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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Faz tempo...


"Faz tempo que, 
para pensar sobre Deus, 
eu não leio teólogos, 
leio os poetas."

Rubem Alves

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os 33 Nomes de Deus


“De vez em quando perguntam-me se acredito em Deus. 
Mas é claro. 
Acredito mais que a maioria das pessoas. 
Tenho até trinta e três nomes para ele. 
Esses nomes foi a Margueritte Yourcenar que me contou. 
Ela foi uma escritora maravilhosa, autora do livro Memórias de Adriano, quem lê nunca mais esquece, quer ler de novo. 
Pois esses são os trinta e três nomes de Deus que ela me ensinou. 
É só falar o nome, ver na imaginação o que o nome diz, para que a alma se encha de uma alegria que só pode ser um pedaço de Deus… Mas é preciso ler bem devagarinho… 
1.Mar da manhã. 
2.Barulho da fonte nos rochedos sobre as paredes de pedra. 
3.Vento do mar de noite, numa ilha… 
4.Abelha. 
5.Vôo triangular dos cisnes. 
6.Cordeirinho recém-nascido…. 
7.Mugido doce da vaca, mugido selvagem do touro. 
8.Mugido paciente do boi. 
9.Fogo vermelho no fogão. 
10.Capim. 
11.Perfume do capim. 
12.Passarinho no céu. 
13.Terra boa… 
14.Garça que esperou toda a noite, meio gelada, e que vai matar sua fome no nascer do sol. 
15. Peixinho que agoniza no papo da garça. 
16. Mão que entra em contato com as coisas. 
17.A pele, toda a superfície do corpo 
18.O olhar e tudo o que ele olha. 
19.As nove portas da percepção. 
20.O torso humano. 
21.O som de uma viola e de uma flauta indígena. 
22.Um gole de uma bebida fria ou quente. 
23.Pão. 
24.As flores que saem da terra na primavera. 
25.Sono na cama. 
26.Um cego que canta e uma criança enferma. 
27.Cavalo correndo livre. 
28.A cadela e os cãezinhos. 
29.Sol nascente sobre um lago gelado. 
30.O relâmpago silencioso. 
31.O trovão que estronda. 
32.O silêncio entre dois amigos. 
33.A voz que vem do leste, entra pela orelha direita e ensina uma canção…” 
Agradeço ao Carlos Brandão por haver me apresentado os trinta e três nomes de Deus da Margueritte. Não é preciso que sejam os seus. Faça a sua própria lista. 
Eu incluiria: 
Ouvir a sonata Apassionata de Beethoven. 
Sapos coaxando no charco. 
O canto do sabiá. 
Banho de cachoeira. 
A tela “Mulher lendo uma carta”, de Vermeer. 
O sorriso de uma criança. 
O sorriso de um velho. 
Balançar num balanço tocando com o pé as folhas da árvore… 
Morder uma jabuticaba… 
Todas essas coisas são os pedaços de Deus que conheço… 
Sim, acredito muito em Deus”.

Rubem Alves

Mais um belo e inspirado texto da série do Quarto de Badulaques (LXXX), de Rubem Alves. Num estilo que lembra vagamente o tom de gratidão natural de Manoel de Barros, o texto de Rubem Alves cita Marqueritte Yourcenar, escritora belga e primeira mulher eleita à Academia Francesa de Letras, em 1980. Não é um compêndio de provas sobre a existência de Deus (ou será que é?), é um poema de gratidão por aspectos manifestados da beleza da existência, cuja procedência e criação ainda é alvo de debate na comunidade humana. Neste texto importa pouco, porque o acreditar de Rubem Alves é um verbo com mais sentido de apreciar e contemplar agradecidamente do que qualquer outra coisa. Texto publicado originalmente no site oficial do autor.

sábado, 28 de maio de 2011

Ostra Feliz não faz Pérola


"Ostras são moluscos, animais sem esqueletos, macias, que são as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, de pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas - são animais mansos - seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem.

Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário.

Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: "Ela não sai da sua depressão...". Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado na sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor.

O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de sua aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava o seu canto triste, o seu corpo fazia o seu trabalho - por causa da dor que o grão de areia lhe causava.

Um dia passou por ali um pescador com seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-a para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele a tomou e deu-a de presente para a sua esposa.

Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzsche observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo.

A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa...”.

Rubem Alves
Livro: Ostra Feliz não faz Pérola

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Milho de Pipoca Por Rubem Alves



A transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser.

O milho da pipoca não é o que deve ser.
Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro.
O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer.
Pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa.

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca para sempre.
Assim acontece com a gente.
As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo.
Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito a vida inteira.

São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas.
Só que elas não percebem.
Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo.

O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos: Dor.
Pode ser fogo de fora: perder um filho, o pai ficar doente, perder o emprego, ficar pobre.
Pode ser fogo de dentro: pânico, medo, ansiedade, depressão – sofrimentos cujas causas ignoramos.

Há sempre o recurso do remédio.
Apagar o fogo.
Sem o fogo o sofrimento diminui.
E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pensa que sua hora chegou: vai morrer.
Dentro da sua casca dura, fechada em si mesmo.
Ela não pode imaginar destino diferente.
Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada.

A pipoca não imagina aquilo de que é capaz.
Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo a grande transformação acontece:
PUM! – e ela aparece como uma outra coisa completamente diferente que ela mesmo nunca havia sonhado.

Bom, mas ainda temos o piruá que é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
São aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar.
Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
A sua presunção e o medo são a dura casca do milho que não estoura.

O destino delas é triste.
Ficarão duras a vida inteira.
Não vão se transformar na flor branca e macia.
Não vão dar alegria para ninguém.
Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Rubem Alves

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Solidão Amiga Por Rubem Alves




A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos, poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.

O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.

Rubem Alves
(Correio Popular, 30/06/2002)

Fonte:
rubem alves

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Proseando Por Rubem Alves



Prosear é um jeito de falar. Fala sem objetivo definido, como o vôo dos urubus - indo ao sabor do vento. Palavras fluindo. Um jeito taoísta de ser. Para prosa não existe 'ordem do dia', não há conclusões, não há decisões. A prosa não quer chegar a nenhum lugar. A prosa encontra sua felicidade em prosear. Como andar de barco a vela em que o bom não é chegar mas o 'estar indo'. 'A coisa não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia', Guimarães Rosa. Prosear é brincar com as palavras. Escrevi uma crônica com o título Tênis x Frescobol, sobre dois tipos de fala. Fala do tipo Tênis tem um objetivo preciso: reduzir o outro ao silêncio por meio de uma cortada. Ter razão. Ganhar o argumento. Convencer. Sempre termina mal. Um ganha, fica feliz e se sentindo superior. O outro perde, fica com raiva e se sentindo inferior. Frescobol é diferente. A felicidade do jogo está em estar acontecendo, em não parar, vai, vem, vai, vem, vai, vem, como numa transa indiana, sem orgasmo, feita de um prazer permanente que não acaba. O orgasmo na transa, como a cortada no tênis, são o fim do brinquedo. Saber prosear, jogar conversa fora, é o segredo das relações amorosas. Nietzsche dizia que quando se vai casar a única pergunta importante a se fazer é 'terei prazer em conversar com essa pessoa quando eu for velho?' Nessa sala estaremos proseando. Falar sobre o que der na telha. Pensamentos avulsos. Dicas. Informações sobre as coisas novas na minha casa. Apareça sempre para prosear!


Fonte:
Texto Proseando de Rubem Alves

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quarto de Badulaques (XXIII) Por Rubem Alves





Quarto de badulaques (XXIII)

Assim diz a Cecília Meireles: “Foi, desde sempre, o Mar...” Diz a Cecília? O certo não seria “disse”? Pois o poema foi escrito há muito tempo, pertence ao passado... E a Cecília já não vive entre nós. Vive, encantada, como peixe no fundo do Mar... Não. O certo é “diz”. Porque as palavras dos poetas são eternas. São ditas sempre no presente. O tempo não pode com elas. Pode ser que minha memória me falhe – amigos têm estado a me advertir de que estou repetindo coisas que já disse. Os velhos vão ficando de memória fraca – há, inclusive, uma triste e curiosa doença da memória, ela guarda o que foi dito há muitos anos e não guarda o que foi dito alguns segundos antes – sobre isso leiam o livro de Oliver Sachs, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu; tudo o que o Oliver Sachs escreve merece ser lido - lembro-me de uma conversa com minha tia Cecília, já velha, era uma conversa sem jeito porque ela ficava repetindo perguntas que havia feito há menos de um minuto, mas sua memória se esquecera não só da pergunta como também da resposta, e era inútil responder porque a mesma pergunta seria feito de novo - até me esqueci do que queria dizer, o que talvez seja uma prova de que meus amigos estão certos – lembrei-me, remexendo a minha memória não me lembro de que a Cecília tenha usado jamais a palavra Deus – muito embora os seus poemas estejam perpassados do sentimento de assombro ante o Grande Mistério que nos cerca. E que metáfora mais bela para o Grande Mistério pode existir que o Mar, que desde sempre foi? Lá está ele, enorme, sem fim, sua superfície azul escondendo os mistérios das profundezas! Silencioso, o Mar não revela os seus segredos. Sem nada saber, só nos resta ver e sonhar. E ficamos a imaginar o que estará lá no fundo! E a nossa imaginação coloca nas profundezas do Mar Sem Fim os seres que nadam em nosso pequeno mar chamado alma! Toda alma é também um mar. Assim são todas as palavras que se dizem sobre Deus. Tolos, os homens acreditam que as palavras que se dizem sobre o Mar Sem Fim revelam o seu mistério. Alguns há, atrevidos, que chegam a dizer que um Peixe Dourado, saído do fundo do mar, lhes contou os segredos... E andam por aí a espalhar as fantasias das suas almas como se fossem a verdade de Mar Sem Fim. (E por falar em Peixe Dourado, você sabe a razão por que os cristãos comem peixe na semana santa? Por favor, não repita a bobagem de que é por que carne de vaca tem sangue, e é como se estivéssemos bebendo o sangue e comendo a carne de Cristo. Pois não foi o próprio Cristo que disse que era necessário que comêssemos sua carne e bebêssemos do seu sangue? Então, a razão deve ser outra... Ou será que você come peixe sem saber por que?... ). Certo está o Alberto Caeiro que diz: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus. Porque Deus quis que não o conhecêssemos. Por isso se nos não mostrou. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela minha porta dentro dizendo-me: Aqui estou!” Com o que concorda Walt Whitman: “Eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso acerca de Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte.” Emily Dickinson, mulher frágil dotada de asas, tinha um delicado senso do Mistério. Mas, por isso mesmo, por sentir-se assombrada pelo Mistério que nos cerca, desprezava aquilo que sobre ele diziam os religiosos. “Alguns guardam o Domingo indo à Igreja - Eu o guardo ficando em casa - Tendo um Sabiá como cantor - E um Pomar por Santuário. - Alguns guardam o Domingo em vestes brancas - Mas eu só uso minhas Asas - E ao invés do repicar dos sinos na Igreja - Nosso pássaro canta na palmeira./ - É Deus que está pregando, pregador admirável - E o seu sermão é sempre curto. Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final - eu o encontro o tempo todo no quintal.” Mas, afinal de contas, o que é que o Sabiá diz com o seu canto? Nada. Canto de Sabiá não é pra ser compreendido. É pra ser amado. Bem disse o avô Celestino, lá das bandas do Manoel de Barros, que “Deus é assunto delicado de pensar; faz conta um ovo: se apertamos com força parte-se; se não seguramos bem cai.” Tantas coisas loucas os homens pensam sobre Deus. Esses tais se parecem com um Tico-tico que me visita sempre. Pois ele se assenta no parapeito da janela e fica a bicar o vidro. Se lhe perguntássemos da razão por que bica o vidro ele nos responderia: “O que é vidro? Não estou bicando vidro. Bico esse Tico-tico à minha frente, invasor do meu espaço. Mas o danado é esperto. Ele sempre advinha onde vou bicar e se defende. O meu bico sempre bate no bico dele. Ele parece nada sofrer. Mas o meu bico está doendo...” Pobre Tico-tico. Ele não sabe o que são espelhos. Assim são os homens: vêem o seu rosto refletido nas águas do Mar Sem Fim e pensam que a imagem que vêem é o rosto do Senhor do Mar, olhando para eles. Como o Tico-tico, eles não se dão conta de que estão vendo sua própria imagem, refletida. Se você quiser saber como é a alma de uma pessoa, peça-lhe falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus ela estará falando sobre si mesma. Pessoas vingativas têm um deus vingativo. Como disse Bachelard, para se acreditar no inferno é preciso ter muitas vinganças a realizar. Pessoas que se deixariam comprar por bajulações e favores têm um Deus que se deixa comprar por bajulações e favores... Acham que isso é normal. Pessoas com alma policial têm um Deus carrasco... Pessoas que amam a música têm um Deus que é música... Pessoas que amam jardins têm um Deus jardineiro...

Cliquei o botão do controle remoto da televisão e me vi dentro de um enorme templo, completamente lotado. O programa se chamava, se não me engano, O culto em sua casa. O pregador dizia aos fiéis: “A dúvida é a principal arma do diabo”. Ele não teve coragem de dizer tudo o que essa afirmação piedosa contém. Se ele está no púlpito, lugar sagrado, deve ser bispo ou missionário. Sendo bispo ou missionário, tem acesso privilegiado a Jesus: o Peixe Dourado lhe revelou pessoalmente os mistérios do Mar... Fala diariamente com Jesus. Segue-se que aquilo que ele fala são as palavras de Jesus. Assim, se alguém tem dúvidas sobre o que ele diz, está duvidando de Jesus. Conclusão: quem duvida do que ele diz está enredado nas artimanhas do diabo... Penso o contrário: que as convicções são as principais armas do diabo. As maiores atrocidades da história da humanidade, religiosas e políticas, foram cometidas por pessoas que não tinham dúvidas sobre a verdade dos seus pensamentos. As pessoas que duvidam, ao contrário, são tolerantes. Sabem que o que pensam não é a verdade. Seus pensamentos não passam de “palpites”. Por isso ouvem o que os outros têm a dizer, pois pode ser que a verdade esteja com eles... As religiões ocidentais, o Cristianismo e o Islamismo, se construíram sobre certezas. Sempre tiveram medo da dúvida. Sobre os que duvidavam, colocaram a ameaça das fogueiras ou do inferno. E isso deixou marcas tão profundas nas pessoas religiosas que, ainda hoje, elas têm medo de duvidar. O que significa: elas têm medo de pensar. Contentam-se em repetir o que lhes foi dito. Porque é com a dúvida que o pensamento se inicia. Mas eu não respeitaria um Deus que, havendo nos dado asas nos proibisse de voar. Contra o autoritarismo das certezas só há um remédio: o humor. Como o filme Deus é brasileiro. Deus, cansado de ser Deus, resolveu tirar umas férias. Viajaria por uma outra galáxia. Mas teria de deixar uma outra pessoa no seu lugar, durante a sua ausência. Lá de cima escolheu o homem que mais competência teria para assumir suas funções. Assim, baixou sobre essa terra e pôs-se a procurá-lo. Depois de muitos desencontros, finalmente o encontrou. Sua busca havia chegado ao fim! Poderia iniciar suas férias! Que nada! O dito homem que ele escolhera era ateu. Acontece conosco o que acontece com os galos. Quer o galo cante, quer não cante, o sol sempre aparece... Assim, podemos cantar ou não cantar, desafinar ou inventar um canto dodecafônico, o Sol nem liga. Como diz a Cecília: “Foi, desde sempre, o Mar”, indiferente ao que pensamos...

Rubem Alves


(Correio Popular, 04/05/2003)


Fonte: rubem alves


Meu Comentário:
O Mar...com fim ou sem fim...
Os sábias...
Tudo enfim...
Prestou atenção nessa frase:
"Se voce quiser saber sobre a alma de uma pessoa, peça-lhe falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus ela estará falando sobre si mesma".
E...não precisa falar mais nada...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Carpe Diem




"Carpe Diem"
quer dizer "colha o dia".

Colha o dia
como se fosse um fruto maduro
que amanhã estará podre.

A vida não pode ser economizada para amanhã.

Acontece sempre no presente.


Rubem Alves

quinta-feira, 19 de agosto de 2010