E não serão a dor e a paciência partes integrantes da vida espiritual do aspirante? O presente que se obtém pelo conhecimento profundo é a verdade.
A busca pela harmonia que perdemos pode ser comparada à procura do ilusório pote de ouro nas extremidades do arco-íris. Consideramos isso um processo alquímico.
União complementar
A ciência demonstrou que um elétron existe como um composto paradoxal em dois estados: onda e partícula. Darryl Reanney sugere que o comportamento de um elétron pode ser uma metáfora apropriada para a união complementar do mundo da experiência interna subjetiva (estrutura de ondas) e o mundo da observação exterior (estrutura de partículas).
Segundo Reanney, o conheci-mento, em sua própria natureza, existe sob a forma de onda. A poesia é mais evocativa que a prosa porque já tem a estrutura de ondas. A música é a mais alquímica de todas as forças, já que as ressonâncias que ela estabelece “podem vibrar em sintonia com a lógica interior do universo.” O poder do mantra, por exemplo, é bem conhecido. Se nos alinharmos com uma peça musical, ressoaremos com a sua harmonia. Certas ondas musicais podem nos transportar mais facilmente aos reinos arquetípicos, à morada da verdade.
A importância do silêncio
A alquimia é descrita como uma forma medieval de química cujo objetivo principal é descobrir como transformar metais comuns em ouro. Produzir ouro é, portanto, o objetivo tradicional do alquimista. O primeiro princípio do alquimista, segundo Helena Blavatsky, é a existência de um certo “solvente universal” por meio do qual todos os corpos compostos são dissolvidos na substância homogênea da qual todos surgiram. Esse ouro puro é também chamado summa materia, ou a essência da matéria.
O desabrochar de um ser humano também requer um processo alquími-co. Blavatsky descreveu a alquimia como “a química da natureza”, e assinalou que ela possui aspectos cósmicos, humanos e terrestres. Ela comentou que a transmutação de metais inferiores em ouro é apenas um aspecto terrestre da alquimia, pois o processo alquímico possui também uma significação mais profunda. Ao recusar o ouro da terra, o “ocultista alquimista” direciona seus esforços a uma transmutação: daquilo a que os teosofistas com freqüência se referem como “quaternário inferior” em direção à tríade superior do ser humano.
Poderíamos dizer que o ouro é produzido pelo florescimento da nossa natureza mais interna. Portanto, Blavatsky dizia que a alquimia é tanto uma filosofia espiritual quanto uma ciência física. Ela equacionou o processo misterioso da transformação do chumbo em ouro com a transformação dapersonalidade em espírito puro, homogêneo. A pedra filosofal, dizia ela, nasce do espírito. Ela explica que isso é a alma (manas) e o corpo do ser humano sendo assimilado pelo espírito (buddhi). Nesse processo, eles se fundem na vida una.
É interessante que Blavatsky tenha enfatizado a assimilação do espírito ou buddhi por nós, e não a nossa assimilação pelo espírito. Isso salienta o significado do esforço individual à medida que evoluímos, tão bem expressado na terceira Proposição Fundamental de A Doutrina Secreta. Parece que a alquimia do espírito, aquela transformação total da personalidade que produz um ser humano regenerado, depende de esforço – pelo menos até um certo ponto. A qualidade, o tempo e a orientação do esforço de cada um de nós é de suprema importância e pode permitir que o processo alquímico continue exponencialmente.
Darryl Reanney tem uma outra maneira de expor isso: purificando o seu conhecimento do ruído do ego, o “você que é verdadeiramente você” pode se unir à sinfonia da criação, e a canção na qual você se tornou pode se fundir sem emendas com a música que é. Em outras palavras, purificar o nosso conhecimento, com a purificação da mente, é crucial para a nossa harmonização. Esse é um ponto fundamental em obras como Os Yoga-Sutras de Patañjali. Talvez uma maneira de purificar a mente seja aprender a permanecermos quietos.
Purificar o nosso conhecimento do ruído do ego exige que disponibilizemos oportunidades para reduzir esse ruído, se quisermos permanecer lúcidos e sãos, no mundo de hoje. Jocelyn Underhill escreveu que uma das mais lamentáveis características da vida moderna é o medo do silêncio, que permeia todas as fileiras da sociedade. Muita conversa fiada e inconsequente, afirma ela, surge do medo. Talvez o silêncio crie um aparente vazio, algo que é desconhecido e que, portanto, nós tememos.
O silêncio tem uma importância capital na vida espiritual. O que significa permanecer totalmente quieto? O corpo está aquietado; não se inquieta. As células não estão agitadas. As emoções estão em repouso e todavia a mente ainda está alerta. É interessante observar o silêncio entre pensamentos. Eles se tornam mais espaçados e podem mudar de qualidade com o passar do tempo. A própria experiência do tempo muda quando experimentamos estados internos de percepção.
O que é o silêncio? Comumente, consideramos o silêncio como a ausência de som. Mas Jocelyn Underhill afirma que “o silêncio é muito mais que a negação do som; é o próprio som”. As coisas espirituais vistas dos mundos inferiores na maioria das vezes apresentam-se como paradoxos. Por isso podem não ser facilmente assimiláveis, e às vezes requerem um salto de fé antes que possam ser verdadeiramente conhecidas.
A noção do silêncio como som está bem exemplificada no maravilhoso clássico teosófico A Voz do Silêncio. Helen Zahara sugere que essa voz assume diferentes formas, dependendo do nosso estado de consciência: “Às vezes sentimos uma compulsão interna ou orientação para tomar uma atitude particular. Para muitos, essa não é uma idéia estranha. A questão é se o impulso é um genuíno impulso espiritual. Precisamos saber se nossos desejos emocionais ou nossos pensamentos são influenciados por nós. Para isso, o discernimento precisa ser desenvolvido. A chave aqui é examinar nossos motivos.”
A consciência é outro tipo de voz interior que determina a extensão da nossa moralidade. A verdadeira consciência provém dos reinos do espírito. Mas o que achamos ser consciência pode ter uma origem externa, produzida pela sociedade.
Às vezes um pensamento estranho aparece na mente, quase como uma voz se expressando. Mais uma vez precisamos determinar a sua fonte para saber se é uma manifestação da “voz do silêncio”.
Ao longo da história, místicos e visionários relataram que foram inspirados por uma voz interior. O estado místico parece ser de grande iluminação interior, um fluxo de luz e de alegria, uma tremenda sensação de unidade. Esse estado de consciência tem a sua própria voz; todavia, as tentativas de descrevê-la representam, quando muito, uma aproximação da realidade.
Não é preciso temer o silêncio. Pode ser um grande conforto levar até ele todo o alcance de nossas experiências – as dores mais profundas, os nobres pensamentos e assim por diante, até atingirmos as nossas mais elevadas aspirações. Podemos criar espaço para o silêncio, permitir que ele paire sobre as águas profundas da alma?
O silêncio não precisa ser confinado a momentos de meditação, e isso é algo que nós podemos experienciar. O que acontece nos momentos em que não podemos nos retirar para o silêncio físico? Talvez o segredo seja permitir que os ruídos fluam através de nós, em vez de enfrentá-los com resistência. Desse modo, a harmonia não é perturbada.
Os aborígines australianos usam o termo “versos de uma canção” para descrever “o padrão entremeado de trilhas de tempo que riscam a paisagem de sua terra.” Darryl Reanney refere-se aos versos de uma canção como “a totalidade do conhecimento sobre o tempo.” Em resposta à pergunta “quem sou eu?”, ele responde: “Somos os versos da canção de nossas vidas.” Ele comenta que se os versos da canção de sua vida estiverem desafinados com o coro da criação, eles não podem se tornar parte do universo, a canção única, a música que compõe o mundo ou o somatório harmônico de tudo o que é. No curso da evolução, os sons dissonantes eventualmente vão se mesclar com esse vasto mar de harmonia, a Música das Esferas.
Qual é então, o nosso desafio? Nós, que participamos da orquestra da vida, estamos de algum modo tentando tocar novamente aquele acorde perdido. Precisamos decidir no fundo como agir de acordo com os desígnios da natureza enquanto expressamos uma gama única de notas que marcam a nossa própria individualidade.
Como sabermos o modo de agir? Uma afirmação profunda é feita em Luz no Caminho:“Ouvir a voz do silêncio é compreender que do interior vem a única orientação verdadeira. Assim, o ouro que resulta da alquimia do espírito, nascido no silêncio, pode nos transformar radicalmente. As partículas das nossas observações objetivas do dia-a-dia são então transmutadas nas ondas do nosso mundo interior e subjetivo de experiências. Esta é a verdadeira regeneração.”
Finalmente, tenhamos em mente as palavras de Jocelyn Underhill: “Para o ouvido espiritualmente treinado sempre há música aguardando para ser ouvida, e esse som insonoro eleva-se e segue adiante até que se une com a palpitação do eterno mar e o claro chamado das estrelas, sendo ambos acordes pertencentes à grande melodia das vozes dos anjos de Deus e dos filhos da manhã, a música que preenche o cosmo com uma harmonia eterna e divina.”
Vontade espiritual
Helen Zahara citou uma definição de C.W. Leadbeater: “A voz do silêncio para qualquer pessoa é aquela que vem da parte de si mesma que é mais elevada do que sua consciência normal pode alcançar.” Portanto, é lógico e natural que essa voz se modifique à medida que o indivíduo evolui. Essas mudanças podem ser consideradas como três estágios:
1. Para aqueles que têm o foco da consciência na personalidade, essa voz poderia se originar nos aspectos mais sutis da mente, onde há uma qualidade de compreensão conceitual e sintetizadora.
2. Para indivíduos mais sensíveis, poderia ser a voz de buddhi, que provê uma compreensão iluminada.
3. Eventualmente essa voz pode vir do nível de anima. Poderíamos então considerar a voz como vontade espiritual. A evolução monádica [de mônada: centelha da vida, a parte imortal do homem] iria repousar primariamente no futuro, para a humanidade.
Quando se chega ao adeptado, não há dúvida de que ainda há expressões mais sutis dessa voz. De acordo com os ensinamentos da sabedoria, esta originalmente começou com a Palavra ou o Grande Alento, que vibrou através do espaço no início do universo e através de sete grandes campos de consciência. Se o universo consiste desses vastos campos, e se nós somos parte da vida una, então ouvir essa voz ou som significa certamente despertar em cada um desses níveis. Como diz a Voz do Silêncio, “antes de colocares teu pé no degrau mais elevado da escada, a escada dos sons místicos, tens de ouvir a voz do teu deus interno de sete maneiras.” Essas sete maneiras são às vezes equacionadas com vibrações desses sete campos ou domínios, mas podem também ter outras conotações.
Por Linda Oliveira
Fonte:
http://www.sociedadeteosofica.org.br/artigos.asp?item=734&idioma=
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
Época de Pastores (Antroposofia)
A Bíblia nos relata que na noite santa chegam para admirar o menino Deus os pastores do campo e os anjos do Senhor. Ambos declaram a fórmula específica que acompanha este nascimento: “revelado seja o Deus nas alturas e paz na Terra aos seres humanos que têm boa vontade”.
Para conseguir que algo maior nasça dentro de nós, não precisamos de conhecimento. Só é necessário boa vontade para conseguir “paz na terra”, ou seja, confraternização e respeito entre os homens e em relação as outras criaturas vivas do planeta.
Quando o homem decide por si mesmo que vai atuar com bom senso e boa vontade, espalhando paz na terra, os seres superiores, os anjos, assintem-no, fortalecendo essa decisão. Para fazer brotar esse Eu superior é necessária , principalmente, a qualidade do coração quente, sensível, como a dos pastores que se dirigem ao estábulo para contemplar e cumprimentar a chegada do Mestre.
Mas como não basta só ter boa vontade para caminhar pelo mundo, precisamos também de sabedoria e conhecimento, para fundir ao coração sensibilizado. Senão o caminho se torna enganoso e perigoso. É a chegada, em 6 de janeiro, dos reis magos, dos homens de sabedoria, que representa essa união entre a intuição pura dos pastores e o conhecimento secular. Representa também o fim do ciclo, que se esgotou, representado pela meta dos dez mandamentos, em um novo, onde a única lei é “amem aos outros como a si mesmo”.
Quem começa a caminhar em dezembro de cada ano desta forma, vai andar o maravilhoso percurso da transformação do conhecimento e da sabedoria na capacidade de amar sempre mais, até que a paz se estabeleça na terra. Também vai poder transformar o condicionamento do dez mandamentos: “não pode... não deve..."na capacidade de poder ser livre para realizar o que for necessário ser realizado.
Este é o caminho da digna liberdade de agir a partir da própria força, longe das amarras do condicionamento religioso e social e consciente da própria responsabilidade. Dos atos de cada um, e unicamente deles, virão as consequências dos erros e dos acertos na caminhada anual.
Texto de Evelyn Scheven
Do livro O Caminho Do Cristo
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Mas...
"... Gastamos mais, mas temos menos, compramos mais, mas desfrutamos menos.
Temos casas maiores e famílias menores, mais conforto e menos tempo.
Temos mais graduações acadêmicas, mas menos sentimentos comuns, maior conhecimento, mas menor capacidade de julgamento, mais peritos, mas mais problemas, melhor medicina, mas menos bem-estar.
Bebemos demasiado, fumamos demasiado, desperdiçamos demasiado, rimos muito pouco.
Movemo-nos muito rápido, nos irritamos demasiado, mantemo-nos muito tempo acordados, amanhecemos cansados, lemos muito pouco, vemos televisão demais e oramos raramente.
Multiplicamos o nosso patrimônio, mas reduzimos os nossos valores.
Falamos demasiado, amamos demasiado pouco e odiamos muito frequentemente.
Aprendemos a ganhar a vida, mas não a vivê-la.
Adicionamos anos às nossas vidas, não vida aos nossos anos.
Conseguimos ir à lua e voltar, mas temos dificuldade em cruzar a rua para conhecer um novo vizinho.
Conquistamos o espaço exterior, mas não o interior.
Temos feito grandes coisas, mas nem por isso melhores.
Limpamos o ar, mas contaminamos a nossa alma.
Conquistamos o átomo, mas não nos libertamos dos nossos preconceitos.
Escrevemos mais, mas aprendemos menos..
Planejamos mais, mas desfrutamos menos..
Aprendemos a apressar-nos, mas não a esperar.
Produzimos computadores que podem processar maior informação e difundi-la, mas nos comunicamos cada vez menos e menos.
Estamos no tempo das comidas rápidas e digestões lentas, de homens de grande estatura e de pequeno caráter, de enormes ganhos econômicos e relações humanas superficiais.
Hoje em dia, há dois ordenados, mas mais divórcios, casas mais luxuosas, mas lares desfeitos.
São tempos de viagens rápidas, fraldas descartáveis, moral descartável, encontros de uma noite, corpos obesos, e pílulas que fazem tudo, desde alegrar e acalmar, até matar.
São tempos em que há muito na mostra e muito pouco no armazém.
Tempos em que a tecnologia pode fazer-te chegar esta carta, e em que tu podes optar por partilhar estas reflexões ou simplesmente excluí-las.
Lembra-te de passar algum tempo com os teus entes queridos, porque eles não estarão aqui para sempre.
Lembra-te de ser amável com quem agora te admira, porque essa pessoa crescerá muito rapidamente e se afastará de ti.
Lembra-te de abraçar quem está perto de ti, porque esse é o único tesouro que podes dar com o coração, sem que te custe nem um centavo.
Lembra-te de dizer "eu te amo" ao teu companheiro(a) e aos teus seres queridos, mas, sobretudo, di-lo com sinceridade.
Um beijo e um abraço podem curar uma ferida, quando se dão com toda a alma.
Dedica tempo para amar e para conversar, e partilha as tuas ideias mais apreciadas.
E nunca esqueças: 'A vida não se mede pelo número de vezes que respiramos, mas pelos extraordinários momentos que passamos juntos'."
Por George Carlin
Comediante e Filósofo
sábado, 27 de outubro de 2012
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Como?
Perguntaste como me tornei louco.
Aconteceu assim:
Um dia,
muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo
e notei
que todas as minhas máscaras
tinham sido roubadas
– as sete máscaras que eu havia confeccionado
e usado em sete vidas –
e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando:
“Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim
e alguns correram para casa,
com medo de mim.
E quando cheguei à praça do mercado,
um garoto trepado no telhado de uma casa gritou:
“É um louco!”
Olhei para cima, para vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez,
o sol beijava minha face nua,
e minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras.
E, como num transe, gritei:
“Benditos, benditos os ladrões
que roubaram minhas máscaras!”
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade
como segurança em minha loucura:
a liberdade da solidão
e a segurança de não ser compreendido,
pois aquele que nos compreende,
escraviza alguma coisa em nós.
Gibran Khalil Gibran
domingo, 7 de outubro de 2012
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Meditação: A Mente Humana x O Cérebro Humano
Inicialmente, é importante diferenciar a mente do cérebro. Aqui temos duas coisas distintas, que trabalham em conjunto, pelo menos enquanto a consciência do homem está somente vinculada aos sentidos correspondentes ao mundo tridimensional.
O cérebro não é mente e tão pouco a mente está no cérebro. Ambos podem ser separados sem nenhum prejuízo para os dois, e isso é perfeitamente possível de se comprovar nas experiências extra-corporais conscientes.
Cérebro é apenas um instrumento, o mais sensível e complexo do organismo para a veiculação ou expressão da matéria mental (Manas).
Em diferentes experiências relacionadas ao esoterismo, uma pessoa pode pensar e sentir-se livre do cérebro físico, e experimentar uma sensação de total liberdade e expansão; seus pensamentos ficam mais claros, sua compreensão por vezes, é instantânea, e seus sentimentos, mais puros e elevados.
Isso prova, aliás, sobre as ilimitadas possibilidades inimagináveis ao homem comum, pois suas emoções também continuam existindo, junto com seu pensamentos, fora do corpo físico.
Apesar disso tudo, isto é, apesar de todas essas potencialidades latentes, estamos ainda longe de alcançar o objetivo da meditação, e, o objetivo final, só estará ao nosso alcance quando vencermos a maior de todas as nossas dificuldades - nossa própria mente!
Sem dúvida, é graças à mente humana que o homem conseguiu chegar ao atual estágio tecnológico. Avanços gigantescos foram realizados pela ciência e muitos desses avanços foram direcionados para benefícios em prol da humanidade em geral.
Entretanto, é essa mesma mente a responsável pela destruição, pela morte, pela fome, pela miséria e desgraça de tantas pessoas.
Como é possível existirem tantos paradoxos em torno disso?
A resposta é simples: a mente, quando dominada e purificada, torna-se o maior meio pelo qual a Divindade pode se fazer presente entre os homens. Por outro lado, a mente, quando escrava das paixões, dos desejos e vícios, é a natureza do mal, só que com o poder de afetar até mesmo os destinos desse Planeta.
A mente é uma máquina desconhecida e completamente descontrolada; logo, é muito perigosa. Muitas vezes, uma frase como essa chega a ferir a susceptibilidade das pessoas, pois ninguém admite possuir uma mente sem controle. Admitir essa realidade, é admitir que não se tem controle sobre si mesmo, que não se conhece a si próprio e que se é um perigo; pois, no nosso estado atual, é bastante difícil diferenciar nossos pensamentos daquilo que somos em essência.
Não importando a maneira pela qual nossa mente atua, seremos sempre a extensão de nossos pensamentos, uma consequência de nossos processos mentais; por isso, não poderíamos ser diferentes do que somos hoje.
Mas, se ainda assim alguma pessoa discorda dessas colocações, e acha desnecessário ou perda de tempo insistirmos na importância da meditação ou na exploração e desenvolvimento da mente, podemos, então, questionar:
Alguém é capaz de prever com qual tipo de pensamento sua mente estará entretida nos próximos segundos ou minutos?
Alguém pode, segundo sua vontade pessoal, colocar em sua mente esse ou aquele tipo de pensamento durante horas, afastando todos os outros pensamentos inoportunos?
Alguém pode esvaziar completamente sua mente durante horas, dando lugar a uma nova realidade, situada além dos processos mentais?
Pois bem! Essa pessoa estará absolutamente certa ao afirmar que, para ela, já não é mais necessário tanta dissertação, pois isso pertence ao passado. Nós não temos controle sobre nossa mente, somos joguetes, folhas a balançar ao sabor do vendaval das emoções, ou ao sabor das tempestades de ira, luxúria, cobiça, etc.
Controlar uma máquina é ter domínio sobre ela; desligá-la e ligá-la quando necessário; modificar sua velocidade, otimizá-la e direcioná-la para objetivos determinados. É isso o que precisamos aprender a fazer com nossa mente.
É possível? Obviamente!
Não foi por acaso a vinda de tantos iluminados verdadeiros ao nosso planeta. De Zoroastro, passando por Jesus, até, mais recentemente, Krishnamurti e Samael Aun Weor. Todos afirmaram sempre o mesmo: Homem, conheça-te, domina-te a ti mesmo. Todos o fizeram, em maior ou menor grau. E, quanto maior foi o grande auto-conhecimento e auto-domínio desses seres de luz, mais abrangente foi a mensagem e maior a luz projetada sobre a humanidade.
Extraído e adaptado do Curso de Meditação da Gnose
O que é Meditação?
Boa pergunta. Não há resumo de descrições, teorias, manuais, textos ou idéias sobre isso. Existem centenas de escolas de meditação que incluem orações, reflexões, devoção, visualização e uma grande quantidade de modos para acalmar e focalizar amente.
A meditação perceptiva (bem como outras disciplinas semelhantes) busca, em especial, levar a compreensão para a mente e o coração.
Começa com um treino de consciência e um processo de exame interior.
A partir desse ponto de vista, perguntar "O que é meditação?" seria o mesmo que perguntar "Que é a mente?" ou "Quem sou eu?" ou "Que significa estar vivo ou ser livre?" - perguntas a respeito da natureza fundamental da vida e da morte.
Devemos responder a essas questões dentro de nossa própria experiência, através de um descobrimento interno.
Este é o núcleo, o coração, a essência da meditação.
À medida em que levamos a graça e a harmonia da virtude para dentro de nossa vida interior, também podemos começar a estabelecer uma ordem exterior, um senso de paz e clareza.
Este é o domínio da meditação formal e isto começa treinando-se o coração e a mente na concentração.
Significa serenar a mente e juntar a mente e o corpo, focalizando nossa atenção sobre nossa experiência no momento presente.
A habilidade de concentrar e estabilizar a mente é a base de todos os tipos de meditação e é, na verdade, uma habilidade básica para qualquer empreendimento ou esforço, seja para as artes, o atletismo, para a programação de computadores ou para o autoconhecimento.
Na meditação, o desenvolvimento do poder da concentração surge através do treino sistemático e pode ser feito usando-se uma série de meios, entre os quais:
- a respiração,
- a visualização,
- um mantra ou
- um sentimento especial como a gentileza amorosa.
Jack Kornfield, Buscando a Essência da Sabedoria, uma máxima antiga encontrada no Dhammapada resume a prática do ensinamento do Buda em três simples princípios de treinamento:
- abster-se de todo o mal,
- cultivar o bem e
- purificar a própria mente.
Esses três princípios formam uma sequência gradual de estágios, progredindo do externo e preparatório para o interno e essencial.
Cada estágio leva naturalmente em direção ao outro que o segue, e a culminação dos três na purificação da mente torna claro que o coração da prática budista é encontrado aqui.
Purificação da mente como entendido no ensinamento do Buda é o esforço contínuo em limpar a mente das impurezas, aquelas forças obscuras e não-saudáveis que correm por baixo do fluxo superficial da consciência, viciando nossos pensamentos, valores, atitudes e ações. Dentre as impurezas, destacam-se três, as quais o Buda descreve como "raízes do mal" - cobiça, ódio e ilusão - a partir das quais emergem numerosas derivadas e variantes, como raiva e crueldade, avareza e inveja, comparação com os outros e arrogância, hipocrisia e vaidade, e uma multiplicidade de visões errôneas.
O trabalho de purificação deve se edificar no mesmo lugar onde as impurezas surgem, ou seja, na própria mente, e o principal método para a purificação da mente oferecido pelo Dharma é a meditação.
Meditação, no treinamento budista, não é nem uma jornada para êxtases auto-efusivos, nem uma técnica caseira de psicoterapia, mas um cuidadoso e elaborado método de desenvolvimento mental - preciso e eficiente na prática - para alcançar a pureza interna e a liberdade espiritual.
Bhikkhu Bodhi, A Purificação da Mente
domingo, 16 de setembro de 2012
domingo, 26 de agosto de 2012
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
Compreensão: Convergência entre o Saber e o Ser
"Nenhuma época acumulou sobre o ser humano conhecimentos tão numerosos e tão diversos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do ser humano sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o ser humano."
Martin Heidegger
Eis um aspecto desafiador e paradoxal da crise contemporânea: a existência de uma hipertrofia de informações e de conhecimentos, de acesso amplo, irrestrito e imediato, ao mesmo tempo em que sofremos de uma atrofia do processo de discernimento e de compreensão. Como bem denuncia Heidegger, nunca estivemos tão alienados com relação à queso humana.
Sobre a compreensão da realidade, Basarab Nicolescu inicia o seu livro, Qu’est-ce que la réalité?, de forma contundente: “A palavra ‘realidade’ é uma das mais prostituídas de todas as línguas do mundo. Todas as pessoas acreditam saber o que é a realidade mas, quando nos interrogamos, descobrimos que há tantas concepções desta palavra quantos são os habitantes da terra. Assim, não é surpreendente que os inumeráveis conflitos agitam, sem cessar, os indivíduos e os povos: realidade contra realidade. Nestas condições, é por algum tipo de milagre que a humanidade ainda existe (...). Todavia, a tripla revolução que atravessou o século XX – a revolução quântica, a revolução biológica e a revolução informática – deveria mudar, em profundidade, nossa visão da realidade.”
Necessitamos, portanto, refletir sobre o que nos impede de atualizar nossos referenciais e o que pode nos abrir ao universo possível de uma compreensão intrapessoal e interpessoal, subjetiva e intersubjetiva, no âmbito de uma ecologia trinitária: individual, social e planetária.
Entre os obstáculos exteriores à compreensão intelectual, Edgar Morin aponta para a existência do “ruído”, a falta de entendimento causada pela polissemia dos conceitos, a ignorância dos ritos, hábitos, valores e imperativos éticos alheios, a incompatibilidade de visão de mundo e a desigualdade das estruturas mentais. Quanto às dificuldades de ordem interna, Morin indica o egocentrismo, o etnocentrismo e o sociocentrismo. Talvez possamos ampliar estas lúcidas considerações afirmando a existência de um mega-fator impeditivo da compreensão, que consiste no que Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e este autor denominamos de normose, uma patologia da normalidade.
O obstáculo da normose
Pierre Weil conceitua a normose como anomalias da normalidade conformadas de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar e de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte.
Para contextualizar, refletirei sobre a existência de três fundamentos da normose. O primeiro é o sistêmico: esta patologia da mediocridade surge quando o sistema onde vivemos encontra-se, dominantemente desequilibrado, mórbido e corrompido; quando o que predomina são contradições ou sintomas como o da falta de escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, bem como a alarmante e crescente violência contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa “normal”, ou melhor, normótica, é aquela ajustada ao sistema enfermo e que contribui para a manutenção do status quo. Sabemos, pela própria carta constitutiva da Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas e, sim, a presença de um estado de pleno bem-estar somático, psíquico e social. Posteriormente foi acrescentado o fator ambiental e o espiritual. O que significa que, quando um sistema encontra-se, em grande medida, num estado patológico, a pessoa saudável é a que manifesta um estado de desajustamento consciente, uma indignação lúcida e, até mesmo, um desespero sóbrio.
O segundo fundamento é o evolutivo, que parte do princípio do inacabamento do humano, como afirmava Paulo Freire. É o que podemos traduzir afirmando que não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático no potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível. Falando de outro modo, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade na qualidade evolutiva do planeta, que se traduz pela evolução consciente e intencional. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas aleatórias e dos combates entre os mais aptos, da seleção natural darwiniana, a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um trabalho sobre si mesmo em trilhas evolutivas de individuação. Como afirmava Teilhard de Chardin, as coisas não são aparecidas no Universo: elas são nascidas, tendo gestação e evolução, sendo que certas direções evolutivas privilegiadas levam à novidade, ao salto qualitativo do evento. Para este pioneiro do estudo da complexidade, os dois grandes eventos universais consistiram na passagem da pré-vida para a vida e desta para o pensamento. Enfim, do fantástico aumento de complexidade surge o Ser Humano e sua consciência reflexa, o pensamento. Esta nova qualidade de uma evolução consciente e intencional, característica do humano, é sustentada pelas cartografias contemporâneas da abordagem integral da consciência, a exemplo da pesquisa de Maslow, de Rogers, de Jung, de Grof e de Wilber, para citar alguns poucos representantes do movimento humanístico e transpessoal da ciência psíquica de ponta.
Morin, que postula um aspecto meta-natural do humano, afirma que a hominização nos conduziu a um novo início: o hominídeo humaniza-se e, assim, o conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-sócio-cultural, ligados dialeticamente. Nas suas palavras: “Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade”. Neste sentido, a normose se caracteriza pela falta de investimento no potencial psíquico, ético e noético, representando um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.
O terceiro fundamento é o paradigmático, falando no sentido mais amplo que Thomas Kuhn imprimiu a este conceito. Neste caso, a normose surge quando um paradigma, embora já esgotado no seu potencial criativo e, em algum grau, esclerosado, ainda prevalece, com relação a outro emergente, postulado por um grupo minoritário. Como afirmava Max Planck, segundo Kuhn “Uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela”. Felizmente, existem exemplos de cientistas, filósofos e de grandes pensadores – Edgar Morin representa um ícone desta possibilidade, com a sua vasta obra, que ousa uma reconfiguração dos saberes -, capazes de uma abertura destemida para o novo, com a prudência lúcida de preservar o positivo do antigo. Trata-se da nobreza indicada por esta paradoxal e feliz expressão de Henry Thoreau, a maioria de um!...
Por outro lado, o conceito de normose encontra-se em ressonância com algumas reflexões de Morin, sobre os sete saberes, sobretudo quando, ao analisar as cegueiras do conhecimento, ele fala sobre a força normalizadora do dogma e a proibitiva do tabu, bem como sobre o determinismo de convicções e de crenças e os conformismos cognitivos e intelectuais, que podemos designar como uma normose cognitiva da normalização. Da mesma forma, Morin se refere ao imprinting cultural como uma marca matricial, que estabelece um tipo de conformismo incontestável, que podemos considerar como uma normose do imprinting cultural.
Por ocasião do Encuentro Holístico Internacional, em Mendonza, travei contato com Manfred Max-Neef, Prêmio Nobel alternativo de economia. Na sua conferência, este célebre cientista afirmou que, desde muito cedo, se questionava sobre o que seria a característica singular da espécie humana. A cultura, a inteligência, a linguagem?... Não, pois outras espécies também as desenvolvem. Seria o humor? No seu encontro com outro cientista, Nobel da etologia, Konrad Lorenz, ele soube que não: há outras espécies bem humoradas. Assim, ele prosseguiu com esta indagação até um momento inesperado, no qual o seu pai, um homem por quem ele nutria um grande respeito, lhe indagou: - Meu filho, não será a estupidez?
Max-Neef afirmou que, nesse instante, uma luz se fez e ele se tornou o primeiro estupidólogo! A estupidologia é uma ciência que precisa ser estudada com rigor e urgência. É importante esclarecer que ela se diferencia da inofensiva imbecilidade, por se revestir de racionalidade lógica, sendo exercida, principalmente, através de uma linguagem técnica. A devastação suicida do ecossistema planetário, por exemplo, pode ser justificada ou racionalizada estupidamente, através de uma lógica desenvolvimentista. Eis uma imagem que pode ser uma metáfora desta atitude tão em voga: um homem serrando um galho da árvore – com um elegante discurso sobre o progresso, bem fundamentado estatisticamente -, exatamente onde ele se encontra sentado! Outro notável Prêmio Nobel, Albert Einstein costumava afirmar que, para ele, apenas duas coisas eram infinitas: o universo e a estupidez humana. E quanto ao universo, concluía ironicamente o sábio, ele ainda não estava totalmente seguro!...
Edgar Morin se refere a esta mesma realidade, quando fala da existência de dois cretinismos. O primeiro é o de baixo, de uma cultura de massa banal e de uma mídia alienada, que o mundo universitário, segundo o autor, gosta muito de denunciar. Entretanto, de acordo com Morin, há também uma cretinice do alto, pela qual ele sente uma particular repugnância, própria de uma sub-cultura oficial e intelectual, certo obscurantismo racionalizado, caracterizada pela ignorância e julgamentos a priori, com estereótipos, conformismos e arrogantes idéias convencionais, o que podemos denominar da normose do cientificismo.
Considero a estupidez, assim como a agressão passiva, traduzida pela indiferença dos que não se importam com o bem comum e pela causa humana - que Mahatma Gandhi considerava pior e mais destrutiva do que a violência ativa -, duas características das mais importantes desta doença, insidiosa e trágica, que denominamos de normose.
Como afirma Basarab Nicolescu, três e trans possuem uma mesma raiz etimológica, sendo que o três significa a transgressão do dois, assim como a transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade binária, rumo a uma pluralidade complexa e a uma unidade aberta, duas faces de uma mesma realidade. Adotando o nosso conceito, Nicolescu afirmou, num congresso em Strasbourg, que é preciso ir além da normose do binário.
Enfim, para logramos o que Morin denomina de ética da compreensão – centrada na solidariedade intelectual e moral, a serviço do gênero humano -, necessitamos transgredir a normose, que se encontra nos fundamentos da crise civilizacional contemporânea.
As funções psíquicas
De acordo com a vasta pesquisa do psiquiatra Carl Gustav Jung, há quatro funções psíquicas, inerentes ao ser humano: a do pensamento, a do sentimento, a da sensação e a da intuição. Não é difícil constatar que o diálogo entre o pensamento (racionalismo) e a sensação (empirismo) deu origem à ciência contemporânea. Assim como da aliança da sensação com a intuição deriva a arte; do pensamento com a intuição, a filosofia e do sentimento com a intuição, a mística, da Tradição sapiencial. Assim, quanto ao fundamento individual, os conhecidos quatro fragmentos clássicos epistemológicos surgem da dinâmica criativa de nossas funções psíquicas.
De forma geral, o indivíduo apenas desenvolve uma ou duas destas funções, sendo que as demais permanecem atrofiadas e indiferenciadas. O desenvolvimento das funções deficitárias e a sua integração e harmonização com as demais conduz, segundo Jung, a uma quinta função, que ele denominou de Self, uma inteligência da totalidade psíquica. O enfoque pioneiro junguiano postula, além da mera cura, um processo de individuaçãoque possa conduzir o indivíduo, através de uma via interior e num movimento de circunvolução, da periferia do ego para a centralidade do Self, que é a instância psíquica de onde emana a real compreensão.
Na teoria fundamental da Universidade Internacional da Paz, UNIPAZ, desde o seu evento deflagrador, o I Congresso Holístico Internacional - I CHI, que realizamos em Brasília (1987), esta concepção das funções psíquicas nos orientou, encontrando-se, também, no cerne de nosso consagrado projeto transdisciplinar, com mais de vinte anos de fecunda prática, da Formação Holística de Base – FHB.
Como constata o próprio Morin, não necessitamos pregar a paz, já que todos sabem da sua importância como o único caminho para evitarmos os horrores da guerra. O que realmente urge é uma pedagogia da compreensão humana. Em última instância, educar para a paz é educar para a compreensão. Como? Deparamo-nos, aqui, com a necessidade de uma educação integral, que concilie a dimensão do saber com a do ser.
Falando de outro modo, a compreensão é uma expressão natural da convergência do saber com o ser. Não compreendemos apenas com o saber e nem apenas com o ser. Eis uma aliança perdida, que necessitamos resgatar. Como afirma Ubiratan D’Ambrosio, trata-se de evoluir da arrogância do saber para a humildade da busca. A autêntica busca solicita a elegância da douta ignorância do não saber. Saber não saber, eis a questão! A arte transdisciplinar consiste no equilibrar o saber com o não saber, o aprender com o desaprender, o adquirir conhecimentos com o esvaziar-se do conhecido, o pensar com o não pensar, a reflexão com a contemplação, a palavra com o silêncio...
O paradigma cartesiano do racionalismo científico, que se caracteriza, segundo Morin, pela disjunção, redução e abstração, centrado exclusivamente no saber, foi muito competente para desenvolver uma sofisticada tecnociência que se encontra, infelizmente, desconectada do hemisfério do ser, de onde emanam os valores de uma ética essencial. E sabemos muito bem as conseqüências de uma tecnologia poderosa e desorientada, da ciência sem consciência, da efetividade sem afetividade. Este é o imenso valor de um documento de base da própria UNESCO (1992) que propõe, sustentada na pesquisa e no relatório de Jacques Delors, os quatro pilares de uma nova educação transdisciplinar: educar para conhecer, educar para fazer, educar para conviver e educar para ser. Com os modelos pedagógicos convencionais, de modo fragmentado, temos educado apenas para o conhecer e para o fazer. O imenso e estimulante desafio, que tem a ver diretamente com a questão da compreensão, é educar para conviver – viver consigo, com o outro, com os outros, com a natureza – e, sobretudo, educar para ser.
Holologia e Holopráxis
A célebre Declaração de Veneza (1986), documento redefinidor que resultou de um colóquio organizado pela UNESCO, centrada no tema, A ciência face aos confins do conhecimento: o prólogo de nosso passado cultural, no seu segundo artigo afirma: “O conhecimento científico, por seu próprio movimento interno, chegou aos confins, onde pode começar o diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência e a Tradição, constatamos não a sua oposição, mas a sua complementaridade. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade, até de um novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva metafísica”.
Apontando para esta mesma direção, Morin postula uma racionalidade autocrítica e aberta, capaz de integrar aspectos do que outras culturas não européias desenvolveram e que foram atrofiados no Ocidente, de modo a reparar o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo” e o consumismo. Mas também salvaguardar, regenerar e disseminar o melhor da cultura ocidental: a democracia, a proteção individual e os direitos humanos.
Pierre Weil, para fazer frente a esta lúcida convocação, desenvolveu dois conceitos complementares, que são fundamentais nesta tarefa premente de integrar o hemisfério do saber ao do ser: o de holologia e o de holopráxis. Holologia refere-se à via racional, de estudo, reflexão crítica e de experimentação do paradigma holístico, destinado à dimensão do saber, enquanto a holopráxis consiste no caminho vivencial, de despertar para a visão holística, através de práticas provenientes das Tradições sapienciais, do Oriente e do Ocidente, visando à dimensão do ser.
Apresentamos a integração destas duas vias complementares já no citado I CHI. A holologia, através das conferências, simpósios e sessões de temas livres. A holopráxis, através de espaços vivenciais, facilitados por representantes de diversas Tradições ocidentais e orientais. Da mesma forma, estes dois métodos encontram-se presentes na FHB e em todos os programas e projetos da UNIPAZ, pois é o seu exercício conjugado que abre caminho para a compreensão humana que, por sua vez, é a via direta para a paz.
Método analítico e sintético
Para a elucidação do processo da compreensão, considero imprescindível um aprofundamento na reflexão metodológica envolvida. O que me remete a uma pesquisa, que desenvolvo há mais de duas décadas, no contexto clínico e educacional, sobre a sinergia de dois caminhos de apreensão da realidade: o da análise e o da síntese.
Todos nós, ocidentais, fomos condicionados para a análise, já que o método analítico encontra-se no cerne do paradigma da modernidade, que representou um resgate necessário, compensatório e iluminista, da razão crítica, cuja grande contribuição, no século XVII, foi a de ter evidenciado a consciência dual de diferenciação.
Esboçando um breve resumo, o método analítico é um importante fruto do racionalismo científico, que se ergueu como saudável e necessária resposta ao momento decadente de um indiferenciado obscurantismo medieval, que fazia uma simbiose perversa entre religião e ciência, sob a tirania da Inquisição. Focaliza a parte, buscando as unidades constitutivas, atuando como eficiente bisturi retalhador de totalidades. Diz respeito ao conceito grego de diabolos, o que divide. Gerou o enfoque disciplinar de onde é modelado o especialista, caracterizado pela tendência reducionista e unilateralidade de visão e de ação. A sua base é somática, substancialista. Fundamenta-se nas funções psíquicas do pensamento e da sensação. Sustentado na física mecânica, inclinou-se para um enfoque mecanicista e o seu realismo clássico, que destaca a continuidade, a simplicidade, a causalidade local e a objetividade. Caracteriza-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação matemática. Conforma a base da identidade egóica, de cunho pessoal. Parte da lógica linear da causalidade local, prescrevendo a existência de leis necessárias e gerais, que engendram o determinismo, com pretensão de controle e de previsibilidade. Veste o aparamento sofisticado da exatidão. É progressivo e acumulativo. Parte de uma atitude básica extrovertida, afirmando-se como excelente instrumento de estudo e de exploração do espaço exterior. Tem como meta ideal a objetividade e a isenção valorativa, excluindo o sujeito do campo da ciência. Sua vocação é experimental: seu produto típico é gerado em laboratórios sofisticados com manipulação impecável de variáveis. Seu substrato metafórico neurofisiológico – levando em conta a interconexão cerebral – é o hemisfério dominante, geralmente o esquerdo, da racionalidade, predição e também da angústia humana. Caracteriza a mentalidade típica do ocidental. Postula uma função explicativa: objetiva explicar ativamente o universo. Denominamos de analista ao agente deste método clássico.
Após o grande avanço do Iluminismo do século XVIII, este método iniciou a dar mostras de um esgotamento e de insuficiência, tornando-se fonte de cada vez mais visíveis contradições. Como afirmou Ken Wilber o que era consciência de diferenciação e espírito científico no século XVII degenerou-se, no século XIX, em dissociação e cientificismo. Esta via, trilhada exclusivamente, nos conduziu ao que denomino de uma síndrome de analisicismo, caracterizada por sintomas como os da fragmentação, dissociação, desvinculação, perda de valores fundamentais e de uma atrofia da subjetividade, da intersubjetividade, enfim, da própria interioridade. Como afirmava G. K. Chesterton, o pior louco é o que perdeu tudo, exceto a razão.
Coube ao gênio do filósofo alemão, Wilhelm Dilthey, no século XIX e início do XX, demonstrar a necessidade de outro método, além do analítico. Denunciando as contradições do caminho reducionista científico-natural, na sua teoria da compreensão expressiva, Dilthey fundamenta as ciências do espírito, posteriormente designadas de ciências humanas, afirmando o ser humano como uma unidade, muito além de um conglomerado de átomos. Transcendendo o positivismo, na sua proposta histórico-biográfica, Dilthey prescreve dois caminhos: o da descrição da vida e o dacompreensão da vida por si mesma. “A natureza se explica, a alma se compreende”, bradava o filósofo, afirmando a vida como um mistério insondável, suscetível de ser compreendida por si mesma, como um ritmo todo-e-parte, que pode ser vivenciado, o que desvela significados – mas não explicado. Segundo Christine Delory-Momberger, afirmando a diferença radical que constitui o sujeito humano, Dilthey desenvolveu, contra os métodos analíticos e generalizantes do positivismo sociológico, uma epistemologia fundada sobre o reconhecimento do humano pelo humano, ou seja, sobre a experiência vivida e a compreensão, sendo que o ser humano e a sociedade encontram-se numa relação de inclusão e de ação recíprocas. Tendo consolidado as bases da atual abordagem biográfica, Dilthey considerava a autobiografia como um paradigma de inteligibilidade, a forma mais elevada e instrutiva, a partir da qual se manifesta, para nós, a compreensão da vida.
Seguindo-se a contribuição singular e marcante de Dilthey, outras significativas vozes se levantaram, clamando pela síntese. Jan Smuts, no seu enfoque evolutivo, desvelou o conceito de holismo, definido como um princípio único, organizador de totalidades e criador de conjuntos, num Universo que é sintético, vital e criativo. Carl G. Jung desenvolveu uma interpretação de sonhos em nível do sujeito, denominando-a sintética. Roberto Assagioli desenvolveu uma psicossíntese. Viktor Frankl criou a sua escola de Logoterapia, suportada numa metodologia sintética. Karlfried Graf-Durckhein fundou a terapia iniciática, prescrevendo o que denominava de exercício - uma prática meditativa, de natureza sintética -, para que a essência possa transparecer na existência. Ramon Soler fundou, na Argentina, uma Universidade de Síntese, na qual o método da síntese é também uma via de integração humana. O sábio hindu J. Krishnamurti cuja vida e obra, dedicadas absolutamente ao essencial, mereceu um significativo destaque na abordagem transversal de René Barbier, pode ser considerado um símbolo vivo de encarnação da síntese.
Resumindo, o método sintético delineou-se no final do século XIX, como uma resposta à crise de fragmentação, de dissociação, de desvinculação, enfim, de desumanização. Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, o contexto, visando o processo de vinculação e de unificação. Sua tendência é amplificadora e integrativa. Diz respeito ao conceito grego, oposto ao do diabolos, de symbolos, o fator que religa e restabelece a inteireza. Valorizando a visão inclusiva e global, encontra-se na base do ideal do generalista. É uma via qualitativa, que se indica mais por uma linguagem mitopoética e arquetípica. Fundamenta-se nas funções psíquicas do sentimento e da intuição. Parte de um espaço de indeterminismo, de liberdade e de responsabilidade. A sua base é psíquica e noética. Enfatiza a participação e a singularidade. Ocorre na instantaneidade, no salto abrupto, no insight: é não-cumulativo. Através de uma lógica da simultaneidade, abre-se para o universo aberto da sincronicidade, as coincidências significativas ou princípio de conexões acausais, da transcausalidade, de acordo com a pesquisa junguiana. Reveste-se de tecido vivo, flexível, impreciso, desapegado da exatidão. Amplia-se no aspecto descritivo e biográfico. Guia-se por uma visão introspectiva que descortina e investiga o espaço interior. Abre-se para o além do ego, para a consciência transpessoal. Sustenta-se na microfísica e no realismo quântico, caracterizado pela descontinuidade, princípio de superposição, não-separatividade, não-localidade e indeterminismo. Assume um caráter consciencial subjetivo, a intersubjetividade e os valores. Focaliza a finalidade, o significado, o sentido. Sua vocação é experiencial: seu produto típico é fruto do laboratório vibrante da vivência humana. Seu substrato metafórico neurofisiológico é o hemisfério cerebral não dominante, geralmente o direito, da gestalt, da musicalidade, da poesia e da mística. Caracteriza a mente clássica do oriental. Não se distingue do sujeito. Exerce uma função compreensiva e de comunhão participativa. Denomino de sintetista ao agente deste caminho de apreensão da realidade.
Relaciono, de forma sumária e indicativa, no esquema abaixo, as características básicas do método analítico e do método sintético:
Método Analítico
Reação ao dogmatismo e obscurantismos medieval
Ênfase na parte
Texto
A serviço da decomposição: diabolos
Funções psíquicas: pensamento e sensação
Especialista
Via quantitativa
Causalidade: determinismo
Lógica linear da sucessividade
Base somática, substancialista
Pessoal
Codificação matemática
Geral, regularidade
Progressividade, acumulação
Espaço exterior: objeto
Controle
Experimental
Macrofísica
Realismo clássico
Metáfora do hemisfério esquerdo
Mente ocidental
Função explicativa
Dois da dualidade
Holologia
Analista
Método Sintético
Reação ao positivismo e analisicismo moderno
Ênfase na totalidade
Contexto
A serviço da religação: símbolos
Funções psíquicas: sentimento e intuição
Generalista
Via qualitativa
Transcausalidade: sincronicidade
Lógica global da simultaneidade
Base psíquica e noética
Transpessoal
Codificação mitopoética, arquetípica
Singular, biográfico
Instantaneidade, não-acumulação
Espaço interior: sujeito
Participação
Experiencial
Microfísica
Realismo quântico
Metáfora do hemisfério direito
Mente oriental
Função compreensiva
Um da unidade
Holopráxis
Sintetista
Arte da integração: o três
É fundamental sublinhar que o método analítico e o sintético não se encontram na relação de antagonismo e, sim, na de complementaridade. O conceito de complementaridade advém da quântica, tendo sido proposto por Niels Bohr, para solucionar o paradoxo partícula-onda, da microfísica. O mesmo pode ser aplicado ao paradoxo metodológico análise-síntese. Uma ênfase unilateral na análise nos conduz ao reducionismo enquanto, na síntese, nos leva ao totalitarismo, extremos equivocados, que precisamos evitar. Gosto de representar o valor inestimável desta heurística sinergia metodológica com o símbolo do infinito aliando, numa dinâmica de interações constantes e paradoxais, o método analítico e o sintético:
Arthur Koestler, sustentando que parte e todo inexistem no domínio da vida, conciliou o atomismo com o holismo, através do seu conceito dehólon – onde holos se refere ao todo e on à parte – referindo-se a um sistema aberto e auto-regulável que apresenta, ao mesmo tempo, propriedades autônomas de um todo e dependentes de uma parte. No seu enfoque, o organismo é considerado como uma hierarquia multinivelar de subtodos, dotados de autonomia relativa.
O símbolo koestleriano para hólon é uma divindade da mitologia romana, Jano, que portava duas faces, voltadas em sentido contrário: uma para frente, representando o futuro e a outra mirando para trás, simbolizando o passado. Assim também cada subtodo, inserido numa escala em ordem ascendente de complexidade possui uma face do “todo”, voltada para os níveis subordinados, enquanto a outra face, voltada para o ápice, é a de uma “parte” dependente.
“Homem algum é uma ilha: cada ser humano é um hólon. Uma entidade bifronte como Jano que, olhando para o seu interior vê-se como um todo único e completo em si mesmo e, olhando para fora, vê-se como uma parte dependente. A sua tendência auto-afirmativa é a manifestação dinâmica de sua condição de todo único, da sua autonomia e independência como hólon. A tendência antagônica, também universal, que é integrativa, expressa a sua dependência do todo maior que integra a sua condição de parte”, afirma Koestler.
Falando de outro modo, há duas tendências básicas na natureza viva: uma de diferenciação e outra de fusão. A de diferenciação é auto-afirmativa, uma força centrífuga que impulsiona para a diferença, a singularidade. A de fusão é integrativa, uma força centrípeta que impulsiona ao pertencimento, à interconexão. A tarefa da saúde é a de manter um equilíbrio sinergético entre essas duas dinâmicas, já que o excesso de diferenciação conduz à patologia do individualismo excluidor e do isolamento. Enquanto o excesso de fusão determina a alienação da simbiose e do absolutismo.
Em convergência, Martin Buber afirma que o duplo movimento de separação e relação define o princípio da vida humana e que só ocorre a relação autêntica quando o outro é colocado na distância justa, para que seja possível o Eu-Tu. Caso contrário, ficamos condenados a uma relação objetal e redutora, que Buber denomina de eu-isto.
Assim, necessitamos da sinergia entre o método analítico – de diferenciação – e o sintético – de fusão. Nem um, nem dois, não mesclar, não separar: eis um princípio transdisciplinar, que solicita o três.
A riqueza do três é a de conter, em si, o um da fusão e o dois da diferenciação. Falando na metáfora do substrato neurofisiológico, o exercício salutar e sábio da integração respalda-se no corpo caloso, que liga os dois hemisférios cerebrais, o da análise e o da síntese. O que a Tradição sapiencial simboliza como a terceira visão ou o chifre do unicórnio. Por esta razão, Carl Sagan afirma que o futuro da educação depende do corpo caloso. Podemos acrescentar: também o da compreensão!
O Tao da compreensão
Lao Tsé afirmava que o alto descansa no profundo. Parodiando o sábio taoista, podemos afirmar que a síntese descansa na análise. O todo descansa na parte, o céu descansa na terra, as asas descansam nas raízes...
Na sua obra, Edgar Morin insiste muito num pensamento de Pascal, uma verdadeira pérola da visão holística: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se entrelaçando umas às outras, por um laço natural e insensível que liga as mais distantes e as mais diferentes, acho impossível conhecer as partes sem conhecer o todo; também acho impossível conhecer o todo sem conhecer as partes.
O sábio e inspirador conceito do Tao, da Tradição chinesa, indica a integração do princípio masculino Yang com o feminino Yin, numa simbólica de interpenetração dos contrários e de harmoniosa transcendência dos opostos. Podemos considerá-lo um símbolo do caminho que conduz à compreensão.
Por outro lado, uma pedagogia da compreensão solicita, de forma imperiosa, a ciência e arte da hermenêutica, sobretudo através do resgate da inteligência simbólica. Inteligência advém de 'inteligere', que significa ler dentro - das letras, dos fatos, das vivências. É esta leitura simbólica que nos permite superar a estupidez normótica de certo literalismo simplista de superfície, fonte dos fundamentalismos e fanatismos tão atuais, não apenas religiosos, mas também ideológicos, mercadológicos, pedagógicos, entre outros. É a hermenêutica que possibilita a necessária apreensão e compreensão da pluralidade de significados e sentidos inerentes a cada fenômeno, a cada crise, a cada vivência.
A capacidade de interpretar vai além do exercício analítico da explicação, incluindo a via sintética, que sonda o sutil e o interior, capaz de extrair uma polissemia de sentidos implicada em cada experiência humana. É também a interpretação que nos eleva da condição de objeto de fatos e de circunstâncias, para o estatuto de sujeito da própria existência, dotado do dom da liberdade. Não somos livres com relação ao que nos acontece; nossa liberdade consiste naquilo que fazemos com o que nos acontece, o que solicita uma arte da escuta que, além da mera audição é, também, interpretação. Um sujeito habilitado no exercício de interpretar, no sentido amplo e transdisciplinar, é também capaz de superar os mais árduos desafios existenciais. Pois a única crise destrutiva que pode ser fatal é aquela, para a qual, não conseguimos extrair nenhum sentido, pela incapacidade de escuta e de hermenêutica.
Os grandes mestres e educadores da humanidade sempre nos alertaram para o perigo do julgamento, que se encontra na fonte de tantos conflitos e dilaceramentos. A compreensão é um eficaz antídoto deste destrutivo jogo bélico de poder, pois quem compreende não julga. O julgamento é o fracasso da escuta e da compreensão.
Edgar Morin afirma, de forma lúcida e ousada, a missão espiritual da educação, na tarefa intersubjetiva de ensinar a compreensão, através das virtudes conjugadas da abertura, da simpatia e da generosidade. Trata-se de uma arte de viver com solidariedade intelectual e moral e com dialogicidade, capaz mesmo de compreender a incompreensão, sem complacência nem acusação, a serviço do homo sapiens demens, da metamorfose e da nossa comunidade de destino.
O Tao da compreensão é o da Aliança entre o saber e o ser. Uma utopia realizável, um caminho para a Paz.
Roberto Crema
*Paper da palestra centrada na compreensão, proferida na Conferência Internacional sobre os SETE SABERES PARA A EDUCAÇÃO DO PRESENTE, do Edgar Morin, ocorrido em Fortaleza, Brasil, de 21 a 24 de setembro de 2010 (UNESCO, UEC, UCB).
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