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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O Mundo Contemporâneo Por Roberto Crema






"O mundo contemporâneo vive uma crise que denomino de demolição, lição do demo. Lição da fragmentação, da dissociação e da desvinculação. Por certo, necessitamos nos aprofundar no contexto crítico planetário, para compreender o sentido do que está desabando, mas também para entrever e acolher o milagre do que está desabrochando, do que está surgindo dos escombros.
Eis uma metáfora que aprecio muito, para indicar nosso momento de transição, caracterizado pela aceleração dos processos mutacionais: a lagarta já morreu e a borboleta ainda não nasceu.
Numa brevíssima e precária resenha histórica de contextualização, voltemos nossos olhos para o momento histórico, na inquieta pensamentosfera européia, que deu início a Idade Moderna, no século XVII e que depois se desdobrou através da revolução científica. Naquela ocasião, estávamos transcendendo um paradigma esclerosado, o mesmo que transcorre atualmente. Recordo que, no sentido mais amplo, como foi concebido por Thomas Kuhn, no seu livro sobre as revoluções científicas, um paradigma não é simplesmente uma filosofia, nem uma religião, nem uma ciência, nem uma arte; é uma estrutura que gera pensamentos e, portanto, gera ideologias, filosofias, ciências, artes e místicas.

O nascimento da modernidade

O paradigma medieval, que estava decadente no século XVII, era o aristotélico-tomista, uma síntese de Aristóteles com Tomás de Aquino, que prevaleceu durante séculos, tendo tido momentos maravilhosos, como o da Patrística, o dos monastérios e o da construção das catedrais. Entretanto, naquela ocasião, esta visão do mundo estava esgotada e desabando - como no momento está desabando o paradigma da modernidade – pelo peso de suas próprias contradições. Podemos sintetizar afirmando que, nos seus momentos mais obscuros, em função do dogmatismo e de uma tirania do divino, o paradigma medieval reprimia o fator objetivo e a mente analítica crítica, em nome de alguma coisa que, confusamente, era chamada de Deus. A“santa” inquisição matou mais seres humanos, proporcionalmente, do que a II Guerra Mundial, tendo se prolongado cruelmente durante séculos, sob o jugo despótico de uma religião desconectada do Espírito, que acabou se pervertendo num terrorismo consciencial, que silenciava e assassinava os seres humanos dotados das mentes mais ilustres e brilhantes, como a do Galileu. Basta lembrar de Giordano Bruno, que foi torturado e lançado numa fogueira, apenas por ousar pensar de forma lúcida e independente.
Então, precisamos levar em consideração aqueles seres humanos traumatizados por esse obscurantismo, que conspiraram por uma nova cosmovisão. Creio ser justo um elogio aos traumatizados de todos os tempos, esses seres humanos que sentem, na própria pele, a dor de uma humanidade dilacerada, insensível e esquecida de si mesma. Os mentores da idade moderna foram seres feridos por este trauma, que levantaram suas vozes, clamando por um mundo mais saudável e justo. Surge um Galileu, que vai nos introduzir no mundo da quantidade, de uma metodologia científica, hipotético-dedutiva. Atualmente, fala-se muito em qualidade, mas durante séculos ficamos fascinados com a leitura da realidade como sendo apenas aquela dos números, como denunciou tão bem René Guénon, em seu livro, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos.
Bacon, numa época em que tudo era visto e julgado através de um livro que está na raiz da palavra biblioteca, a Bíblia, que apenas uma ínfima elite tinha acesso, diga-se de passagem, fez a revolução do empirismo, nos introduzindo aos cinco sentidos, como estratégia natural de investigação e experimentação na realidade. Bacon enfatizava o controle da natureza, com o seu famoso lema: saber é poder. Este princípio de dominação foi introduzido no cerne do pensamento moderno.
Depois, bradou sua voz aquele que é considerado o pai da razão analítica, Descartes, que partia da dúvida como método sistemático, tão traumatizado que estava pelos dogmas da época. Através do exercício de um raciocínio extraordinário, em algum momento, concluiu que precisava pensar para duvidar: penso, logo existo. O pensamento, então, passou a adquirir o estatuto de um fundamento ontológico. Surgiu, triunfante, a análise que é um método de decomposição sistemática, que busca compreender o todo por suas partes. Por outro lado, Descartes era um admirador das máquinas. Ele dizia que os filósofos apenas compreenderiam o ser humano se compreendessem as máquinas. A dimensão mecanicista, portanto, foi introduzida também no coração do novo paradigma.
Finalmente, o gênio raro de Isaac Newton, fez a magistral síntese da matematização de Galileu, do empirismo baconiano e do racionalismo analítico cartesiano, num edifício portentoso, que ele denominou de física mecânica. Newton extrapolou a metáfora da máquina para o universo, que passou a ser visto como um grande engenho, movido por leis eternas. Este modelo de Newton foi identificado com a própria ciência, durante os séculos seguintes.
Todo o movimento liberal da modernidade surgiu, de uma certa forma, para combater aquela imagem dominante de um Deus tirano, que reprimia a liberdade de pensar e de analisar. Voltaire bradava, Lembrem-se das crueldades! Assim, o racionalismo materialista científico pode ser compreendido como um movimento compensatório iluminista, de resgate da razão crítica, que culminou, no século XIX, na religião positivista de Comte, pregando o sermão do progresso, com uma pretensa física social.
Para se compreender a crise que estamos vivendo, não podemos deixar de visualizar esse surgimento do império da razão, com a magistral obra prima desses grandes mentores, que podemos denominar de racionalismo cientifico, inerentemente analítico, que inventou a disciplina que, por sua vez, engendrou o especialista, como o vidente do mínimo, o profeta do minúsculo. Saímos da fascinação pelo Todo para a veneração das partes.
Num movimento dialético, houve uma mudança de polaridade, que determinou um outro extremismo. A experiência da subjetividade, da interioridade e do sagrado, de onde jorram os valores de uma ética essencial, passou a ser reprimida em nome de algo que, de forma confusa, chamamos de ciência. O que foi um grito de inteligência, no século XVII, que conquistou a lucidez lógica e uma consciência de discriminação, no século XIX se transformou em dissociação e desvinculação. Enfim, o espírito científico, fundamentado numa indagação aberta e permanente, se degenerou em cientificismo, uma religião sem Deus! A universidade passou a ser um novo templo, com seu reitor denominado de Magnífico e seus sacerdotes travestidos de pensadores e técnicos. Naturalmente, houve uma hipertrofia da dimensão do conhecimento, sobretudo com a revolução informacional, e a correlata atrofia do universo interior, o empobrecimento lastimável do domínio subjetivo, o naufrágio do sujeito, que se degenerou em objeto.

A ditadura da razão

Em linhas muito vastas e precárias, eis como ocorreu a mudança de um pólo onde predominava uma visão sintética mística, para uma visão dominantemente analítica e objetiva, uma demência racional excludente, que Chesterton denunciou afirmando que louco é quem perdeu tudo, exceto a razão! Do obscurantismo das asas, dissociadas das raízes, passamos para o obscurantismo das raízes, desconectadas com as asas…
Os dois caminhos clássicos de apreensão da realidade, a religião e a ciência, funções que se inscrevem, metaforicamente, nos nossos hemisférios cerebrais - o esquerdo da lógica masculina racional-empírica e o direito, do coração e da intuição feminina -, foram considerados na ordem do antagonismo e da incompatibilidade. Isso levou a uma situação esquizofrênica, de ruptura entre o mundo interior e o exterior. Ou seja, perdemos de vista o que é a consciência da inteireza e o que é o fenômeno humano integral.
Como produto dessa contradição, estamos presenciando uma síndrome global, com sintomas que indicam um esgotamento criativo do paradigma da modernidade, que modelou uma atitude básica, dissociada e polarizada, perante a humanidade e o mundo. Os sinais trágicos dessa falência paradigmática são bastante visíveis nos noticiários de cada dia - a destruição dos ecossistemas, a exclusão de bilhões de seres humanos miseráveis, uma escalada de violência, terrorismos e guerras infindáveis, o abuso contra a infância – um dos mais dilacerantes sintomas, pois a criança é a guardiã do templo da dignidade e de um futuro viável - e essa falência escandalosa da ética. Enfim, um quadro de declínio e de quase fenecimento de nossa civilização.
Muito dessa discussão pode ser traduzida nas concepções de Ocidente e Oriente, compreendidas de forma transgeográfica, como estados de consciência, distintos e complementares. O Ocidente interior pode ser representado pelo hemisfério esquerdo, da tecnociência e da ação no mundo exterior. O Oriente interior pode ser simbolizado como o hemisfério direito, da mística, da musicalidade e da contemplação. Neste sentido, há uma bela sincronicidade, em português: Oriente-se! Precisamos orientar nossa ciência e tecnologia, nosso saber, por essa inteligência sintética, pelo Oriente interior, pelo hemisfério do amor. Esta integração precisa ter início dentro de cada um de nós, na ecologia individual, para que possa ser naturalmente transpirada, para a ecologia social e a ambiental.

Um novo aprender a aprender

Gosto de confiar que estamos despertando para essa premente necessidade, através do paradigma emergente, que é transdisciplinar holístico, postulando o diálogo aberto e sinérgico entre a ciência, a filosofia, a arte e a tradição espiritual.
Quando uma espécie encontra-se ameaçada na sua perpetuação, mecanismos intrínsecos, biológicos, da sua inteligência são acionados e um novo paradigma é concebido e desenvolvido, num processo orgânico e vital. É o que está acontecendo na minha percepção, em meio à agonia de um modelo racionalista e objetivista, esgotado e decadente. Trata-se de conservar o positivo da razão crítica e da ciência contemporânea, ousando abrir novos horizontes, rumo à integração dos aspectos reprimidos e negligenciados, para que transcorra uma sinergia de renovação. Entre os dois hemisférios cerebrais há uma ponte de milhões de neurônios, denominada de corpo caloso. Eis uma simbólica formidável de aliança, entre o Ocidente e o Oriente, entre o masculino e a feminino, entre a razão e o coração, a sensação e a intuição, o profano e o sagrado, a matéria e a Luz. Consciente desta solução criativa, Carl Sagan afirmava que o futuro da humanidade depende do corpo caloso.
Na abordagem holística, há um princípio que é muito valioso: não mesclar, não separar, nem fusão, nem divisão, nem “um” nem “dois”. A mescla da ciência com a religião é um equívoco alienante, um pseudosincretismo degradante. Por outro lado, considerá-las na ordem do antagonismo e da exclusão conduz a outra cilada, do sectarismo e desconexão. A ciência tem um caminho próprio, que é o analítico. A religião tem um caminho próprio, que é o sintético. Um não precisa do outro. Mas como afirmou Fritjof Capra, o ser humano necessita de ambos! São as duas pernas que um ser humano inteiro e íntegro necessita, para empreender uma jornada, com sentido e orientação.
Assim como a Idade Média enalteceu o um, da união indiferenciada do misticismo, a Idade Moderna se fundamentou no dois, da diferenciação dual, da separatividade analítica. Encontra-se em jogo, aqui, uma outra polaridade, que podemos denominar, metodologicamente, de symbolos e de diabolos. Symbolos é o fator que religa, da religiosidade e do método sintético, o um. O seu oposto é diabolos, o que divide e estabelece fronteiras, característica do método analítico, o dois. Num movimento dialético natural, o excesso de symbolos medieval nos levou a um excesso de diabolos, na modernidade. Necessitamos da virtude integrativa do três. Assim, um novo cosmo brotará do caos. Trata-se de um movimento natural da fusão para a diferenciação e desta para a Aliança, metaforizada no mencionado corpo caloso, que os antigos denominavam de Chifre do Unicórnio.

A Idade do Três

Através do paradigma transdisciplinar holístico, confio que inauguraremos a Idade do Três, através da emergência de um horizonte do saber e do ser, que transcenderá o que conhecemos convencionalmente como ciência e como religião. Creio que o futuro das novas gerações dependerá do desenvolvimento desta inteligência integral do potencial de nossa espécie. Manter o positivo do um, a união, e o positivo do dois, a diferenciação, numa metanóia de uma consciência de inteireza, onde aprenderemos a nos unir e nos diferenciar, no milagre do Encontro inclusivo, onde dançam o amante, a amada e o Amor.
Falando de um outro modo, há um denominador comum na crise contemporânea, que é o ego. Há um egocentrismo na fonte mesmo de todas as nossas contradições. Do ponto de vista psíquico, o ego representa o elemento básico e pessoal da separatividade. A crise de fragmentação tem o ego como seu suporte e agente fundamental. E não será pela lógica que inventou o problema que iremos resolvê-lo, naturalmente. Foi Carl Gustav Jung que postulou, no Ocidente, um processo iniciático, de iniciação ao mistério da totalidade, denominado de individuação: uma trilha no mundo interior que conduz a pessoa, da superficialidade egóica à centralidade do Self. Precisamos de uma visão transcendente que não é contra o ego e nem significa sua destruição, mas que poderá abri-lo para uma dimensão de solidariedade, de fraternidade e de comunhão, virtudes que emanam do hemisfério sintético.
No século XIX emergiram vários tipos de determinismos, com uma ênfase na competição e conflito. Darwin afirmava a competição entre as espécies no seu determinismo biológico. Marx postulava a competição entre as classes no seu determinismo econômico. Freud indicava a competição entre as potências psicológicas no seu determinismo psíquico… A Revolução Francesa, que representou um momento redefinidor da história ocidental, enalteceu três valores fundamentais: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. O bloco liberal-capitalista centrou-se na liberdade, o bloco social-comunista na igualdade e, ambos, menosprezaram a fraternidade, frutos que eram do mesmo paradigma materialista, racionalista, atomístico e mecanicista.
Portanto, como lograr fraternidade, num mundo dilacerado por conflitos egocêntricos? Postulando um paradigma novo, da integração, do três. Essa virtude emana da mente sintética que é o apanágio das religiões. O que significa que é impossível a sobrevivência da espécie através de um salto qualitativo de consciência sem o resgate dessa visão, dessa consciência holística, capaz de solidariedade, através da experiência da comunhão, sem perder o valor do discernimento analítico.

Por um pacto da Aliança

Gosto de falar do que considero o pacto do século XVII, entre o poder despótico da época já mencionado, o da Igreja, e os frágeis representantes do racionalismo científico, naquela ocasião vulneravelmente emergente. Que pacto é este? É tão simples que dói: os cientistas deveriam se restringir à investigação do mundo objetivo da matéria, que pode ser manipulada, quantificada, controlada e a Igreja ficaria com o mundo interior, da alma, da consciência, do Espírito! Ora, a ciência fez um bom trabalho, explorando e construindo no mundo exterior. Infelizmente, a Igreja se fragmentou além da medida, tendo prevalecido a força da instituição e da hierarquia, que subjugou a conexão com o Sopro do Mistério, que se traduz na mística do amor compassivo. É motivo de alegria e consolo constatar que, no front da ciência, da filosofia, da arte e da espiritualidade, levantam-se os novos traumatizados, na tarefa conspiratória de atualizarem este esclerosado pacto.
Considero o novo pacto a abordagem que chamamos de transdisciplinaridade, uma convocação ao exercício dialógico entre os grandes fragmentos epistemológicos da ciência, arte, filosofia e mística, buscando resgatar a unidade do conhecimento e uma forma mais integrada de agir na realidade. Um documento seminal e impactante, da UNESCO, foi a Declaração de Veneza (1986), produto de um colóquio que congregou representantes notáveis das diversas áreas do saber e do fazer, com a liderança lúcida de Basarab Nicolescu. Este texto afirma ter a ciência chegado aos seus limites, necessitando de um premente e urgente diálogo com outras formas de conhecimento. Esse documento, juntamente com a carta magna da Universidade Holística Internacional, formulada por Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Monique Thoenig, representaram textos de base, que nos impulsionaram a realizar, em Brasília, o I Congresso Holístico Internacional, I CHI (1987), um encontro transdisciplinar formidável e definitivo, que deflagrou a criação da Fundação Cidade da Paz, mantenedora da Unipaz, hoje Rede Unipaz, que congrega dezenas de unidades no Brasil e no mundo. Este evento engendrou a Carta de Brasília, afirmando que uma nova civilização está nascendo e que uma mutação de consciência está em curso, traduzida pelo progressivo reconhecimento mundial da visão holística, que estabelece pontes sobre todas as fronteiras do conhecimento humano, resgatando o amor essencial como base da veiculação entre todos os viventes. Termina afirmando, de forma contundente: O século XXI será holístico, ou não será.
Outros documentos importantes e complementares, como a Declaração de Vancouver (1989), a Carta de Paris (1991), a Declaração de Belém (1992) e, de modo muito particular, a Carta da Trandisciplinaridade (1994), que foi gerada em Portugal, foram se somando e aprofundando este desafio tremendo, que aponta para a nova aliança, da ciência com a consciência. Merece ser destacado outro documento, formulado no Congresso de Locarno (1997), centrado no tema da evolução transdisciplinar da universidade, que postula os quatro pilares de uma nova educação: educar para conhecer, para fazer, para conviver e para Ser. Então, para que possamos aliar, através do Três, o efetivo ao afetivo, a razão ao coração, a análise à síntese, o intelecto ao espírito, o masculino ao feminino, precisamos seguir nos exercitando na estratégia da transdisciplinaridade, pois se encontra em jogo o futuro da humanidade e da própria biosfera.
Assim, nossa crise é também a da crisálida, a de uma transição consciencial, a do parto de uma nova forma de saber e de ser no mundo. Necessitamos de uma abertura para a renovação, para um salto quântico de consciência. A ciência materialista convencional, desprovida de uma visão de altitude e de uma ética de cuidado, tem sido mais um instrumento de dominação e de exclusão, sua tecnologia sendo utilizada de forma irresponsável e perversa ecologicamente, destituída das motivações mais nobres. Lembro-me de Oppenheimer, que coordenou a Operação Manhattam, que gerou a bomba atômica, quando viu esse artefato explodir Hiroshima e Nagasaki que, para ele, foi uma experiência dilaceradora. Depois de estudar ciências sociais, ele afirmou: O maior perigo da humanidade é o cientista alienado.
Com relação às contradições religiosas, podemos citar que em 2003, de acordo com Bob Walter, presidente da Fundação Joseph Campbell, presenciamos cerca de 35 guerras, das quais 33 tiveram causas religiosas. Precisamos de uma religião de fato, que honre a etimologia da própria palavra: religare. Nossa tarefa comum, como conlamava Dante Alighieri, e a de sermos Sumos Pontífices, pontes entre a terra ao céu. De outra forma, seremos cada vez mais vítimas de um certo “materialismo religioso”, uma máfia de instituições pseudo-religiosas, que movimenta bilhões de dólares, explorando a legítima fome de infinito que habita o coração, o cerne do ser humano, dominando e alienando rebanhos, através de manipulações que bem conhecemos.

Espiritualidade transreligiosa

Juntamente com a transdisciplinaridade, precisamos exercitar a transculturalidade, a convivência e o respeito às diversas culturas, com a riqueza de suas singularidades e no reconhecimento daquilo também que elas têm de comum. É fundamental, também, o desenvolvimento da espiritualidade transreligiosa, que respeita todas as religiões, ao mesmo tempo que as transcendem, fundamentando-se nos valores comuns compartilhados, do amor compassivo e da fraternidade universal. Nossa ênfase, portanto, é numa espiritualidade transreligiosa, cuja essência se traduz por amor e cuja prática se encarna no exercício solidário e fraterno. Está aí a emergência de uma nova forma de ser religioso no mundo atual. Colocar ênfase não naquilo que é histórico, naquilo que é do domínio existencial e institucional e sim no transhistórico, nos valores perenes, no plano essencial.
Todas as religiões surgiram do sagrado, esse assombro perante o Mistério da Vida, que não é um latifúndio de nenhuma instituição. O sagrado é uma experiência vital e numinosa, que pode ser vivida no exercício da ciência, da filosofia, da arte e também no da religião, naturalmente. Enfim, trata-se do milagre devastador e atômico do Amor, a tecnologia sutil mais sofisticada de todos os universos. Penso em Teilhard de Chardin, que afirmava que, quem sabe, depois de dominar as forças da natureza, dos furacões, dos maremotos, quem sabe a humanidade dominará as forças do Amor. Então, pela segunda vez na história, o ser humano terá inventado o fogo…
De fato, o maior perigo da humanidade é o ser humano alienado. Sobretudo quando se trata da alienação do que é o mais propriamente humano, do Ser que viemos dar testemunho na Terra. Necessitamos de uma pedagogia do cuidado e da inteireza, que possa facilitar o florescimento total do humano.

Educação integral

O jardineiro é, talvez, a metáfora mais plena do que é um verdadeiro educador. O que faz um jardineiro? Prepara um solo fértil, banhado pela luz solar, rega-o com a água justa propiciando os nutrientes minerais apropriados e uma poda adequada a cada planta. Se o terreno é bem cuidado, a planta tem um tropismo para se desenvolve por si mesma, na direção do que realmente é. Nenhum jardineiro é tão tolo a ponto de querer ensinar uma rosa a ser uma rosa ou um jasmim a ser um jasmim. Ou, pior ainda, comparar uma rosa com um jasmim, exigindo de todas as flores o mesmo resultado, através de um mesmo currículo!…
Eis, também, a tarefa do autêntico educador: cultivar um solo propício para que o aprendiz desvele a sua palavra e revele a sua singularidade. Trata-se de apoiar e, também, de frustrar, pois os limites têm que ser aplicados, centrados no aprendiz. E jamais utilizar a técnica perversa da comparação, através de uma ética do respeito à diferença, ao semblante único de cada aprendiz. Por que um ser humano não floresceria se tivesse esse cuidado? Vale ainda afirmar que o bom jardineiro é menos o conhecedor da botânica e mais o amante da planta. Aí, estamos diante da grande pedagogia do amor, que é a primeira e a derradeira lição na escola da existência.
Como já afirmamos, a proposta de uma educação integral, transdisciplinar, centra-se em quatro alvos fundamentais: por um lado, aprender a conhecer e a fazer. Por outro, aprender a conviver e a Ser. Os dois primeiros, embora de forma muito fragmentada, são considerados na educação convencional. Estas tarefas precisam ser aperfeiçoadas, para que o conhecimento seja mais unificado e a ação mais integrada e com sentido.

Aprender a conviver

O grande desafio é o de aprender a conviver – consigo mesmo, com o outro, os outros, a natureza – ou seja, viver com. Para tal, precisamos do que tenho denominado de uma alfabetização psíquica, que consiste em colocar e integrar a alma nas escolas. É o que temos feito a quase duas décadas, na Universidade Holística Internacional, Unipaz. Todos os nossos programas e projetos visam, inicialmente, a um processo de integração das quatro funções psíquicas, pesquisadas por Jung: a razão e o coração (o pensamento e o sentimento), a sensação e a intuição. O racionalismo científico é produto da articulação e dialogicidade da função da sensação – o empirismo - com a função do pensamento – o racionalismo. A grande ingenuidade desta abordagem analítica é pretender compreender a totalidade psíquica através de apenas duas de suas funções! Então, urge uma estratégia educacional que possa facilitar a cada aprendiz a identificação das funções psíquicas que são dominantes, em si, para desenvolver as que estão atrofiadas, buscando integrá-las e harmonizá-las.
Compreendo que alfabetizar a alma implica no desenvolvimento de três inteligências: a emocional, a relacional e a onírica. É fundamental um currículo através do qual o aprendiz possa aprender a expressar as emoções naturais, que são mecanismos homeostáticos imprescindíveis para a manutenção da saúde, no nível individual e coletivo. Aprender a expressar afeto, alegria, tristeza, raiva e medo é muito importante para o aprendiz não precisar substituí-las com emoções secundárias e disfuncionais, que na análise transacional são denominadas de disfarces, a exemplo da ansiedade, culpabilidade, angústia, ira, vingança, desespero, etc. Quanto a tarefa de desenvolver a inteligência relacional, gosto de lembrar de uma afirmação de Carl Rogers, um grande líder do movimento humanístico: A maior descoberta do século XX foi o grupo! Portanto, as diversas dinâmicas de grupo precisam ser introduzidas nas escolas, desde o pré-primário, para que o aprendiz possa bem se instrumentar na arte de se relacionar – consigo, com o outro e com o mundo – através do exercício do diálogo e da intimidade. Finalmente, a inteligência onírica também é indispensável, para transitarmos no universo criativo do sonhar. Sabemos que a linguagem do sonho é tão importante quanto os pensamentos de vigília, exercendo uma função compensatória, trazendo reportagens significativas da alma da pessoa, sinalizando novas direções, trazendo questões não resolvidas que precisam de atenção, podendo nos conectar com o inconsciente coletivo e cósmico. É trágico constatar como a escola convencional despreza esta dimensão tão rica e criativa, apenas por transcender a lógica racional, na qual se fundamentou o paradigma da modernidade. É como uma empresa que trabalha de dia e de noite e que apenas valoriza os produtos diurnos. Relegar as preciosidades que advém da mente onírica é, no mínimo, uma irresponsabilidade consciencial.

Aprender a Ser

Não há desafio maior, entretanto, do que educar para Ser. Para tal, necessitamos de uma pedagogia iniciática, que inicie o aprendiz a desenvolver os talentos que o Mistério lhe confiou, rumo a realização de uma plenitude possível. Uma pedagogia que facilite, por uma via interior, que o aprendiz da Vida possa, além de saber, florescer através do seu dom singular, que eu denomino de vocação, a voz mais profunda e permanente do desejo que habita cada ser humano. Voltarei a este nobre tema, pela sua importância norteadora. Neste sentido, necessitamos desenvolver uma inteligência noética, que nos abra para o silêncio, de onde toda palavra justa brota. Uma pedagogia da meditação e da contemplação, que possa abrir as portas da percepção, para o exercício de uma criatividade máxima. Neste sentido, as tradições espirituais autênticas, da sabedoria perene, podem nos auxiliar, através de seus arsenais de práticas, destinadas a abrir um olhar capaz de perceber o novo e desenvolver o poder da intuição, inteligência global que captura o coração do instante. Além do caminho analítico, que acumula conhecimentos de forma progressiva, necessitamos da via sintética, capaz de não saber, esta virtude preciosa da douta ignorância. Ser capaz de se esvaziar do conhecido, das memórias que nos soterram no passado, para viabilizar um processo de recriação e de renovação permanentes. É preciso lograr a profundidade e altitude do Ser, para que sejamos sujeitos do próprio destino. Diz a sabedoria dos Upanichads: O que for a profundeza do teu ser, assim será o teu desejo. O que for o teu desejo, assim será a tua vontade. O que for a tua vontade, assim serão teus atos. O que forem teus atos, assim será o teu destino.
Enfim, não se estagnar e permitir o processo, o devir, é característica da existência criativa e plena. Afirma o poeta Pessoa: A vida é breve, a alma é vasta. Ter é tardar. Ora, se ter é tardar, Ser é partir…

Desenvolvimento e cosmovisão

Quando falamos do desenvolvimento, do que estamos falando, afinal? Para que possamos compreender os diversos sentidos desta palavra, necessitamos esclarecer nossos pressupostos antropológicos, ou seja, a visão que postulamos do humano e do mundo, nossa cosmovisão. Pois esta visão modela nossa atitude perante o humano e o universo, determinando o que compreendemos como desenvolvimento, como educação, como evolução… Inspirando-me em Jean-Yves Leloup, há quatro pressupostos antropológicos. O primeiro é o materialista: o ser humano é apenas um corpo dotado de um cérebro; é um macaco nu. Desenvolvimento, nesta visão, se resumirá na questão da prosperidade material, ou seja, desenvolvimento econômico. Esta é a visão mais superficial deste enfoque e, infelizmente, o que prevalece no mundo materialista contemporâneo. Por esta razão, consideramos que um país desenvolvido é o que tem uma economia forte, um PIB de natureza exclusiva material. É importante aprofundar e complexificar esta avaliação.
O segundo pressuposto é o psicossomático: o ser humano é um corpo dotado de informações, de alma. Neste caso, desenvolvimento não é só material; é também o da alma, da qualidade de pensamentos, de emoções, de sonhos, de relacionamentos, da subjetividade e intersubjetividada. Para lograr este desenvolvimento, necessitamos de uma alfabetização psíquica, no marco de uma educação integral, acima indicada. Neste caso, um país pode ter uma economia fraca e uma alma próspera enquanto outro pode ter uma economia forte e uma alma miserável…
O terceiro pressuposto é trinitário: o ser humano é um composto de corpo, de alma e de nous, que podemos traduzir por consciência pura, sem objeto, metaconsciência, a ponta acerada da alma. O ser humano é dotado de uma qualidade ímpar, a da consciência da consciência. Dizia Mestre Eckart: O Espírito é mais próximo a mim do que meu hálito. O mesmo é verdade para as pedras e plantas. Só que elas não sabem disso!… A dimensão noética é constituída de silêncio e de imagens estruturantes, arquétipos da alma profunda; é a nossa mente contemplativa, capaz de quietude e de paz, aberta ao essencial, de onde emanam os valores éticos perenes. Desenvolvimento noético é logrado através de uma pedagogia meditativa, aberta à dimensão essencial e do que denominamos de imaginal, o universo arquetípico que estrutura a alma e a existência, conforme delineamos resumidamente acima.
O quarto pressuposto afirma que o ser humano é um composto de dimensões: do corpo, da alma e da consciência, atravessado pelo Mistério da Vida, pelo Espírito, que os estruturam e vitalizam. Aqui, a dimensão essencial é levada em consideração e valorizada como o que permanece na impermanência de tudo, o Ser Que É no coração do ser que passa. A dimensão noética, da consciência, é a única que, por ser constituída de silêncio e de uma abertura ao essencial, pode refletir a Luz do Espírito. Portanto, não há desenvolvimento espiritual; só se desenvolve o que tem um início e terá um fim. O que podemos desenvolver é o corpo, a alma e a consciência, para que a Essência possa se manifestar na existência, para que o Absoluto possa dar um sentido e direção ao relativo. Na minha leitura, Cristo indicou esta realidade quando afirmou que o Espírito está pronto, a carne é fraca. Não há desenvolvimento do Espírito; há um despertar para o Ser, para a Vida.
Considero importante diferenciar existência de Vida. Existência é uma manifestação e exteriorização provisória da Vida, que é Absoluto, Espírito. Certa ocasião Buda indagou aos seus discípulos o que era o oposto da morte. Todos responderam: a vida. Buda corrigiu: O oposto da morte é o nascimento, pois a Vida é eterna. E Cristo também afirmava trazer Vida, Vida em abundância. Está lá no preâmbulo do João: No princípio: o Logos, o Logos está voltado para Deus, o Logos é Deus. …Ele é a vida de todo ser, a vida é a luz dos homens. Ele está no mundo, o mundo existe por meio dele, mas o mundo não o conhece. …E o Logos se fez carne e fez sua morada entre nós… A grande tragédia é que estamos sendo fanáticos da existência e tombamos ao largo da Vida, do Mistério que realmente somos! Quando alguém faz aniversário, desejamos-lhe muitos anos de existência. Quando aprenderemos a desejar muita Vida nos anos? Não importa muito se viveremos alguns anos a mais ou a menos. O que importa é que haja Vida em nossos passos, a chama do Amor em nossos dias.
É um fato auspicioso o tanto que se fala, atualmente, de Qualidade de Vida. Já falamos muito de quantidade, nos últimos séculos. Para se auferir quantidade, basta uma máquina, um computador. Para se verificar qualidade é necessário um sujeito, uma alma, uma consciência. É pela conexão com a Vida que a nossa existência adquire centralidade, sentido e orientação.

Dimensões do cuidado

Eis, portanto, as três dimensões suscetíveis de desenvolvimento no ser humano: o corpo, que corresponde ao aspecto econômico; a alma, relativa ao aspecto político, do poder psíquico; e a consciência noética, relativa ao universo da ética e da sabedoria, o alvo mais elevado de um desenvolvimento integral, segundo a filosofia perene. Para desenvolver esta virtude, as tradições sapienciais nos oferecem seus caminhos para o despertar. O cristianismo, através da contemplação, oração, e evocação do Nome; o hinduísmo, com suas diversas yogas, o budismo com o seu leque de vias meditativas, o sufismo com a dança dos dervixes, o taoísmo com a meditação ativa das artes marciais que surgiram em templos, o xamanismo com suas artes do sagrado… Na pedagogia da Unipaz, denominamos de holopráxis a estas diversas vias para o despertar da Presença.
É necessário questionar essa falácia do progresso, tão decantada por Comte no século XIX. Para Comte, considerado o fundador da sociologia, há uma lei dos três estados, na história do conhecimento humano: a teologia representa o primeiro estágio infantil; a metafísica, seria de transição para o positivo, a maturidade, período científico definitivo. O seu positivismo, postulado como uma religião, pregava a ordem e o progresso, fundamentado na física mecânica, com seus dois capítulos básicos: o da estática (ordem) e o da dinâmica (progresso). Tal ideologia acabou contaminando nossa República e estampada em nossa bandeira nacional, que passou a ser um instrumento de propaganda do lema básico positivista - Ordem e Progresso. Penso que o povo brasileiro, com seu grande coração, é maior do que esta bandeira, que precisa ser atualizada com uma dimensão quântica, aliada à mecânica. Ordem e Progresso são valores fundamentais, de uma razão analítica; precisam ser conservados. Como não há tempo a perder, sugiro adicionar outras duas virtudes, do universo feminino, no hemisfério sintético de nossa bandeira: Amor e Solidariedade. Porque, bem sabemos, sem o amor compassivo a ordem pode se degenerar em ditadura e o progresso em exclusão e dominação. Novamente, trata-se de atrevermos a realizar a arte da Aliança, para que a tecnociência esteja a serviço de uma ética do coração e do bem comum.
Sobretudo depois do fatídico 11 de Setembro, as pessoas conscientes estão se perguntando: o que é um país desenvolvido?; o que é uma pessoa educada?; o que é, realmente, progresso?…
Enfim, essencialmente o que é o desenvolvimento, se não a possibilidade de dar continuidade ao processo da holocriação? Co-criar: é isso que o Mistério nos brindou como oportunidade suprema na Arte do Encontro, pura alquimia de transmutação. Considero uma bela e portentosa utopia a que consta como terceiro princípio de um documento muito lúcido e impactante, denominado de Europa de Consciências, que surgiu de um movimento impulsionado por eminentes humanistas, liderado por Abé Pierre, na França, denunciando as contradições catastróficas de um materialismo onipresente, organizado e global: Submeter o econômico ao político e o político à sabedoria. Em outras palavras, o fator material econômico precisa ser conduzido pelo político psíquico e este pela sabedoria ética da consciência noética. Mãos à Obra Prima?!…
O Projeto Humano é vasto; somos um espaço onde o próprio Universo pode tomar consciência de si, saborear-se, saber-se, sorrir… A missão humana é a do Pontifex, a de uma ponte entre o infra-humano e o supra-humano. Recapitulamos todos os Reinos: há em nós o reino mineral – ossos e dentes, nossa dimensão adâmica de argila -, o vegetal – o sistema vegetativo, a flora intestinal, as plantas dos pés – o animal – os instintos, a libido. Há também o reino angelical – o Aleluia, este Louvor ao Ser que É – o arcangelical – chama ardente da compaixão, uma sabedoria maior que nossa razão – e o Reino da Luz. Todos se aliam num coração humano capaz de abertura, de doação, de Amor incondicional. Desenvolver este potencial, que os antigos denominavam de Anthropos, a inteireza humana, eis o maior desafio dos séculos vindouros!

Além do ego

Importa insistir que a questão do desenvolvimento é de natureza existencial; precisamos cuidar daquilo que teve início em nós e que, um dia, findará. O Espírito Incriado sempre esteve, está e estará no coração diamantino da Essência Humana. Como pode se desenvolver o que jamais teve início, o que jamais findará? Trata-se, então, de desenvolver o existencial para que o Essencial possa se manifestar nos meandros tortuosos do existir humano. O que precisamos desenvolver é a dimensão corporal, a dimensão psíquica e a dimensão noética ou consciencial profunda de onde uma ética do coração jorra, naturalmente, se aí lograrmos evolução e qualidade. Para tal, é necessária a disciplina da ascese, de um trabalho no cotidiano sobre si mesmo, de um investimento na exploração e edificação do cosmo interior. Quando a nossa mente se esvazia a nossa taça de plenitude transborda!… O futuro da humanidade depende do resgate de uma mística natural, de comunhão, participação, vinculação. Toda injustiça e exclusão é produto da ilusão de separatividade, determinada pela clausura e prisão do ego, fonte de toda guerra, interior e exterior. A questão crucial de um desenvolvimento integral é a de lograr que o ego seja orientado pelo Ser que nos faz ser…
Penso numa passagem de Alexandre, o Grande, quando esteve no deserto com Diógenes, um grande sábio. Alexandre, que foi preparado por um bom mestre, o Aristóteles, e sabia reconhecer um homem digno, disse ao Diógenes: - Peça-me o que quiser que eu lhe darei. E o sábio respondeu: - Apenas se afaste, pois você está tapando o sol!… Gosto desta estória como uma boa metáfora a nos indicar que a tarefa suprema é a de afastar Alexandre, o Grande, ou seja, o ego desmesurado, para que a Luz do Sol da Essência possa nos aquecer, iluminar e redimir.
O Sol do Ser sempre está presente, mesmo nos dias mais nublados. Nossa tarefa é a de afastar as nuvens das enfermidades e sintomas do corpo, as nuvens das inclinações indevidas, ferimentos e traumas da alma e as nuvens da ignorância existencial da consciência, que nos impede de refletir o que está aí desde todo o sempre e para sempre - o Alfa e o Ômega, o Infinito Eterno.
Não há desenvolvimento consistente sem autodesenvolvimento. O tema da evolução é imperativo na questão humana. Pois não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático em nós mesmos, não apenas no plano material; sobretudo na esfera da subjetividade, da alma e da consciência. Já afirmava um grande mestre da Excelência Humana, há dois milênios: De que vale você ganhar o mundo inteiro se você perdeu a sua alma; se você não sabe quem você é, de onde você vem, para onde você vai?…

Meta princípios para um desenvolvimento integral

Quero concluir apontando para alguns meta princípios, princípios de princípios, que considero fundamentais na arte da transformação e da auto-realização. Considero-os chaves preciosas no processo de cura e de individuação, rumo à saúde e plenitude, que trinta anos de exercício terapêutico me ensinaram.
O primeiro meta princípio fala de uma meta patologia, uma patologia existente em todas as patologias: existe uma fonte comum a todo sofrimento humano que é o apego, compreendido como uma identificação – com um objeto, um valor, um desejo, uma pessoa, um status… Desde que você se identifique com algo, você sentirá medo de perder, pois tudo está em mutação, e o stress se seguirá ao temor. Pierre Weil resumiu, em palavras modernas, este meta princípio da sabedoria perene, através de um esquema claro e simples: O apego leva ao medo, que conduz ao stress e a todas essas enfermidades da civilização que são tão bem conhecidas: Apego – Medo – Stress. Na realidade, o apego é derivado do que Weil denominou de fantasia da separatividade: como nos sentimos separados do todo, num movimento compensatório, nos apegamos; como se os apegos representassem tábuas de salvação. Neste circuito vicioso nos perdemos numa equação singela, de fácil constatação: quanto mais apegos, mais sofrimento. Querer desapegar-se é uma outra forma de apego, mais sutil. Qual a saída?
Encontramos a saída através do segundo meta princípio, que aponta para uma meta-terapia, um princípio terapêutico inerente a todo processo terapêutico: a plena atenção, que se traduz por Presença, estar conectado ao instante. Existe uma pequena atenção, quando há uma concentração em algum aspecto da realidade, o que implica em resistir a todas as demais estimulações. A plena atenção é derivada da qualidade noética, consciência da consciência. O que Krishnamurti denominava de atenção sem escolha, um estado aberto e inclusivo de vigília. Toda transformação expressa esta conexão com o aqui-e-agora, o que caracteriza a saúde plena. Uma pessoa saudável não é uma pessoa que não tem problemas; é uma pessoa que está atenta, a cada instante, aos problemas e às maravilhas do existir. É uma atenção sem foco específico, um estado meditativo, sem tensão, sem concentração. A patologia emana da desatenção. A plena atenção é uma função natural do despertar da kundalini, de acordo com psicologia hindu. A palavra Buda deriva do sânscrito bodh, que significa desperto. Buda, portanto, é aquele que despertou plenamente para o real, que é o agora, o instante que nos nutre de tudo o que necessitamos. É através da plena atenção aos apegos que se torna possível transcendê-los. Neste estado de atenção pura, deixamos de ser possuídos pela ilusão do passado e ficção do futuro, aptos a uma responsabilidade, uma habilidade de responder ao agora. Eis um sermão de sabedoria crística: Vigiai e orai!
Ao terceiro meta princípio de um desenvolvimento integral, denomino de círculo da aceitação. O movimento de aceitação, de modo algum implica em passividade ou acomodação. Pelo contrário; aceitar é uma qualidade dinâmica, quando nos fazemos não duais com a realidade e, nesta inteireza, somos plenificados de energias, o que possibilita a transformação ou superação do obstáculo em questão. Nós apenas mudamos aquilo que aceitamos, num primeiro momento. Quando não aceitamos algum aspecto da realidade, seja interna ou externa, nós nos dividimos – entre o ideal e o real – o que nos leva a uma dispersão energética. Sem energia não é possível a transformação. Assim, a não aceitação nos leva a um esgotamento energético, que nos encerra no círculo vicioso da estagnação. O alinhamento lúcido com a realidade é o que nos possibilita sua transcendência. Eis a força do que Mahatma Gandhi afirmava ser o resumo de todas as orações: Seja feita a vossa vontade. Este processo virtuoso pode ser assim resumido: eu me alinho com a realidade para estar inteiro e com a energia advinda desta integridade, posso atirar-me no processo de transmutação da própria realidade. Falando de um outro modo, há três tipos de pessoas que querem transformar o mundo: o rebelde, o revolucionário e o conspirador. O rebelde é alguém imaturo, que tem problemas não resolvidos com as autoridades, com o papai e mamãe no interior de si mesmo, projetando-os no exterior, sendo sempre do contra; em suma, é uma pessoa que necessita de psicoterapia. O revolucionário já é uma pessoa com maturidade, que faz a crítica das contradições sistêmicas e postula uma ideologia que considera mais justa. Entretanto, há sempre uma arrogância nesta atitude de querer mudar o mundo, sem antes ter se transformado. Em função disto é que presenciamos praticamente a derrocada de todas as revoluções. Finalmente, o conspirador é a pessoa que fez a revolução no interior de si mesmo, trabalhando com o ditador no seu próprio coração, dando um testemunho de autotransformação, naturalmente tornando-se um facilitador da transformação social e ambiental. O conspirador é aquele conhecedor de si, que se deu conta que é um pedacinho de praça pública e caso queira ser agente de qualidade, de desenvolvimento no mundo, ele tem que começar por este pedacinho de universo que lhe foi confiado. Este é o líder capaz de aceitação de si, do outro e da realidade, assumindo um autêntico papel de agente de transformação. O autoconhecimento para o qual nos convocavam Sócrates, e todos os grandes mestres, é a única forma de prevenir a humanidade das guerras, dos genocídios e das grandes tragédias. Porque somente mata o outro, somente viola e exclui aquele que não se conhece, porque se conhecer é se conhecer na relação, na vinculação com o outro e com o Totalmente Outro, o Mistério que, reconhecido ou não, sempre está presente.
O quarto meta princípio, é o da vocação. É o que traduzo afirmando que somos filhos de uma promessa que nos fizemos, de um juramento sagrado. Encarnamos para realizar uma obra prima individual e intransferível, com os talentos que a Vida nos brinda, sobre medida. Quando me esqueço e me afasto da vocação, vou atrair problemas, atrair doenças, que podem ser compreendidas como denúncias de contradições e de desvios. A grande tarefa evolutiva é a pessoa se lembrar da sua própria promessa, fazendo jus aos talentos que recebeu e que precisa fazer render na existência. Considero a parábola dos talentos indicativa deste metaprincípio fundamental. O normótico – alguém que sofre da patologia da normalidade, adaptando-se a um contexto doente e não cultivando seu potencial evolutivo - é aquele que enterra os talentos recebidos, com medo do seu próprio florescimento, de sua capacidade de realização, de amar e de servir. Jonas, do Antigo Testamento, representa o arquétipo desta normose, que atrai tempestades quando foge da própria missão. Por outro lado, sempre que nos aproximamos do caminho da promessa, da trilha com coração, o Mistério conspira por nós, enviando-nos tudo o que necessitamos, para florescer a partir do solo fecundo de nossos talentos. Considero a questão vocacional um dos maiores desafios, que poderá nos levar a transcender a polaridade insuficiente do especialista e do generalista, tarefas que os computadores poderão assumir por nós.
Finalmente, o quinto meta princípio é o do serviço, o viço do Ser, que expressa a suprema Lei do Amor, esse amor de onde viemos e para onde retornaremos, já que estamos condenados a amar. A existência é uma escola para onde viemos aprender a amar e a servir a partir de uma vocação particular. Não há forma de servir mais excelente do que você se tornar quem você realmente é. Eis um poema altaneiro do grande Tagore: Oh amigo meu, amiga minha, meu coração está angustiado pelo peso de todos os tesouros, que não entreguei a ti. O que nos pesa é o que retemos, o que não ofertamos. Na realidade, apenas temos o que oferecemos, o que servimos, que nenhum ladrão e nem mesmo a morte poderá nos roubar. Eis o epitáfio que gostaria, quem sabe um dia, de merecer: Confesso que servi."

Roberto Crema

(texto de 2008)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Compreensão: Convergência entre o Saber e o Ser


"Nenhuma época acumulou sobre o ser humano conhecimentos tão numerosos e tão diversos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do ser humano sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o ser humano."

Martin Heidegger

Eis um aspecto desafiador e paradoxal da crise contemporânea: a existência de uma hipertrofia de informações e de conhecimentos, de acesso amplo, irrestrito e imediato, ao mesmo tempo em que sofremos de uma atrofia do processo de discernimento e de compreensão. Como bem denuncia Heidegger, nunca estivemos tão alienados com relação à queso humana.

Sobre a compreensão da realidade, Basarab Nicolescu inicia o seu livro, Qu’est-ce que la réalité?, de forma contundente: “A palavra ‘realidade’ é uma das mais prostituídas de todas as línguas do mundo. Todas as pessoas acreditam saber o que é a realidade mas, quando nos interrogamos, descobrimos que há tantas concepções desta palavra quantos são os habitantes da terra. Assim, não é surpreendente que os inumeráveis conflitos agitam, sem cessar, os indivíduos e os povos: realidade contra realidade. Nestas condições, é por algum tipo de milagre que a humanidade ainda existe (...). Todavia, a tripla revolução que atravessou o século XX – a revolução quântica, a revolução biológica e a revolução informática – deveria mudar, em profundidade, nossa visão da realidade.”

Necessitamos, portanto, refletir sobre o que nos impede de atualizar nossos referenciais e o que pode nos abrir ao universo possível de uma compreensão intrapessoal e interpessoal, subjetiva e intersubjetiva, no âmbito de uma ecologia trinitária: individual, social e planetária.

Entre os obstáculos exteriores à compreensão intelectual, Edgar Morin aponta para a existência do “ruído”, a falta de entendimento causada pela polissemia dos conceitos, a ignorância dos ritos, hábitos, valores e imperativos éticos alheios, a incompatibilidade de visão de mundo e a desigualdade das estruturas mentais. Quanto às dificuldades de ordem interna, Morin indica o egocentrismo, o etnocentrismo e o sociocentrismo. Talvez possamos ampliar estas lúcidas considerações afirmando a existência de um mega-fator impeditivo da compreensão, que consiste no que Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e este autor denominamos de normose, uma patologia da normalidade.

O obstáculo da normose

Pierre Weil conceitua a normose como anomalias da normalidade conformadas de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar e de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte.

Para contextualizar, refletirei sobre a existência de três fundamentos da normose. O primeiro é o sistêmico: esta patologia da mediocridade surge quando o sistema onde vivemos encontra-se, dominantemente desequilibrado, mórbido e corrompido; quando o que predomina são contradições ou sintomas como o da falta de escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, bem como a alarmante e crescente violência contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa “normal”, ou melhor, normótica, é aquela ajustada ao sistema enfermo e que contribui para a manutenção do status quo. Sabemos, pela própria carta constitutiva da Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas e, sim, a presença de um estado de pleno bem-estar somático, psíquico e social. Posteriormente foi acrescentado o fator ambiental e o espiritual. O que significa que, quando um sistema encontra-se, em grande medida, num estado patológico, a pessoa saudável é a que manifesta um estado de desajustamento consciente, uma indignação lúcida e, até mesmo, um desespero sóbrio.

O segundo fundamento é o evolutivo, que parte do princípio do inacabamento do humano, como afirmava Paulo Freire. É o que podemos traduzir afirmando que não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático no potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível. Falando de outro modo, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade na qualidade evolutiva do planeta, que se traduz pela evolução consciente e intencional. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas aleatórias e dos combates entre os mais aptos, da seleção natural darwiniana, a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um trabalho sobre si mesmo em trilhas evolutivas de individuação. Como afirmava Teilhard de Chardin, as coisas não são aparecidas no Universo: elas são nascidas, tendo gestação e evolução, sendo que certas direções evolutivas privilegiadas levam à novidade, ao salto qualitativo do evento. Para este pioneiro do estudo da complexidade, os dois grandes eventos universais consistiram na passagem da pré-vida para a vida e desta para o pensamento. Enfim, do fantástico aumento de complexidade surge o Ser Humano e sua consciência reflexa, o pensamento. Esta nova qualidade de uma evolução consciente e intencional, característica do humano, é sustentada pelas cartografias contemporâneas da abordagem integral da consciência, a exemplo da pesquisa de Maslow, de Rogers, de Jung, de Grof e de Wilber, para citar alguns poucos representantes do movimento humanístico e transpessoal da ciência psíquica de ponta.

Morin, que postula um aspecto meta-natural do humano, afirma que a hominização nos conduziu a um novo início: o hominídeo humaniza-se e, assim, o conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-sócio-cultural, ligados dialeticamente. Nas suas palavras: “Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade”. Neste sentido, a normose se caracteriza pela falta de investimento no potencial psíquico, ético e noético, representando um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.

O terceiro fundamento é o paradigmático, falando no sentido mais amplo que Thomas Kuhn  imprimiu a este conceito. Neste caso, a normose surge quando um paradigma, embora já esgotado no seu potencial criativo e, em algum grau, esclerosado, ainda prevalece, com relação a outro emergente, postulado por um grupo minoritário. Como afirmava Max Planck, segundo Kuhn “Uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela”. Felizmente, existem exemplos de cientistas, filósofos e de grandes pensadores – Edgar Morin representa um ícone desta possibilidade, com a sua vasta obra, que ousa uma reconfiguração dos saberes -, capazes de uma abertura destemida para o novo, com a prudência lúcida de preservar o positivo do antigo. Trata-se da nobreza indicada por esta paradoxal e feliz expressão de Henry Thoreau, a maioria de um!...

Por outro lado, o conceito de normose encontra-se em ressonância com algumas reflexões de Morin, sobre os sete saberes, sobretudo quando, ao analisar as cegueiras do conhecimento, ele fala sobre a força normalizadora do dogma e a proibitiva do tabu, bem como sobre o determinismo de convicções e de crenças e os conformismos cognitivos e intelectuais, que podemos designar como uma normose cognitiva da normalização. Da mesma forma, Morin se refere ao imprinting cultural como uma marca matricial, que estabelece um tipo de conformismo incontestável, que podemos considerar como uma normose do imprinting cultural.

Por ocasião do Encuentro Holístico Internacional, em Mendonza, travei contato com Manfred Max-Neef, Prêmio Nobel alternativo de economia. Na sua conferência, este célebre cientista afirmou que, desde muito cedo, se questionava sobre o que seria a característica singular da espécie humana. A cultura, a inteligência, a linguagem?... Não, pois outras espécies também as desenvolvem. Seria o humor? No seu encontro com outro cientista, Nobel da etologia, Konrad Lorenz, ele soube que não: há outras espécies bem humoradas. Assim, ele prosseguiu com esta indagação até um momento inesperado, no qual o seu pai, um homem por quem ele nutria um grande respeito, lhe indagou: - Meu filho, não será a estupidez?

Max-Neef afirmou que, nesse instante, uma luz se fez e ele se tornou o primeiro estupidólogo! A estupidologia é uma ciência que precisa ser estudada com rigor e urgência. É importante esclarecer que ela se diferencia da inofensiva imbecilidade, por se revestir de racionalidade lógica, sendo exercida, principalmente, através de uma linguagem técnica. A devastação suicida do ecossistema planetário, por exemplo, pode ser justificada ou racionalizada estupidamente, através de uma lógica desenvolvimentista. Eis uma imagem que pode ser uma metáfora desta atitude tão em voga: um homem serrando um galho da árvore – com um elegante discurso sobre o progresso, bem fundamentado estatisticamente -, exatamente onde ele se encontra sentado! Outro notável Prêmio Nobel, Albert Einstein costumava afirmar que, para ele, apenas duas coisas eram infinitas: o universo e a estupidez humana. E quanto ao universo, concluía ironicamente o sábio, ele ainda não estava totalmente seguro!...

Edgar Morin se refere a esta mesma realidade, quando fala da existência de dois cretinismos. O primeiro é o de baixo, de uma cultura de massa banal e de uma mídia alienada, que o mundo universitário, segundo o autor, gosta muito de denunciar. Entretanto, de acordo com Morin, há também uma cretinice do alto, pela qual ele sente uma particular repugnância, própria de uma sub-cultura oficial e intelectual, certo obscurantismo racionalizado, caracterizada pela ignorância e julgamentos a priori, com estereótipos, conformismos e arrogantes idéias convencionais, o que podemos denominar da normose do cientificismo.

Considero a estupidez, assim como a agressão passiva, traduzida pela indiferença dos que não se importam com o bem comum e pela causa humana - que Mahatma Gandhi considerava pior e mais destrutiva do que a violência ativa -, duas características das mais importantes desta doença, insidiosa e trágica, que denominamos de normose.

Como afirma Basarab Nicolescu, três e trans possuem uma mesma raiz etimológica, sendo que o três significa a transgressão do dois, assim como a transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade binária, rumo a uma pluralidade complexa e a uma unidade aberta, duas faces de uma mesma realidade. Adotando o nosso conceito, Nicolescu afirmou, num congresso em Strasbourg, que é preciso ir além da normose do binário.

Enfim, para logramos o que Morin denomina de ética da compreensão – centrada na solidariedade intelectual e moral, a serviço do gênero humano -, necessitamos transgredir a normose, que se encontra nos fundamentos da crise civilizacional contemporânea.

As funções psíquicas

De acordo com a vasta pesquisa do psiquiatra Carl Gustav Jung, há quatro funções psíquicas, inerentes ao ser humano: a do pensamento, a do sentimento, a da sensação e a da intuição. Não é difícil constatar que o diálogo entre o pensamento (racionalismo) e a sensação (empirismo) deu origem à ciência contemporânea. Assim como da aliança da sensação com a intuição deriva a arte; do pensamento com a intuição, a filosofia e do sentimento com a intuição, a mística, da Tradição sapiencial. Assim, quanto ao fundamento individual, os conhecidos quatro fragmentos clássicos epistemológicos surgem da dinâmica criativa de nossas funções psíquicas.

De forma geral, o indivíduo apenas desenvolve uma ou duas destas funções, sendo que as demais permanecem atrofiadas e indiferenciadas. O desenvolvimento das funções deficitárias e a sua integração e harmonização com as demais conduz, segundo Jung, a uma quinta função, que ele denominou de Self, uma inteligência da totalidade psíquica. O enfoque pioneiro junguiano postula, além da mera cura, um processo de individuaçãoque possa conduzir o indivíduo, através de uma via interior e num movimento de circunvolução, da periferia do ego para a centralidade do Self, que é a instância psíquica de onde emana a real compreensão.

Na teoria fundamental da Universidade Internacional da Paz, UNIPAZ, desde o seu evento deflagrador, o I Congresso Holístico Internacional - I CHI, que realizamos em Brasília (1987), esta concepção das funções psíquicas nos orientou, encontrando-se, também, no cerne de nosso consagrado projeto transdisciplinar, com mais de vinte anos de fecunda prática, da Formação Holística de Base – FHB.

Como constata o próprio Morin, não necessitamos pregar a paz, já que todos sabem da sua importância como o único caminho para evitarmos os horrores da guerra. O que realmente urge é uma pedagogia da compreensão humana. Em última instância, educar para a paz é educar para a compreensão. Como? Deparamo-nos, aqui, com a necessidade de uma educação integral, que concilie a dimensão do saber com a do ser.

Falando de outro modo, a compreensão é uma expressão natural da convergência do saber com o ser. Não compreendemos apenas com o saber e nem apenas com o ser. Eis uma aliança perdida, que necessitamos resgatar. Como afirma Ubiratan D’Ambrosio, trata-se de evoluir da arrogância do saber para a humildade da busca. A autêntica busca solicita a elegância da douta ignorância do não saber. Saber não saber, eis a questão! A arte transdisciplinar consiste no equilibrar o saber com o não saber, o aprender com o desaprender, o adquirir conhecimentos com o esvaziar-se do conhecido, o pensar com o não pensar, a reflexão com a contemplação, a palavra com o silêncio...

O paradigma cartesiano do racionalismo científico, que se caracteriza, segundo Morin, pela disjunção, redução e abstração, centrado exclusivamente no saber, foi muito competente para desenvolver uma sofisticada tecnociência que se encontra, infelizmente, desconectada do hemisfério do ser, de onde emanam os valores de uma ética essencial. E sabemos muito bem as conseqüências de uma tecnologia poderosa e desorientada, da ciência sem consciência, da efetividade sem afetividade. Este é o imenso valor de um documento de base da própria UNESCO (1992) que propõe, sustentada na pesquisa e no relatório de Jacques Delors, os quatro pilares de uma nova educação transdisciplinar: educar para conhecer, educar para fazer, educar para conviver e educar para ser. Com os modelos pedagógicos convencionais, de modo fragmentado, temos educado apenas para o conhecer e para o fazer. O imenso e estimulante desafio, que tem a ver diretamente com a questão da compreensão, é educar para conviver – viver consigo, com o outro, com os outros, com a natureza – e, sobretudo, educar para ser.

Holologia e Holopráxis

A célebre Declaração de Veneza (1986), documento redefinidor que resultou de um colóquio organizado pela UNESCO, centrada no tema, A ciência face aos confins do conhecimento: o prólogo de nosso passado cultural, no seu segundo artigo afirma: “O conhecimento científico, por seu próprio movimento interno, chegou aos confins, onde pode começar o diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência e a Tradição, constatamos não a sua oposição, mas a sua complementaridade. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade, até de um novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva metafísica”.

Apontando para esta mesma direção, Morin postula uma racionalidade autocrítica e aberta, capaz de integrar aspectos do que outras culturas não européias desenvolveram e que foram atrofiados no Ocidente, de modo a reparar o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo” e o consumismo. Mas também salvaguardar, regenerar e disseminar o melhor da cultura ocidental: a democracia, a proteção individual e os direitos humanos.

Pierre Weil, para fazer frente a esta lúcida convocação, desenvolveu dois conceitos complementares, que são fundamentais nesta tarefa premente de integrar o hemisfério do saber ao do ser: o de holologia e o de holopráxis. Holologia refere-se à via racional, de estudo, reflexão crítica e de experimentação do paradigma holístico, destinado à dimensão do saber, enquanto a holopráxis consiste no caminho vivencial, de despertar para a visão holística, através de práticas provenientes das Tradições sapienciais, do Oriente e do Ocidente, visando à dimensão do ser.

Apresentamos a integração destas duas vias complementares já no citado I CHI. A holologia, através das conferências, simpósios e sessões de temas livres. A holopráxis, através de espaços vivenciais, facilitados por representantes de diversas Tradições ocidentais e orientais. Da mesma forma, estes dois métodos encontram-se presentes na FHB e em todos os programas e projetos da UNIPAZ, pois é o seu exercício conjugado que abre caminho para a compreensão humana que, por sua vez, é a via direta para a paz.

Método analítico e sintético

Para a elucidação do processo da compreensão, considero imprescindível um aprofundamento na reflexão metodológica envolvida. O que me remete a uma pesquisa, que desenvolvo há mais de duas décadas, no contexto clínico e educacional, sobre a sinergia de dois caminhos de apreensão da realidade: o da análise e o da síntese.

Todos nós, ocidentais, fomos condicionados para a análise, já que o método analítico encontra-se no cerne do paradigma da modernidade, que representou um resgate necessário, compensatório e iluminista, da razão crítica, cuja grande contribuição, no século XVII, foi a de ter evidenciado a consciência dual de diferenciação.

Esboçando um breve resumo, o método analítico é um importante fruto do racionalismo científico, que se ergueu como saudável e necessária resposta ao momento decadente de um indiferenciado obscurantismo medieval, que fazia uma simbiose perversa entre religião e ciência, sob a tirania da Inquisição. Focaliza a parte, buscando as unidades constitutivas, atuando como eficiente bisturi retalhador de totalidades. Diz respeito ao conceito grego de diabolos, o que divide. Gerou o enfoque disciplinar de onde é modelado o especialista, caracterizado pela tendência reducionista e unilateralidade de visão e de ação. A sua base é somática, substancialista. Fundamenta-se nas funções psíquicas do pensamento e da sensação. Sustentado na física mecânica, inclinou-se para um enfoque mecanicista e o seu realismo clássico, que destaca a continuidade, a simplicidade, a causalidade local e a objetividade. Caracteriza-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação matemática. Conforma a base da identidade egóica, de cunho pessoal. Parte da lógica linear da causalidade local, prescrevendo a existência de leis necessárias e gerais, que engendram o determinismo, com pretensão de controle e de previsibilidade. Veste o aparamento sofisticado da exatidão. É progressivo e acumulativo. Parte de uma atitude básica extrovertida, afirmando-se como excelente instrumento de estudo e de exploração do espaço exterior. Tem como meta ideal a objetividade e a isenção valorativa, excluindo o sujeito do campo da ciência. Sua vocação é experimental: seu produto típico é gerado em laboratórios sofisticados com manipulação impecável de variáveis. Seu substrato metafórico neurofisiológico – levando em conta a interconexão cerebral – é o hemisfério dominante, geralmente o esquerdo, da racionalidade, predição e também da angústia humana. Caracteriza a mentalidade típica do ocidental. Postula uma função explicativa: objetiva explicar ativamente o universo. Denominamos de analista ao agente deste método clássico.

Após o grande avanço do Iluminismo do século XVIII, este método iniciou a dar mostras de um esgotamento e de insuficiência, tornando-se fonte de cada vez mais visíveis contradições. Como afirmou Ken Wilber o que era consciência de diferenciação e espírito científico no século XVII degenerou-se, no século XIX, em dissociação e cientificismo. Esta via, trilhada exclusivamente, nos conduziu ao que denomino de uma síndrome de analisicismo, caracterizada por sintomas como os da fragmentação, dissociação, desvinculação, perda de valores fundamentais e de uma atrofia da subjetividade, da intersubjetividade, enfim, da própria interioridade. Como afirmava G. K. Chesterton, o pior louco é o que perdeu tudo, exceto a razão.

Coube ao gênio do filósofo alemão, Wilhelm Dilthey, no século XIX e início do XX, demonstrar a necessidade de outro método, além do analítico. Denunciando as contradições do caminho reducionista científico-natural, na sua teoria da compreensão expressiva, Dilthey fundamenta as ciências do espírito, posteriormente designadas de ciências humanas, afirmando o ser humano como uma unidade, muito além de um conglomerado de átomos. Transcendendo o positivismo, na sua proposta histórico-biográfica, Dilthey prescreve dois caminhos: o da descrição da vida e o dacompreensão da vida por si mesma. “A natureza se explica, a alma se compreende”, bradava o filósofo, afirmando a vida como um mistério insondável, suscetível de ser compreendida por si mesma, como um ritmo todo-e-parte, que pode ser vivenciado, o que desvela significados – mas não explicado. Segundo Christine Delory-Momberger, afirmando a diferença radical que constitui o sujeito humano, Dilthey desenvolveu, contra os métodos analíticos e generalizantes do positivismo sociológico, uma epistemologia fundada sobre o reconhecimento do humano pelo humano, ou seja, sobre a experiência vivida e a compreensão, sendo que o ser humano e a sociedade encontram-se numa relação de inclusão e de ação recíprocas. Tendo consolidado as bases da atual abordagem biográfica, Dilthey considerava a autobiografia como um paradigma de inteligibilidade, a forma mais elevada e instrutiva, a partir da qual se manifesta, para nós, a compreensão da vida.

Seguindo-se a contribuição singular e marcante de Dilthey, outras significativas vozes se levantaram, clamando pela síntese. Jan Smuts, no seu enfoque evolutivo, desvelou o conceito de holismo, definido como um princípio único, organizador de totalidades e criador de conjuntos, num Universo que é sintético, vital e criativo. Carl G. Jung desenvolveu uma interpretação de sonhos em nível do sujeito, denominando-a sintética. Roberto Assagioli desenvolveu uma psicossíntese. Viktor Frankl criou a sua escola de Logoterapia, suportada numa metodologia sintética. Karlfried Graf-Durckhein fundou a terapia iniciática, prescrevendo o que denominava de exercício - uma prática meditativa, de natureza sintética -, para que a essência possa transparecer na existência. Ramon Soler fundou, na Argentina, uma Universidade de Síntese, na qual o método da síntese é também uma via de integração humana. O sábio hindu J. Krishnamurti cuja vida e obra, dedicadas absolutamente ao essencial, mereceu um significativo destaque na abordagem transversal de René Barbier, pode ser considerado um símbolo vivo de encarnação da síntese.

Resumindo, o método sintético delineou-se no final do século XIX, como uma resposta à crise de fragmentação, de dissociação, de desvinculação, enfim, de desumanização. Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, o contexto, visando o processo de vinculação e de unificação. Sua tendência é amplificadora e integrativa. Diz respeito ao conceito grego, oposto ao do diabolos, de symbolos, o fator que religa e restabelece a inteireza. Valorizando a visão inclusiva e global, encontra-se na base do ideal do generalista. É uma via qualitativa, que se indica mais por uma linguagem mitopoética e arquetípica. Fundamenta-se nas funções psíquicas do sentimento e da intuição. Parte de um espaço de indeterminismo, de liberdade e de responsabilidade. A sua base é psíquica e noética. Enfatiza a participação e a singularidade. Ocorre na instantaneidade, no salto abrupto, no insight: é não-cumulativo. Através de uma lógica da simultaneidade, abre-se para o universo aberto da sincronicidade, as coincidências significativas ou princípio de conexões acausais, da transcausalidade, de acordo com a pesquisa junguiana. Reveste-se de tecido vivo, flexível, impreciso, desapegado da exatidão. Amplia-se no aspecto descritivo e biográfico. Guia-se por uma visão introspectiva que descortina e investiga o espaço interior. Abre-se para o além do ego, para a consciência transpessoal. Sustenta-se na microfísica e no realismo quântico, caracterizado pela descontinuidade, princípio de superposição, não-separatividade, não-localidade e indeterminismo. Assume um caráter consciencial subjetivo, a intersubjetividade e os valores. Focaliza a finalidade, o significado, o sentido. Sua vocação é experiencial: seu produto típico é fruto do laboratório vibrante da vivência humana. Seu substrato metafórico neurofisiológico é o hemisfério cerebral não dominante, geralmente o direito, da gestalt, da musicalidade, da poesia e da mística. Caracteriza a mente clássica do oriental. Não se distingue do sujeito. Exerce uma função compreensiva e de comunhão participativa. Denomino de sintetista ao agente deste caminho de apreensão da realidade.

Relaciono, de forma sumária e indicativa, no esquema abaixo, as características básicas do método analítico e do método sintético:

Método Analítico 

Reação ao dogmatismo e obscurantismos medieval
Ênfase na parte
Texto
A serviço da decomposição: diabolos
Funções psíquicas: pensamento e sensação
Especialista
Via quantitativa
Causalidade: determinismo
Lógica linear da sucessividade
Base somática, substancialista
Pessoal
Codificação matemática
Geral, regularidade
Progressividade, acumulação
Espaço exterior: objeto
Controle
Experimental
Macrofísica
Realismo clássico
Metáfora do hemisfério esquerdo
Mente ocidental
Função explicativa
Dois da dualidade
Holologia
Analista


Método Sintético

Reação ao positivismo e analisicismo moderno
Ênfase na totalidade
Contexto
A serviço da religação: símbolos
Funções psíquicas: sentimento e intuição
Generalista
Via qualitativa
Transcausalidade: sincronicidade
Lógica global da simultaneidade
Base psíquica e noética
Transpessoal
Codificação mitopoética, arquetípica
Singular, biográfico
Instantaneidade, não-acumulação
Espaço interior: sujeito
Participação
Experiencial
Microfísica
Realismo quântico
Metáfora do hemisfério direito
Mente oriental
Função compreensiva
Um da unidade
Holopráxis
Sintetista

Arte da integração: o três

É fundamental sublinhar que o método analítico e o sintético não se encontram na relação de antagonismo e, sim, na de complementaridade. O conceito de complementaridade advém da quântica, tendo sido proposto por Niels Bohr, para solucionar o paradoxo partícula-onda, da microfísica. O mesmo pode ser aplicado ao paradoxo metodológico análise-síntese. Uma ênfase unilateral na análise nos conduz ao reducionismo enquanto, na síntese, nos leva ao totalitarismo, extremos equivocados, que precisamos evitar. Gosto de representar o valor inestimável desta heurística sinergia metodológica com o símbolo do infinito aliando, numa dinâmica de interações constantes e paradoxais, o método analítico e o sintético:

Arthur Koestler, sustentando que parte e todo inexistem no domínio da vida, conciliou o atomismo com o holismo, através do seu conceito dehólon – onde holos se refere ao todo e on à parte – referindo-se a um sistema aberto e auto-regulável que apresenta, ao mesmo tempo, propriedades autônomas de um todo e dependentes de uma parte. No seu enfoque, o organismo é considerado como uma hierarquia multinivelar de subtodos, dotados de autonomia relativa.

O símbolo koestleriano para hólon é uma divindade da mitologia romana, Jano, que portava duas faces, voltadas em sentido contrário: uma para frente, representando o futuro e a outra mirando para trás, simbolizando o passado. Assim também cada subtodo, inserido numa escala em ordem ascendente de complexidade possui uma face do “todo”, voltada para os níveis subordinados, enquanto a outra face, voltada para o ápice, é a de uma “parte” dependente.

“Homem algum é uma ilha: cada ser humano é um hólon. Uma entidade bifronte como Jano que, olhando para o seu interior vê-se como um todo único e completo em si mesmo e, olhando para fora, vê-se como uma parte dependente. A sua tendência auto-afirmativa é a manifestação dinâmica de sua condição de todo único, da sua autonomia e independência como hólon. A tendência antagônica, também universal, que é integrativa, expressa a sua dependência do todo maior que integra a sua condição de parte”, afirma Koestler.

Falando de outro modo, há duas tendências básicas na natureza viva: uma de diferenciação e outra de fusão. A de diferenciação é auto-afirmativa, uma força centrífuga que impulsiona para a diferença, a singularidade. A de fusão é integrativa, uma força centrípeta que impulsiona ao pertencimento, à interconexão. A tarefa da saúde é a de manter um equilíbrio sinergético entre essas duas dinâmicas, já que o excesso de diferenciação conduz à patologia do individualismo excluidor e do isolamento. Enquanto o excesso de fusão determina a alienação da simbiose e do absolutismo.

Em convergência, Martin Buber afirma que o duplo movimento de separação e relação define o princípio da vida humana e que só ocorre a relação autêntica quando o outro é colocado na distância justa, para que seja possível o Eu-Tu. Caso contrário, ficamos condenados a uma relação objetal e redutora, que Buber denomina de eu-isto.

Assim, necessitamos da sinergia entre o método analítico – de diferenciação – e o sintético – de fusão. Nem um, nem dois, não mesclar, não separar: eis um princípio transdisciplinar, que solicita o três.

A riqueza do três é a de conter, em si, o um da fusão e o dois da diferenciação. Falando na metáfora do substrato neurofisiológico, o exercício salutar e sábio da integração respalda-se no corpo caloso, que liga os dois hemisférios cerebrais, o da análise e o da síntese. O que a Tradição sapiencial simboliza como a terceira visão ou o chifre do unicórnio. Por esta razão, Carl Sagan afirma que o futuro da educação depende do corpo caloso. Podemos acrescentar: também o da compreensão!

O Tao da compreensão

Lao Tsé afirmava que o alto descansa no profundo. Parodiando o sábio taoista, podemos afirmar que a síntese descansa na análise. O todo descansa na parte, o céu descansa na terra, as asas descansam nas raízes...

Na sua obra, Edgar Morin insiste muito num pensamento de Pascal, uma verdadeira pérola da visão holística: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se entrelaçando umas às outras, por um laço natural e insensível que liga as mais distantes e as mais diferentes, acho impossível conhecer as partes sem conhecer o todo; também acho impossível conhecer o todo sem conhecer as partes.

O sábio e inspirador conceito do Tao, da Tradição chinesa, indica a integração do princípio masculino Yang com o feminino Yin, numa simbólica de interpenetração dos contrários e de harmoniosa transcendência dos opostos. Podemos considerá-lo um símbolo do caminho que conduz à compreensão.

Por outro lado, uma pedagogia da compreensão solicita, de forma imperiosa, a ciência e arte da hermenêutica, sobretudo através do resgate da inteligência simbólica. Inteligência advém de 'inteligere', que significa ler dentro - das letras, dos fatos, das vivências. É esta leitura simbólica que nos permite superar a estupidez normótica de certo literalismo simplista de superfície, fonte dos fundamentalismos e fanatismos tão atuais, não apenas religiosos, mas também ideológicos, mercadológicos, pedagógicos, entre outros. É a hermenêutica que possibilita a necessária apreensão e compreensão da pluralidade de significados e sentidos inerentes a cada fenômeno, a cada crise, a cada vivência.

A capacidade de interpretar vai além do exercício analítico da explicação, incluindo a via sintética, que sonda o sutil e o interior, capaz de extrair uma polissemia de sentidos implicada em cada experiência humana. É também a interpretação que nos eleva da condição de objeto de fatos e de circunstâncias, para o estatuto de sujeito da própria existência, dotado do dom da liberdade. Não somos livres com relação ao que nos acontece; nossa liberdade consiste naquilo que fazemos com o que nos acontece, o que solicita uma arte da escuta que, além da mera audição é, também, interpretação. Um sujeito habilitado no exercício de interpretar, no sentido amplo e transdisciplinar, é também capaz de superar os mais árduos desafios existenciais. Pois a única crise destrutiva que pode ser fatal é aquela, para a qual, não conseguimos extrair nenhum sentido, pela incapacidade de escuta e de hermenêutica.

Os grandes mestres e educadores da humanidade sempre nos alertaram para o perigo do julgamento, que se encontra na fonte de tantos conflitos e dilaceramentos. A compreensão é um eficaz antídoto deste destrutivo jogo bélico de poder, pois quem compreende não julga. O julgamento é o fracasso da escuta e da compreensão.

Edgar Morin afirma, de forma lúcida e ousada, a missão espiritual da educação, na tarefa intersubjetiva de ensinar a compreensão, através das virtudes conjugadas da abertura, da simpatia e da generosidade. Trata-se de uma arte de viver com solidariedade intelectual e moral e com dialogicidade, capaz mesmo de compreender a incompreensão, sem complacência nem acusação, a serviço do homo sapiens demens, da metamorfose e da nossa comunidade de destino.

O Tao da compreensão é o da Aliança entre o saber e o ser. Uma utopia realizável, um caminho para a Paz. 

Roberto Crema

*Paper da palestra centrada na compreensão, proferida na Conferência Internacional sobre os SETE SABERES PARA A EDUCAÇÃO DO PRESENTE, do Edgar Morin, ocorrido em Fortaleza, Brasil, de 21 a 24 de setembro de 2010 (UNESCO, UEC, UCB).

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