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sábado, 1 de novembro de 2014

Relação entre psique e corpo, vida e forma, espírito e matéria







A misteriosa relação existente entre vida e forma, entre psique e corpo e, por fim, entre Espírito e Matéria, sempre atraiu o interesse do homem, não apenas do ponto de vista científico como também do filosófico, sendo as mais diversas possíveis as respostas dadas a este problema.

Se, por exemplo, nos reportarmos a Descartes, veremos que ele afirma existir "uma irredutibilidade radical entre a alma e o corpo".

Recuando ainda mais no tempo, nos deparamos com Platão a declarar:

"É esse o grande erro do nosso tempo... Os médicos mantêm separada a alma do corpo".

Com base nisso, percebe-se que ele julgava existir uma imprescindível unidade entre o espírito e a matéria, entre a psique e o corpo, e assim chegava a concordar intuitivamente com aquela que é uma das verdades fundamentais do esoterismo: a unidade da vida.

"É um dos postulados fundamentais do esoterismo o de que matéria e espírito são uma mesma coisa, não se distinguindo senão por suas respectivas manifestações e pelas percepções limitadas que são as do nosso mundo sensível." (Das Cartas dos Mahatmas).

Isso concorda perfeitamente com o continuum postulado por Einstein como base da física universal.

De fato, com suas geniais descobertas sobre a constituição da matéria, Einstein provocou uma reviravolta na concepção dual energia e matéria, reconduzindo tudo a uma única realidade, talvez inacessível ao entendimento intelectual, mas a partir da qual é possível estabelecer matematicamente propriedades e deduzir leis físicas experimentalmente verificáveis.

Todavia, o homem ainda está longe de poder reconhecer efetivamente esta unidade, pois a sua consciência se acha identificada com a forma exterior, que ele julga ser a única realidade, e entra em contato com o mundo objetivo somente através dos cinco sentidos, enquanto ele ainda não desenvolveu a sensibilidade no plano das energias sutis e invisíveis.

Por isso, tudo o que nos pode provar a existência de uma "relação" entre o que há para lá do mundo sensível e da matéria é útil para nos conduzir pouco a pouco à reconquista da unidade subjacente à aparente dualidade.

Algo que nos pode ajudar nesse sentido é o estudo das influências da psique sobre a somatização, estudo de que se ocupa a medicina psicossomática, uma das correntes da medicina atual que admite haver determinada influência das emoções e dos estados psíquicos sobre o organismo, capaz de produzir distúrbios, mal-estares e doenças reais.

Há alguns decênios, o corpo e as suas funções eram considerados pela medicina somente em termos fisioquímicos, sendo o ideal do médico tornar-se, como diz Alexander, famoso médico psicossomático americano, "um engenheiro do corpo humano".

Hoje, ao contrário, foi se delineando no campo da medicina uma cor- rente bem definida, que considera o homem uma unidade biopsíquica, um indivíduo, não somente um corpo, mas um conjunto de pensamentos, de emoções e tendências funcionando de maneira coordenada sob a orientação de um eu consciente.

Cada um desses aspectos do indivíduo influencia o outro, pois guardam todos entre si relações que, mesmo ainda não totalmente esclarecidas pela ciência, deixam no ar a sua presença.

Foi o advento da psicanálise que modificou as concepções materialistas da medicina, com a descoberta do inconsciente e o estudo dos bizarros fenômenos da sintomatologia neurótica, que produz distúrbios que podem ser considerados verdadeiros processos patológicos.

Sobretudo, o estudo da "conversão de sintomas" na histeria possibilitou a compreensão de como os conflitos psíquicos inconscientes, os traumas removidos, podem se "converter" em mal-estares e distúrbios somáticos, pois tendo sido impedida a sua descarga externa pela repressão inconsciente, eles são descarregados sobre o físico.

Pouco a pouco, após novas observações e estudos, o campo de investigação e descoberta foi se ampliando a ponto de, hoje, a medicina psicossomática admitir a presença de influências emotivas e psíquicas sobre a somatização, não somente nos indivíduos neuróticos como também nos normais que tenham, porém, problemas emotivos não resolvidos, preocupações que se furtam de enfrentar e reconhecer, ou então nos que são submetidos a um stress contínuo e torturante.

A palavra stress deriva da física e da engenharia, onde, como é sabido, ela tem um significado bastante preciso, qual seja "solicitação", tratando-se de uma força que, aplicada a um dado sistema, pode alterá-lo.

Em sentido patológico, tal palavra passou a designar qualquer problema ou situação que nos provoque um estado de ansiedade ou de tensão. Isso nos leva a pensar que, se conseguíssemos manter um estado interior de serenidade, de calma e confiança em todas as situações difíceis de nossa vida, em face de qualquer acontecimento, mesmo grave, de modo a poder enfrentá-lo com coragem, lucidez e sobretudo com perfeita tranqüilidade emocional, provavelmente poderíamos evitar a maior parte dos nossos mal-estares físicos.

Todavia, esta "tranquilidade emocional" representa uma meta a ser alcançada depois de uma série de amadurecimentos e progressos; por enquanto, portanto, as palavras expressas acima representam somente uma indicação teórica.

Mesmo as doutrinas espirituais e esotéricas interpretam a maior parte das doenças físicas como conseqüência da falta de harmonia interior.

No livro de Alice A. Bailey, A Cura Esotérica, pode-se ler: 


"Todas as doenças são efeito de desarmonia entre forma e vida. O que une forma e vida... é a alma no homem e o Si humano.Quando é falho o alinhamento entre estes dois fatores, alma e forma, vida e expressão, sujeito e objeto, insinua-se a doença..." (p. 27).

A harmonia entre "vida e forma", entre alma e personalidade, pode ser alcançada somente quando se der o alinhamento e a integração de todos os aspectos do homem, ou melhor, podemos dizer que toda vida é uma passagem da desarmonia para a harmonia, da desordem para a ordem, da multiplicidade para a unidade.

Isso nos indica, em certo sentido, o programa a ser desenvolvido, o caminho a ser seguido para o nosso amadurecimento interior, meta esta que toda a humanidade, mesmo inconscientemente, tende a alcançar através de crises e sofrimentos, até que a consciência, desperta, não assuma o direcionamento das energias que compõem a nossa personalidade e não cumpra voluntária e conscientemente o trabalho de harmonização e de integração.

Em nível diverso, a psicologia profunda também persegue este objetivo e procura levar o homem para a completa auto-realização, orientando-o ao longo do caminho do conhecimento integra de si mesmo e da superação dos conflitos interiores.

A esta altura, torna-se necessário dizer que a origem da doença não é somente psicológica e subjetiva, mesmo que a maioria das doenças tenha sempre um componente psíquico.

Existem outras causas que as doutrinas esotéricas reportam ao Carma individual e também coletivo de toda a humanidade.

Tal assunto é extremamente amplo e, para dizer a verdade, ainda     um pouco obscuro e complexo, pois o aspecto esotérico das doenças e o seu estudo é algo ainda muito novo para o estágio atual de evolução da humanidade,tanto como a própria medicina psicossomática, que mesmo tendo muitos adeptos e seguidores entre os médicos, ainda é hostilizada e mesmo ignorada pela maioria.

Faz pouco que o pensamento dos homens começou a se orientar nessa direção, por isso somente uma minoria começa a se fazer sensível às energias sutis e ao mundo, das causas e significados, oculto sob as aparências fenomênicas.

Portanto, tudo o que se exprime a esse respeito será necessariamente parcial e incompleto, sendo apresentado sobretudo como um argumento sobre o qual refletir e meditar.

Nessa matéria, nada mais fácil do que recair na superstição e na atitude anticientífica, o que pode levar a um ocultismo e a um fenomenismo nocivos, que devem ser evitados a qualquer custo, pois estes, ao invés de nos guiar para a luz e para um progresso efetivo, nos levariam para trás, provocando a nossa regressão a estágios evolutivos há muito superados.

Hoje, as doutrinas esotéricas também devem ser difundidas como uma ciência, como um conjunto de conhecimentos baseados em pesquisas sérias e no estudo de aspectos e manifestações que, se não agora, certamente no futuro, poderão ser verificados e experimentados cientificamente.

Eis por que, juntamente com o estudo dos enunciados e explicações esotéricas e espirituais referentes às doenças do homem, é oportuno levar em consideração também tudo aquilo que foi observado pela medicina psicossomática e, além disso, procurar traçar um paralelo entre esta última e a medicina esotérica, destacando, na medida do possível, as analogias e os pontos de contato entre as duas.

O dever do estudioso do esoterismo, hoje, é o de estar no mundo e não o de abstrair-se dele, e de levar ao mundo o conhecimento e a luz que ele possui, tornando-se intérprete das verdades ocultas e traduzindo-as em termos compreensíveis e aceitáveis.

É útil, portanto, saber até que ponto chegaram as pesquisas e experimentações da medicina psicossomática e acompanhar os progressos — contínuos, embora lentos — da ciência em direção ao descobrimento da verdadeira natureza do homem.

Devemos, portanto, considerar, mesmo que rapidamente, os pontos de vista da medicina psicossomática.

A medicina psicossomática, conforme dissemos, reconhece o peso das influências emotivas e psíquicas sobre a saúde e divide os doentes em três categorias, conforme está escrito no tratado Medicina psicossomática de Weiss e English (ed. Astrolábio):

1º grupo:

Todos os que, não sendo loucos e tampouco neuróticos, apresentam uma doença que nenhuma alteração orgânica definida pode explicar.

A medicina psicossomática se interessa sobretudo por esse primeiro grupo. São os casos puramente "funcionais" da medicina prática.

2º grupo:

Todos os pacientes que apresentam distúrbios parcialmente provocados por fatores emotivos, mesmo que se verifiquem alterações orgânicas.

Este segundo grupo é mais importante do que o primeiro do ponto de vista do diagnóstico e da terapia, pois o fator psicogênico pode provocar, nesse caso, danos muito mais graves, devido à presença também de uma doença orgânica.

3º grupo:

Todos os distúrbios geralmente considerados de domínio essencialmente somático, mas que implicam também o sistema nervoso vegetativo, como, por exemplo, a hemicrania, a asma, a hipertensão essencial etc.

Com base nessa subdivisão esquemática, é possível deduzir que no pensamento dos médicos está se delineando também um outro problema muito importante, ou seja, o da eventual relação entre distúrbio psicológico e alteração anatômica.

Em geral, os médicos psicossomáticos distinguem as doenças como sendo orgânicas e funcionais.

As primeiras são as que apresentam alterações celulares e lesões anatômicas, as segundas são as que não apresentam alterações celulares nem lesões anatômicas e, portanto, devem ser consideradas "psicogênicas".

A concepção de doença que vem se transmitindo desde o século XIX poderia ser indicada da seguinte maneira:

Alteração celular - lesão anatômica - distúrbio funcional.

No século XX esta fórmula sofreu uma mudança e passou a ser expres- sa da seguinte maneira:

Distúrbio funcional - alteração celular - lesão anatômica.

Nada se sabe ainda, do ponto de vista científico, quanto ao que poderia preceder o distúrbio funcional, mas no futuro talvez se possa apontar um distúrbio psicológico como responsável por uma alteração funcional, através de uma determinada relação comprovável cientificamente.

A fórmula citada acima poderia, então, ser expressa da seguinte maneira:

Distúrbio psicológico - deficiência funcional - alteração celular - lesão anatômica.

A medicina psicossomática admite esta relação como uma hipótese bastante provável e, mesmo considerando a relação entre estado emocional e órgão físico ainda misteriosa, não afasta a possibilidade de que um fator psíquico venha, com o passar do tempo, a influir até mesmo sobre a matéria física e a produzir até mesmo uma lesão anatômica.

Isto é extremamente importante, pois nos traz de volta ao problema que mencionamos no início, ou seja, à misteriosa relação que une a psique ao corpo, o espírito à matéria.

Do ponto de vista esotérico, o homem é considerado uma unidade complexa, constituída de vários aspectos ou "veículos" subordinados a um centro de consciência de origem espiritual, o qual é chamado Si, Alma ou Eu Superior, sendo considerado o Verdadeiro Homem.

O corpo físico é o mais exterior destes veículos, sendo tido somente como um instrumento de expressão e de experiência do Si no plano material.

Portanto, não há uma "cisão" entre o espírito e a matéria, mas somente uma graduação de nível vibratório, pois todos os aspectos do Si, inclusive o veículo físico, emanaram do próprio Si para poderem se exprimir.


Portanto, o problema da relação entre vida e forma, se considerado do ponto de vista das doutrinas esotéricas, pode ser facilmente resolvido, porquanto se trata de um fenômeno semelhante ao da indução eletromagnética. De fato, é preciso imaginar os veículos do homem como "campos de energia" em contínuo movimento e em comunicação entre si.

Estes campos de energia (que poderiam corresponder à "psique" da psicologia) constituem a ponte entre o espírito e a matéria, entre o Pai e a Mãe, como são simbolicamente chamados estes dois aspectos do Uno.

"O Pai-Mãe fia um tecido, cuja extremidade superior está presa ao Espírito-Luz da Escuridão Una e a inferior a seu escuro fim, a Matéria. Este é o Tecido do Universo, tecido com as duas substâncias fundidas em uma." (Helena P. Blavatsky: Doutrina Secreta - Estâncias de Dzyan).

O homem, microcosmo que reflete o macrocosmo, revive em si mesmo esta verdade universal e nele o corpo físico pode ser considerado "o escuro fim do Tecido", e o Espírito "a Luz", enquanto a sua psique (isto é, os vários veículos) representam "o tecido do meio".

Portanto, para o esoterismo a relação entre Espírito e corpo não representa um mistério, sendo considerada, do ponto de vista energético, como sempre presente e atual.

A cisão existe do ponto de vista da consciência, pois o homem não tem consciência de si mesmo, já que se identificou com a extremidade mais densa e exterior do "tecido", com a parte mais superficial e mecânica de sua natureza, vivendo na inconsciência de sua origem e de sua realidade profunda.

Esta é a razão pela qual a ciência que pesquisa e indaga dos fenômenos baseando-se no seu aspecto objetivo e partindo, por assim dizer, do exterior, topa freqüentemente com obstáculos intransponíveis e aparentemente inexplicáveis.

De fato (citando Aurobindo), "parece evidente que analisando o físico e o sensível nunca chegaremos ao conhecimento do Si, de nós mesmos ou d'Aquele que chamamos Deus... Portanto, se existe um Si, uma Realidade não evidente para os nossos sentidos, é preciso procurá-la com outros meios que não os da ciência física". (De A síntese da Yoga, vol. II, p. 22.)

E que outros meios são esses?

Sobretudo o estudo da consciência do homem, que é uma realidade subjetiva, em face da qual até mesmo os cientistas se sentem perplexos. 

O conhecido biólogo C. H. Waddington escreve a este respeito:

"Nos deparamos, no que respeita à consciência de si, com um mistério fundamental que ocupa o centro de toda a nossa vida ..."

De fato, não há como classificar e estudar "cientificamente" a consciência, entendida como autoconsciência, fenômeno em si totalmente independente dos fatos físicos.

É justamente na análise dos fenômenos subjetivos da consciência e no desenvolvimento gradativo desta que o esoterismo e a ciência talvez possam se encontrar através da psicologia, que se pode considerar hoje como uma ciência verdadeiramente fundamental para a vida.

A medicina psico-espiritual procura investigar as causas das doenças do homem servindo-se não somente dos meios oferecidos pela psicologia como também dos meios oferecidos pelas doutrinas esotéricas e, considerando as doenças como alterações da relação existente entre psique e corpo, e espírito e matéria, pode ajudar a nos conhecermos melhor e a alcançarmos a harmonia e a auto-realização.

Fonte:
Medicina Psico-Espiritual
Angela Maria La Sala Bata
Tradução de Pier Luigi Cabra

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O Timo


O timo é um órgão bilobado que faz parte do sistema imunológico, ou seja, do sistema de defesa do organismo, encarregado de detectar e repelir a invasão de diferentes tipos de microorganismos (vírus, bactérias, fungos, protozoários, vermes, etc.).

Situado no peito, atrás do osso esterno, seu produto são os linfócitos-T, chamados assim por serem derivados do timo (T de timo-derivados). Além dos linfócitos-T, existem no organismo outros tipos de linfócitos que não são produzidos no timo, como os linfócitos-B, envolvidos na produção dos anticorpos. 


No entanto, os linfócitos-T constituem os elementos centrais no funcionamento do sistema imunológico, e por este papel central, sua ausência (ou a ausência do timo) frequentemente resulta na morte do indivíduo. Clara expressão da importância dos linfócitos-T é o quadro da AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida), doença em que o vírus HIV determina a queda progressiva das defesas do organismo e a morte do indivíduo, ao destruir seletiva e gradualmente grande parte dos linfócitos-T. 


O timo já está presente no nascimento, desempenhando um papel fundamental do fim da gestação à infância. Na adolescência, ele começa a regredir, de forma que no indivíduo idoso sobra apenas um pequeno resto atrofiado. No entanto, seu declínio na vida adulta não acarreta nenhum problema para o organismo, uma vez que o produto do timo, os linfócitos-T, já foi exportado e distribuído por todo o corpo, onde poderá exercer sua importante função durante toda a vida do indivíduo. 


De forma metafórica podemos dizer que, na vida adulta, o timo está distribuído por todo o organismo. A capacidade dos linfócitos e de outras células do sistema imune de atuar frente aos patógenos deriva da existência, em sua membrana celular, de receptores que reconhecem (enxergam) as estruturas (moléculas) dos diferentes microorganismos. Esses receptores se encaixam perfeitamente nas moléculas dos patógenos, como se tratasse de uma chave e uma fechadura.


As células evolutivamente mais antigas do sistema imunológico, como os macrófagos, apresentam em sua superfície uma coleção de receptores diferentes (um conjunto de chaves diferentes), sendo que cada tipo de receptor é capaz de interagir com um tipo de estrutura do universo dos micro organismos. Do ponto de vista da capacidade de reconhecimento, todos os macrófagos são iguais, uma vez que todos expressam o mesmo conjunto de receptores. Por outro lado, como este conjunto inclui por volta de 30-40 tipos de receptores diferentes, pode-se dizer que o repertório de reconhecimento dos macrófagos não é muito amplo.


Já nos linfócitos, tanto nos linfócitos-T como nos linfócitos-B (que são produzidos na medula do interior dos ossos), a estratégia de reconhecimento apresenta algumas diferenças fundamentais em relação à do macrófago. Em primeiro lugar, cada linfócito apresenta um único tipo de receptor em sua superfície, receptor que é específico para uma única estrutura molecular (uma única chave que se encaixa em uma única fechadura). Segundo, cada linfócito expressa um tipo de receptor diferente, comportando-se como se fosse um superespecialista, equipado para reconhecer uma única estrutura. Como temos um número enorme de linfócitos em nosso organismo (na faixa de trilhões), possuímos um número igualmente elevado de receptores diferentes, podendo-se dizer que, em conjunto, os linfócitos dispõem de possibilidades quase ilimitadas de reconhecimento. 


Na realidade, o conjunto de especialidades desse exército linfocitário é tão amplo que, para qualquer estrutura molecular presente na natureza, e até mesmo para as que foram sintetizadas pelo homem e não existem em forma natural, sempre haverá algum linfócito que a reconheça. 


Assim, o surgimento do sistema linfocitário (que veio a acontecer quando apareceram os vertebrados) representou uma expansão imensa das formas de reconhecimento, um grande aperfeiçoamento das possibilidades de defesa do organismo. Esta otimização do reconhecimento foi de tal ordem que contribuiu para o aumento do tempo de vida dos vertebrados em relação ao dos seus predecessores.


Agora, como é possível que o timo (assim como a medula) consiga fabricar trilhões de células, cada uma delas equipada com um tipo de receptor diferente? A gênese de um exército tão variado é garantida por mecanismos genéticos especiais que criam ao acaso uma grande diversidade de receptores, de um único tipo para cada linfócito. A geração de tal diversidade acontece de forma semelhante à operação em um imenso vestiário, onde, com quinhentos pares de sapatos, quinhentas camisas e quinhentas calças, um indivíduo pode se vestir de até 125 milhões de formas diferentes (500 vezes 500 vezes 500). Na nossa analogia, um determinado linfócito escolheria (ao acaso) um par de sapatos, uma camisa e uma calça deste grande vestiário, enquanto que o linfócito ao lado escolheria (também ao acaso) uma outra combinação de peças. 


A geração de uma diversidade tão ampla determina, entretanto, um grande perigo potencial, a possibilidade de se gerarem estruturas que reconheçam os constituintes das células do organismo. Como os diferentes tipos de receptores linfocitários são gerados às cegas, com antecedência à entrada dos patógenos e na ignorância de quais são os constituintes moleculares dos patógenos e quais os das células do indivíduo, a existência de linfócitos com reatividade frente às estruturas próprias torna-se uma consequência inevitável. Dessa forma, para impedir as consequências desastrosas de uma auto-agressão, um processo de seleção (educação ou aprendizado) torna-se necessário. No que se refere aos linfócitos-T, este processo acontece no próprio timo, onde, assim que formados, eles são checados quanto a sua capacidade de reconhecimento e eliminados ou desarmados quando reconhecem as estruturas de nosso próprio corpo. 


Todo dia, desde o nascimento até a adolescência e a partir daí de forma mais discreta, são gerados no timo milhões e milhões de linfócitos-T, dos quais somente vão ser deixados com todo o potencial beligerante aqueles que não corram o risco de reconhecer e atacar as estruturas moleculares do indivíduo. 


Assim, a construção do exército que irá fazer frente aos eventuais futuros invasores microbianos se dá por referência às estruturas próprias, alistando nas fileiras unicamente guardiães que respeitem a composição molecular do indivíduo. Dessa forma, a atividade de defesa dos linfócitos-T deriva de sua capacidade de reconhecer e eventualmente destruir o que é estranho ao indivíduo, qualquer entidade que lhe seja molecularmente diferente, diversa das estruturas moleculares próprias. 


A capacidade de distinguir o próprio do não-próprio é uma das características fundamentais das células do sistema imunológico, sendo que, no caso dos linfócitos-T, esta propriedade não é geneticamente determinada, mas aprendida durante seu desenvolvimento no timo. É por meio do conhecimento do que é o próprio que se constrói a relação com o mundo de fora.


O timo é, portanto, o educador que garante o respeito à identidade molecular do organismo. Tolerância ao próprio e potencial de reatividade ao que não é próprio constituem os produtos desse processo educativo, garantindo uma forma de reconhecimento dos patógenos muito mais refinada que a das células da estirpe macrofágica. 


Após sofrerem a educação tímica, os linfócitos-T deixam o timo e vão patrulhar incessantemente todo o organismo, vasculhando por todo lado, dentro e fora das células, à procura das fechaduras em que suas chaves se encaixam. No caso de uma infecção, uma pequena fração desse imenso exército linfocitário poderá reconhecer as estruturas moleculares do micro organismo desencadeante e, reagindo a elas, propiciará diversas ações que levarão à erradicação do agente infeccioso.


Pelo alto poder de reatividade, um tal sistema de guardiães tem de ser muito bem controlado. De cara, além das estruturas moleculares próprias do organismo, o sistema imunológico deve respeitar também elementos como os alimentos que ingerimos, os quais, mesmo que estranhos (diferentes de nós), não representam nenhum perigo para a nossa integridade. 


Um bom sistema de linfócitos-T é um sistema equilibrado, que reage na medida certa, sem exageros nem deficiências. Um sistema de linfócitos-T em desequilíbrio para a hiper-reatividade pode reagir tanto frente a elementos próprios como a elementos estranhos inócuos, desencadeando auto-imunidade e alergias. 


Do outro lado, um sistema imune hiporreativo resulta em infecções crônicas ou repetitivas, mesmo por microorganismos considerados de baixa patogenicidade. Múltiplos são os mecanismos que mantêm nosso sistema imune em um estado otimizado. Recentemente, está se dando uma atenção especial à sua conexão com outros sistemas do organismo, como o sistema endócrino, sistema nervoso vegetativo e sistema nervoso central, e cada vez é mais aceita a ideia da influência destes sistemas sobre a resposta imunológica. 


Os linfócitos têm receptores para encefalinas, endorfinas, catecolaminas e hormônios, e estima-se que variações nestes mediadores devam refletir-se em mudanças funcionais dos linfócitos (que poderão levar à hipo ou à hiper-reatividade), um processo que foi ignorado por muitos anos e que só agora começa a ser desvendado.


Além da otimização das possibilidades de reconhecimento, consequência da multiplicação do número de receptores, o surgimento do timo e do sistema linfocitário trouxe uma outra ferramenta de importância fundamental na defesa contra os micro organismos, a memória imunológica. 


Como descrito acima, o primeiro contato de um indivíduo com um determinado patógeno determina a ativação de uma fração dos linfócitos, aqueles cujos receptores se encaixam nas estruturas moleculares do referido patógeno. Esta reação linfocitária, que normalmente resulta na eliminação da entidade estranha, não regride totalmente quando da eliminação desta. 


Assim, os linfócitos-T envolvidos na resposta inicial permanecem no organismo já curado em um estado de prontidão reativa, um estado de pré-ativação, que poderá expressar-se como uma resposta imunológica acelerada e de alta eficiência caso o mesmo patógeno volte a invadir o corpo. 


Dessa forma, pode-se dizer que a reação linfocitária à entrada de um patógeno dota o indivíduo de uma memória da experiência. O status de prontidão reativa das células de memória é, entretanto, específico, ou seja, afeta exclusivamente os linfócitos que foram ativados com a primeira entrada do patógeno. 


A efetividade da memória imunológica é de tal ordem que impede que um grande número de micro organismos (como os vírus do sarampo, caxumba, etc.) possa se instalar no nosso organismo mais de uma vez, garantindo um status de “imunidade” ao indivíduo que entrou em contato com eles.


Feita esta introdução ao timo e a seu produto, os linfócitos-T, fiquei curioso pela sua história, assim como pelo nome dado a este órgão fundamental. Nas fontes acadêmicas, descobri que o primeiro artigo científico sobre a função imunológica do timo é relativamente recente, de 1961, quando Jacques Miller descreveu na revista Lancet que a remoção do timo de um animal jovem determina uma redução considerável dos linfócitos no sangue e em outros locais (“The immunological function of the thymus”). 


Em relação à origem do nome, verifiquei que foi Galeno, no século II da nossa era, quem chamou thymus ao órgão bilobado, de cor cinza-rosácea, situado no peito, porque, se diz, lembrava-lhe um maço de tomilho. Mas a planta tomilho (thymus em latim) era denominada assim porque era queimada como incenso. O altar que existia nos teatros gregos era chamado de thymele, e thymos era a ascensão da fumaça, a queima do incenso, o sacrifício aos deuses – todos eles acontecendo no peito, no altar interno. Significava a aspiração, os cantos de louvor, o espírito e a expressão do amor. Era a alma-sopro da qual dependia a energia do homem e a sua coragem (Diamond, M. D.). 


Prosseguindo a pesquisa nesta direção, encontrei que thymos deriva da raiz indo-européia dheu, que significa “acender em chamas”, “surgir em uma nuvem”, “fumar” (de uma pessoa indignada se diz que ela solta fumaça). Em sânscrito o vocábulo era dhuna, do qual vêm fumaça e perfume. Na Bíblia, e mais concretamente no Livro dos Reis, se faz também alusão a thymos como causa da raiva e da paixão.


Assim, a origem da palavra timo remonta à antiga Grécia, e, possivelmente, à civilização indo-européia. Na Grécia, a palavra “thymos” foi utilizada por Platão e seu mestre Sócrates, assim como por Homero. Há indicações de que, para os gregos, thymos significava aalma ativa, a alma perecível – diferente da psyché ou alma passiva e imortal. Essa alma ativa seria equivalente à razão, à consciência (“awareness”) e estaria associada à respiração (sopro, alma, palavra), ao coração (desejos e intenções) e ao fígado (emoções).


Em um determinado momento na Ilíada, Aquiles diz: “Levantando-se como fumaça no peito dos homens Agamemnon irritou-me, mas deixemos os grandes serem grandes e aquietemos o thymos no nosso peito”. Assim, thymos é metaforicamente interpretado como “levantar fumaça no peito”. Expressa o princípio da vitalidade e, portanto, no seu lado físico, a respiração. Como atestado por Homero, thymos é o ânimo ou o coração, a sede das paixões e da ira, mas também da coragem e do entusiasmo. Neste sentido, uma pessoa que tem thymos pode ser chamada de entusiasta, dotada da força passional de reagir prontamente. 


Em consequência, thymos não tem a ver unicamente com a tendência à ira ou à indignação, mas com uma disposição anímica para acender e reagir energicamente, com dignidade, coragem, auto-estima e ardor espiritual.


Como indicado por John Onians, thymos referia-se originalmente ao sopro, à respiração. Era a matéria da consciência, o espírito, a alma-sopro, da qual dependia a energia e coragem do homem. Mesmo na sua mais remota origem, thymos denota “levantar-se em chamas” como nuvem ou espírito, o que nos remete ao conceito de alma e energia vital.


Para Platão, thymos é a parte da alma que denota o orgulho, a indignação, a vergonha e a necessidade de reconhecimento. É um atributo guerreiro, um aspecto da vida interior que dá significado à beligerância. Sem thymos o homem não é mais do que um animal muito inteligente, com cérebro e necessidades físicas, mas sem autonomia moral. 


Para Platão, thymos coexiste em nós com a razão e os desejos, sendo que, às vezes, nos leva a agir de uma maneira não razoável. 


Fechando com chave de ouro esta investigação sobre a etimologia de timo, fiquei estarrecido ao me deparar com o Livro 2 da “República”, e mais especificamente com o capítulo sobre “o Caráter e a Educação dos Guardiães”, em que Platão escreve: “A cidade luxuosa terá necessidade de um exército e portanto, de uma classe de especialistas, chamados ‘Guardiães’ (phylakes), os defensores da polis. A justiça será um dos seus objetivos mais importantes. Para realizarem bem o seu trabalho, os ‘Guardiães’ deverão ser dotados de vigor físico, dethymos, da capacidade de se comportar gentilmente com aqueles conhecidos e agressivamente com aqueles desconhecidos.” Uma bela descrição do thymos no nosso peito, tanto da entidade anímica, como do timo físico, berço e educador dos guardiães da identidade molecular do indivíduo.

Jose Alvarez Mosig

domingo, 9 de outubro de 2011

...o primeiro passo...



"Tente mover o mundo -
o primeiro passo será mover a si mesmo...

A paz do coração é o paraíso dos homens."

Platão

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

As Virtudes Selvagens



Se você busca as origens da ética, olhe as vidas de outros ani­mais. As raízes da ética estão nas virtudes animais. Os huma­nos não podem viver bem sem as virtudes que partilham com seus parentes animais.


Essa não é uma idéia nova. Há dois mil e quinhentos anos Aristóteles observou as semelhanças entre humanos e golfi­nhos. Como os humanos, os golfinhos agem propositalmente.

As origens da justiça, bem como da prudência, da modera­ção, da bravura - em suma, de tudo aquilo que designamos como as virtudes socráticas - são animais: uma conseqüên­cia daquele impulso que nos ensina a buscar comida e esca­par de inimigos.

Agora, se considerarmos que mesmo o mais elevado ser humano apenas se tornou mais elevado e sutil quanto à natureza do que come e em sua concepção do que é antagônico a ele, é adequado descrever todo o fenô­meno da moralidade como animal.

Para conseguir as boas coisas da vida, têm prazer em exerci­tar seus poderes e habilidades e mostram qualidades como curiosidade e bravura.

Os humanos não estão sozinhos nisso de ter uma vida ética.

Ao pensar dessa maneira, Aristóteles pensava como Nietzsche, que escreveu:

"A idéia ocidental dominante é outra. Ela ensina que os huma­nos são diferentes dos outros animais, que simplesmente res­pondem às situações nas quais se encontram. Nós podemos escrutinar nossos motivos e impulsos; podemos saber por que agimos como agimos. Tornando-nos cada vez mais autocons­cientes, podemos nos aproximar de um ponto no qual nossas ações sejam resultados de nossas escolhas. Quando estivermos plenamente conscientes, tudo que fizermos será feito por razões que podemos conhecer. A essa altura, seremos autores de nossas vidas."


Isso pode parecer fantástico, e é mesmo. Ainda assim, é o que nos foi ensinado por Sócrates, Aristóteles e Platão, Des­cartes, Spinoza e Marx. Para todos eles, a consciência é nossa própria essência, e a boa vida significa viver como um indiví­duo plenamente consciente.


O fato de que não sejamos sujeitos autônomos constitui um golpe mortal para a moralidade - mas é a única base pos­sível da ética. Se não fôssemos feitos de fragmentos, não po­deríamos praticar o auto-engano nem sofreríamos de falta de força de vontade. Se a escolha governasse nossas vidas, nun­ca poderíamos mostrar generosidade espontânea.

Se o "self" de cada um fosse fixo como imaginamos ser, não poderíamos lidar com um mundo abundante em descontinuidades. Se fôssemos realmente mônadas, cada um fechado em si mesmo, não po­deríamos ter a fugaz empatia com outras coisas vivas, a fonte última da ética.

O pensamento ocidental está fixado no hiato entre o que é e o que deveria ser.

Mas, em nossa vida diária, não escanea­mos nossas opções primeiro, para só depois atuar conforme a melhor delas.

Simplesmente lidamos com o que quer que se apresente.

Saímos da cama de manhã e vestimos nossas rou­pas sem decidir que vamos fazê-lo. Ajudamos a um amigo exa­tamente do mesmo jeito. Pessoas diferentes seguem costumes diferentes; mas, ao agir sem intenção, não estamos simples­mente seguindo hábitos. Atos não-intencionais ocorrem em todos os tipos de situação, incluindo aquelas com as quais nunca nos defrontamos antes.

Fora da tradição ocidental, os taoístas da China antiga não viam nenhum hiato entre ser e dever ser. A ação correta era o que quer que derivasse de uma clara visão da situação. Eles não seguiam os moralistas - confucionistas, naquela época - que buscavam acorrentar os seres humanos a regras ou princípios.

Para os taoístas, a vida boa é apenas a vida natural vivida com habilidade. Ela não tem nenhum propósito parti­cular. Não tem nada a ver com a vontade e não consiste em tentar realizar nenhum ideal. Tudo que fazemos pode ser fei­to de maneira mais certa ou menos certa, mas, se agimos cer­to, não é porque traduzimos nossas intenções em ações. É porque lidamos habilmente com o que quer que precise ser feito. A vida boa significa viver de acordo com nossas nature­zas e circunstâncias. Não há nada que diga que ela deva ser a mesma para todo mundo ou que deva estar em conformidade com a "moralidade".


No pensamento taoísta, a vida boa vem espontaneamen­te; mas espontaneidade está longe de ser simplesmente agir segundo os impulsos que nos ocorrem. Em tradições ociden­tais como o romantismo, a espontaneidade está ligada à subjetividade. No taoísmo, significa agir desapaixonadamen­te, baseado numa visão objetiva da situação presente. O ho­mem comum não pode ver as coisas objetivamente porque sua mente está anuviada pela ansiedade de alcançar suas metas. Ver claramente significa não projetar nossas metas sobre o mundo; agir espontaneamente significa agir de acordo com as necessidades da situação. Os moralistas ocidentais pergun­tarão qual é o propósito de tal ação, mas, para os taoístas, a vida boa não tem propósito. É como nadar em um redemoi­nho, respondendo às correntes, tal como vêm e vão.

"Mergu­lho com o influxo e emerjo com o refluxo, sigo o Tao da água e não imponho a ela minha visão egóica. É assim que perma­neço à tona", diz Chuang-Tzu.


Dessa perspectiva, a ética é simplesmente uma habilidade prática, como pescar ou nadar.

O cerne da ética não é a esco­lha ou a atenção consciente, mas a aptidão para saber o que fazer.

É uma habilidade que vem com a prática e com uma mente vazia. A. C. Graham explica:

"O taoísta relaxa o corpo, acalma a mente, afrouxa a pressão exercida por categorias tornadas habituais pelo nomear, li­bera a corrente de pensamentos para diferenciações e assi­milações mais fluidas e, em vez de pesar escolhas, deixa que seus problemas se resolvam por si mesmos à medida que a inclinação espontaneamente encontre sua própria direção. (...) Ele não tem que tomar decisões baseadas em padrões de bom e mau, porque, admitindo-se apenas que iluminação seja melhor que ignorância, é auto-evidente que, entre inclina­ções espontâneas, a que prevalece numa situação de maior clareza da mente, outras coisas sendo iguais, será a melhor, ou seja, a que está de acordo com o Tao, o Caminho."


Poucos seres humanos têm a aptidão para viver bem. Obser­vando isso, os taoístas buscaram outros animais como guias para a vida boa. Os animais selvagens sabem como viver; não precisam pensar nem escolher. Apenas quando são acorren­tados pelos humanos é que param de viver naturalmente.


Como diz Chuang-Tzu, "os cavalos, quando em estado selvagem, comem capim e bebem água; quando estão satis­feitos, enlaçam seus pescoços e se esfregam. Quando enraive­cidos, viram-se de costas um para o outro e dão coices. É isso o que cavalos sabem. Mas, se atrelados juntos e obrigados a se alinhar, sabem como cabecear e arquear os pescoços, patear em círculos, tentar cuspir o freio e se livrar das rédeas."


Para pessoas escravizadas à "moralidade", a vida boa sig­nifica esforço perpétuo. Para os taoístas, significa viver sem esforço, de acordo com nossas naturezas. O ser humano mais livre não é o que age de acordo com razões que escolhe para si mesmo, mas o que nunca precisa escolher. Em vez de se agoniar entre alternativas, responde sem esforço às situações o taoísmo coincide com a visão científica de mundo exata­mente naqueles pontos em que essa visão mais incomoda os ocidentais enraizados na tradição cristã - a pequenez do homem em um vasto universo; o Tao não-humano que todas as coisas seguem, sem propósito e indiferente às necessida­des humanas; a transitoriedade da vida, a impossibilidade de saber o que vem após a morte; a mudança infindável na qual a possibilidade de progresso não é nem mesmo concebida; a relatividade dos valores; um fatalismo muito próximo do de­terminismo; até mesmo a sugestão de que o organismo hu­mano opera como uma máquina.


Autonomia significa agir segundo razões que escolhi; mas a lição da ciência cognitiva é que não existe nenhum "self" para fazer a escolha. Somos muito mais semelhantes a máquinas e animais selvagens do que imaginamos. Mas não podemos al­cançar o egoísmo amoral dos animais selvagens ou o automa­tismo sem escolha das máquinas. Talvez possamos aprender a viver com mais leveza, menos oprimidos pela moralidade. Não podemos retomar a uma existência puramente espontânea.


Se os humanos diferem de outros animais, é, em parte, nos conflitos entre seus instintos. Eles buscam segurança, mas são facilmente entediados; são animais amantes da paz, mas têm um gosto pela violência; são inclinados a pensar, mas ao mes­mo tempo odeiam e temem a incerteza trazida pelo pensar. Não existe nenhum modo de vida no qual todas essas neces­sidades possam ser satisfeitas. Felizmente, como atesta a histó­ria da filosofia, os humanos têm um talento para o auto-engano e crescem na ignorância de suas naturezas.


A moralidade é uma doença peculiar aos humanos, a vida boa é um refinamento das virtudes dos animais. Surgindo de nossas naturezas animais, a ética não precisa ter onde se an­corar; mas fica encalhada nos conflitos de nossas necessidades.


Por Adalberto Tripicchio 

Fonte:
rede psi